João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


OS MENINOS DA BRÁS DE PINA

“ Nos áureos tempos, a rua era tanta;
O lado direito retinha os jardins.”
                             Carlos Drummond de Andrade.


A rua era a Brás de Pina, também chamada da Lagoa Seca. Larga rua, rua velha, com suas casas ainda mais velhas, rua poeirenta e sem asfalto, calma e sem carros. Naquela rua, nos idos de mil novecentos e cinqüenta e seis, os meninos podiam jogar taco.
O jogo de taco é uma é espécie de beisebol caboclo, onde jogam quatro pessoas. São feitas duas pequenas casinhas de gravetos, semelhantes a duas pequeninas pirâmides, colocadas cerca de vinte ou trinta metros uma da outra. Formam-se duas duplas. Uma delas são os rebatedores, outra os arremessadores. A dupla arremessadora deverá atirar uma bolinha (geralmente uma bolinha de tênis) contra a casinha. A dupla rebatedora deverá defender a casinha rebatendo a bolinha. Quanto mais forte a tacada e mais longe a bolinha for mandada, melhor, pois assim a dupla rebatedora poderá fazer mais pontos por tacada. O ponto consiste numa troca de posição entre um e outro rebatedor.

A rua Brás de Pina era ideal para esse tipo de jogo. Rua larga e pouco freqüentada por automóveis. As casas também eram longe e sem muros. Nada de janelas para quebrar nem cercas ou muros para pular quando a bolinha caia em algum quintal.
Lá havia espaço e muitos garotos. Havia também vizinhos rabugentos. Nenhum deles gostava quando uma bola caia no seu quintal e atrás dela vinha um menino ranhento, sujo, suado e maltrapilho, batendo palmas no portão, pedindo para pegar a bola. E se no quintal houvesse algum pomar em tempos de safra, com a bola sempre vinha alguma fruta.
Mas não era tempo de automóveis. Raros veículos apareciam por lá. O que mais pintava era os velhos caminhões de ambulantes, anunciando suas mercadorias;
― Olha a sardinha vivinha!
―Olha a melancia, dona Maria!
―Galinha caipira, dona Mira!

Na rua Brás de Pina podia até jogar-se futebol. Bola de meia ou de borracha, vez ou outra aparecia uma de capotão, aquela bola meio ovalada, que mais parecia bola de rugby, que tinha uma câmara semelhante a uma bexiga por dentro de uma cobertura de couro, que a gente amarrava com cadarço. Ela parecia um daqueles espartilhos que modelavam a cintura das nossas avós.
Os meninos eram tantos que às vezes dava para fazer até campeonato. A taça era uma dúzia de bananas. Jogávamos 15 contra 15 e ás vezes até mais. O jogo durava a tarde inteira. Quando estávamos cansados e resolvíamos parar o jogo, (geralmente o dono da bola, que a mãe chamou), vinha sempre aquele grito: ― Quem fizer o último gol ganha!
Quem ganhava nunca levava a taça. Seja por que uma dúzia é menor que quinze, seja porque todos estavam com fome, ou porque ninguém se conformava em perder.  Na briga para ficar com as bananas, as pobres frutas eram esmagadas e pouca coisa sobrava delas. Ás vezes era o menino que estava mais próximo do pacote que saia correndo com elas.

“ Na velha rua Bráz de Pina,
Rua velha, rua larga,
Sem o incômodo do asfalto
Que quando chega traz os carros,
Os meninos jogam taco e futebol.

O Nelsinho bateu com força.
A bola caiu no Seu Antonio
Aquele que compra ferro-velho.
Seu Antonio furou a bola 
E acabou com nosso jogo.

Domingo é dia de jogo contra.
Vale uma dúzia de bananas.
Tem que marcar o Canelinha
E pegar firme o Celsinho.
Mas se o goleiro deles é o Zé Meleca
Então dá para ganhar.
Porque a gente tem o Neguitinha
E o Bastiãozão também irá.

Na velha rua Bráz de Pina,
Rua Larga, rua calma,
Tem poeira levantando,
Não são meninos que estão brigando;

É o velho Ford do Franz Steiner,
Que passa tossindo, avisando,
Que o progresso está chegando
E a farra tem que acabar.

