João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


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Essa é a educação que no país dos judeus é dada os homens, especialmente aqueles que estão destinados a ocupar posições de proeminência em sua sociedade.
Com relação às mulheres, entretanto, dizíamos que a crença geral do povo da terra é que o aprendizado das letras – senão perigoso para os espíritos delas, extremamente suscetíveis às más influências que vêm das leituras – é uma habilidade no mínimo dispensável para quem exerce uma função tão bem definida no contexto geral das coisas. Afinal, a parte que lhes cabe na sociedade, delas exige certas qualidades fisiológicas, mas não tais sutilezas de espírito.
Agora, bonitas de rosto e rijas de corpo é bom que sejam, porquanto a beleza agrada aos olhos e a fortaleza do esqueleto é necessária para fazer face ao duro trabalho diário que lhes é requerido. Adjutório semelhante ao homem é o que são. Assim é que elas foram chamadas quando Jeová deu a Adão a incumbência de nomear as espécies que viriam compor a sua criação. Destarte, para assistir o homem na sua faina diária é que as mulheres foram feitas, e se em alguns lugares algumas usurparam a função masculina, ocupando-se de política, administrando empresas, comandando exércitos, essa é uma planta de exceção à qual não se deve dar adubos, porquanto se começarem a ser produzidas safras regulares desses frutos, muitas encrencas há de se prever que aconteçam no mundo.
Como disse um grande rei que os judeus tiveram, que além de sábio era também um poeta de fina lavra, bom é que a mulher tenha peitos que se possam comparar aos melhores odres, para guardar o mais saboroso dos vinhos; que sua pele seja lisa e macia como a textura das rosas de Sharon; que seu cheiro possa ser comparado ao mais fino óleo de nardo; que o seu porte lembre a esbeltez dos cedros do Líbano e seu corpo concentre outras lindezas que os olhos do homem nunca se cansem de admirar. Mas mentes treinadas para escrever, calcular, articular planos e estratégias, construir pensamentos de beleza e preço, que tais são as obras de arte que encantam os olhos e os ouvidos, e as filosóficas, que educam o espírito, isso não mesmo.
Daí se conclui que menos ainda se as devem treinar na arte da leitura, porquanto essa habilidade é que lhes afia as línguas e estas, mesmo sem o recurso dessa ferramenta já são cutelos naturais, de gumes terrivelmente cortantes. Que Jeová os livre desse perigo é o pedido que eles fazem, amiúde, em suas orações, pois que das mulheres é que vem toda a malignidade, toda a incerteza, toda a dificuldade por que passam os homens. Assim como é perigoso para os pés de um velho a areia, que nela com muito custo se equilibra, do mesmo modo é para um homem sensato e discreto uma mulher desbocada, com muitas palavras a sair-lhe pela boca, ou uma mulher que não se contenta com a frugalidade de uma vida simples e virtuosa. Uma, pelo muito falar, o afasta do bom ouvir; a outra, pelo muito querer, o leva para longe do bem pensar, e a vida, para ele, acaba se tornando uma penosa jornada por caminhos sem bons conselhos e sem pensamentos de boa ciência. Essa é a sabedoria ensinada pelos filósofos da terra e encontra-se registrada nos livros que eles lêem nas sinagogas.
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Justifica-se, dessa forma, a aprendizagem que lhes é dada. Essa, desde que saem dos cueiros, consiste em ensinar-lhes coisas úteis para produzir o resultado que delas se espera no fogão, na roca, no tear, no fuso, na tina e no resto da casa durante o dia, na execução das tarefas que lhes são próprias; e á noite, na cama, recompensando seu homem com a satisfação a que ele faz jus pela dura labuta diária que suporta na tarefa de ganhar a vida. Numa e noutra sabedoria é que se faz o louvor que merecem as mulheres judias, embora á esta última não se dê o devido destaque, pelo menos não como se faz na terra dos hindus, por exemplo, onde até tratados se escrevem a respeito da arte de dar e receber prazer no amor físico e a parte que a elas cabe nesse conúbio recebe a devida apreciação.
Mais louvadas são as mulheres judias, quando desse prazer fugaz os fluídos liberados se transformam em filhos. Pois é com eles que se faz a força dos clãs que dominam o país. Aliás, mais pelo número da prole do que pela fartura dos cabedais é que se contam as fortunas dessas famílias campesinas que habitam essas terras, pois filhos e rebanhos são os únicos capitais que vale a pena acumular. Prole varonil, é claro, pois numa terra onde os recursos naturais não são encontrados com tanta fartura – embora no passado se dissesse que dela brotava leite e mel e o maná caia direto do céu –, há gente demais para disputá-los. Destarte, quem não tiver um bom número de braços fortes para manejar o arado e se for preciso, empunhar uma espada, acabará logo sendo expulso da gleba, sem pelo menos contar uma ou duas gerações de interação com ela. Isso é o mínimo exigido para que se possa chumbar o solo cultivado ao nome da família e assim fazer o seu toponímico entrar para o seleto rol dos clãs do país.
Assim era nos dias dessa menina Maria, que vemos em sua faina diária, de preparar a massa para fabricar o substantivo pão. Da mesma forma será amanhã e sempre, pois onde existe a