Mas a rua Bráz de Pina não tinha só meninos. Havia meninas e as brincadeiras delas.
― Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar,
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar...

Menino não brincava com menina. Quando algum garoto mais corajoso entrava na roda, os outros cantavam:
― Ciranda, cirandinha
Terezinha, amareliha,
Quem brinca com menina
‘Tá virando mariquinha!

Mas apesar da vergonha todos os meninos gostariam de entrar naquela roda para pegar na mão de certa menina. Todos os meninos já tinham as suas namoradas secretas, todos já tinham feito a sua escolha. Só elas é que não sabiam disso.
Um dia uma menina de óculos veio morar na rua Bráz de Pina. Era o único sobrado daquele quarteirão e ela ficava todos os dias na janela espiando a molecada brincar. Nunca se vira uma menina de óculos por aquelas bandas. Era a “quatro olhos do sobrado”. Tinha uns dez anos talvez, longos cabelos negros e escorridos, pernas finas, usava saias curtas, bem rodadas e mantinha um narizinho empinado toda vez que passava em frente aos meninos.
Nunca soubemos o nome dela. Era a “quatro olhos do sobrado” e só. E nós zombávamos dela, dávamos apelidos, falávamos obscenidades, dizíamos gracejos.
Isso quando estávamos juntos. Mas à noite, quando estávamos na cama, e ninguém via o que a gente fazia, e ninguém desconfiava do que pensávamos; quando nos arrependíamos das coisas que não fizemos, quando lamentávamos o soco que não demos no nariz do filho da puta que xingou a nossa mãe; depois de repassar as aventuras do dia, fazendo melhor o que se não se fez direito, adivinhem em quem eu pensava: na “quatro olhos do sobrado”.
“Quatro olhos” coisa nenhuma! Ela era tão bonitinha. Era, na verdade, uma princesa. E eu não era um garoto sujo, feio e maltrapilho, deitado sobre um imundo colchão de capim, (cortiço fedorento onde se hospedavam miríades de pulgas nojentas, cujo único objetivo era chupar-me o sangue ralo e insipiente), manchado com tudo que era secreção humana. Eu me tornava um Lancelot montado sobre um fogoso corcel, lutando pela minha amada princesinha de óculos. E eu sempre vencia. E ela sempre me olhava com aqueles olhos de donzela medieval, ternos, castos, amorosos, olhos de dádiva, olhos de prêmio...― Sou tua, porque me ganhastes!
Mas o que faz com uma menina de dez, quando se tem onze anos? A libido só conhece o caminho da mão. E é ai que se busca a recompensa. Mas esta ainda não tem matéria suficiente para dar satisfação completa. Então as imagens se fundem numa bola que é atirada numa vidraça. Os vidros se partem em mil cacos, e eles são os óculos da menina. Ela joga uma pedra em mim. A pedra bate no meu peito e machuca. Sinto a picada. Levo a mão onde a pedra bateu e capturo uma pulga gorda; na casa ao lado, paredes meias, feitas de barro e taipa, alguém está falando alguma coisa. Presto atenção para ver se não estão falando mal de mim. Então, a moreninha Olinda, a mulatinha de pernas grossas, que mora do outro lado da rua, aparece falando uns troços que eu não consigo entender, mas sei que tem algo a ver comigo, por que nos lábios dela eu vejo aquele sorriso sem vergonha e zombeteiro de quem me pegou fazendo alguma coisa feia...

“ Olinda, Linda, mulatinha,
Melhor amiga da minha irmã
Jamais vai ler esta poesia
Porque jamais aprendeu a ler.
A menina de óculos do sobrado,
O primeiro da Bráz de Pina,
Talvez leia, mas se ler não saber,
Que foi a grande responsável
Pela minha primeira floração.
E eu nem soube o nome dela.

E o quarto navega. Não é num mar de água, sal e céu. É um rio de sol, poeira e sangue, que passa por bueiros e depósitos de lixo, cheio de sucatas e ratos do tamanho de uma bola de futebol. Eu chuto um deles e ele cai no rio. Mas não é um rato, e uma bola. O meu amigo Vaca-Mão-Negra pulou no rio para pegá-la, se afogou e morreu. E a bola não é bola, mas sim uma bexiga de mortadela que nós roubamos no Mercado Municipal. Correm atrás de nós. Jogo para ele a bexiga e a bexiga é uma pipa que sobe. Alguém lhe corta a linha. A pipa, que agora é um balãozinho lozango, cai no quintal do Seu Antonio do Ferro-Velho. Ele, ao ver a pipa caindo, para de tocar a sua tuba e a aponta para mim. Da boca da tuba sai uma descarga de sal grosso que acerta na minha perna e ela queima, queima, queima...

Do menino que pescava na Boca do Cano
Hoje ninguém se lembra mais.
Exceto talvez os seus parentes
Que até hoje não entendem
Que o zelo pela lei municipal
Valesse a vida de um menino.

Do soldado que matou o menino
Que pescava na Boca do Cano
Ninguém se lembra mais.
Talvez tenha progredido na carreira
Se tornando coronel.

O Tietê também morreu,
Mas a lei não castigou o assassinato ecológico.
E o menino que pescava na Boca do Cano
Morreu porque tirou um peixe
Do rio que hoje não tem mais peixe algum.

Grito! Acordo segurando uma enorme pulga. Depois de ter convenientemente chupado meu ralo sangue, deixando um pequeno hematoma na minha perna, parece aturdida pela enormidade do crime que cometeu. Apavorada pelo castigo que a espera, parece que ela quer pedir perdão. Não amoleço. Esmago-a entre as unhas dos polegares, que ficam rubros com o sangue que espirra. Não sei se a pulga é macho é fêmea, mas eu a chamo de Nelsinho, e eu te mato, te mato, desgraçado... Com as mãos sangrando pego a bolinha de camurça e a atiro com fúria contra a casinha de barro e taipa, que cai com um estrondo. E aí eu pego o taco e coloco entre as pernas e digo: ― Vem.
Ninguém veio, mas a menina de óculos do sobrado está olhando com ar de desdém, a mulatinha Olinda está sorrindo aquele sorriso sem vergonha.
E surge então aquela vontade incontrolada de mijar. O calção parece uma tenda armada no púbis imberbe. A privada fica no quintal, uns vinte metros afastado da casa. Está escuro e eu tenho medo dos espíritos da noite. Sempre achei que existe assombração morando no milharal da Dona Maria Velha, que fica no fundo do quintal. Giro a taramela da porta da cozinha e mijo ali mesmo. Ninguém viu. De volta à cama, penso na loura- vampiro que dizem andar por ai. Cubro a cabeça para me esconder. Aí alguém que se parece com o Jesus do retrato da parede rola uma bola de capotão para eu chutar. Chuto e a bola cai lá no campo do Sete de Setembro. Hoje é sábado e amanhã é domingo.

Lá vem o “Seu Camilo” com a sua baratinha.
Hoje tem festival de futebol no campo do Sete.
( Auto Escola Santa Teresinha).

A Vila dos Pobres fica em frente ao Campo do Sete.
A Maria Coça-Cola mora lá.
Todo dia dá um show para a molecada.
Lá também mora o Capeta.
E o seu Camilo Machado Cabral
É que comanda tudo aquilo.

Mas o Neguitinha puxou a saia da Coça-Coça. Ela soltou um palavrão e saiu correndo atrás de mim. Subi num pinheiro que havia em frente á fabrica de móveis Padovani. Maria Coça-Coça era um urso cinzento igual ao que eu havia visto numa seção do Pif-Paf no Cine Odeon. Ela começou a sacudir a árvore. Um monte de peras carnudas caiu no chão. Enchi minha camisa com elas e o urso que era a Maria Coça-Coça continuou a correr atrás de mim, mas já não é o urso, é o Horácio de Oliveira, dono daquele quintal ali na Avenida, onde havia umas pereiras que todo ano carregavam. Um sujeito passou de bicicleta pela rua e me chamou de predador, porque eu estava cortando um pinheiro para fazer traves para o nosso campinho de futebol.

Cortei um dia um pinheiro
Para fazer trave para o campinho.
Um cara me chamou de predador.
Eu pensei que a minha mãe
Tinha algo a ver com isso.
E comecei a desconfiar do cara
Para quem ela lavava roupa.

E eis-me na rua empurrando um enorme carrinho de roupa lavada, que de repente, não é roupa, mas lata velha, ferro, papel, vidro quebrado, sucata de tudo quanto é tipo que eu juntei para vender para o Seu Antonio do Ferro-Velho. Estou fumando um cigarro.

Catei bituca, fiz um cigarro
Embrulhado em papel de pão.
Naquele dia ninguém me disse
Que eu poderia estar plantando um câncer.
Fumei, gostei, fumei muitos anos,
Especialmente quando queria ser alguém.
Com o primeiro dinheiro que ganhei
Vendendo ferro velho pro Seu Antonio,
Comprei um Mistura Fina.
Foi assim que comecei
Como quem se lembra que tem mãos.

E aquela mão que parecia ser a do Homem de Borracha fechava o gol, tirava os óculos da menina do sobrado, afagava as coxas grossas da mulatinha Olinda. As minhas mãos eram grandes, o meu taco era enorme. E eu batia na bola com aquele taco e o esfregava e torcia. Todos temiam aquele taco mas também ficavam fascinados por ele porque ele era batata doce, pinhão assado e cigarro Continental ou Mistura Fina. E a Faustina, aquela moça que era minha vizinha, olhava e ria.

Do alto do barranco
A casa velha espia a rua.
Dona Maria espia o tempo.
O povo espia a filha dela.
Faustina casa ou não casa/?
Já está com outro namorado.
Dona Maria espia as outras moças
Só não espia a filha dela.
A vizinha espia a Faustina,
Eu espio o pinhão assando no fogão de lenha,
Dona Maria Velha espia a minha mão.
Faustina, afinal, se casou com o Frederico.

Cortaram a minha mão! Não foi a dona Maria Velha. Foi a minha mãe.
― Por que, mãe?
― Para que não roubes mais pinhão nem toques nesse taco.
O sangue pinga da mão decepada. Os pingos da chuva sangrenta desenterram meu pai, há pouco deitado em cova rasa no cemitério do hospital Santo Ângelo, em Jundiapéba.

Meu pai morreu em mil novecentos e cinqüenta e seis.
Depois dele logo foi o meu avô.
Foi como se um tivesse chamado o outro.
Não me lembro de ter chorado.
Não conheci bem nenhum dos dois.
Depois, ninguém chora aos onze anos.
Nessa idade a morte é só uma viagem
Que se faz para destino ignorado.

Meu pobre era um lavrador semi-analfabeto que pegou doença ruim e teve que ser internado no Santo Ângelo. A única lembrança que tenho dele era uma estória que ele me contou um dia, antes de ser internado. Era uma estória sobre um cara que comprou um monte de livros sem ao menos saber ler. Era uma coleção de livros chamado o tesouro de Bersa. Comprou porque o vendedor lhe prometera que se ele conseguisse ler todos aqueles livros ele iria adquirir um tesouro incalculável que o deixaria rico para sempre. Então, para justificar o investimento, ele entrou numa escola para aprender a ler. Aprendeu e começou a ler os livros que comprou. Mas eram livros que falavam de um monte de coisas que ele não conseguia entender. Então, para poder compreender o que estava  lendo, ele resolveu estudar mais. Fez ginásio, colegial, faculdade, mestrado, doutorado. Tudo para poder entender o que estava escrito naqueles livros. Tornou-se mestre, doutor, conselheiro, intelectual respeitado em todo o país. Ganhou dinheiro, consideração e respeito. Esqueceu-se dos livros e do tesouro que estava oculto neles. Um dia encontrou o vendedor e o reconheceu.
― Não que isso me interesse agora, mas estou curioso ― disse ele ao velho vendedor. ― Que tesouro era esse que você me prometeu no final desses livros? Eu já os li um monte de vezes e até agora não encontrei coisa nenhuma.
― Há muito tempo o senhor os encontrou ― disse o vendedor. Basta virar o título da coleção de trás para a frente o senhor terá o nome do tesouro que ele encerra.
Ele o fez e soube que Bersa, na verdade, significava Saber.




RESENHA DO CAPÍTULO I DO LIVRO "NOITE, VENTO E CHUVA- CRÔNICA DA CIDADE AMADA, PUBLICADO PELA EDIGRAF, SÃO PAULO, EM 1986.















João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/03/2010
Alterado em 03/08/2011


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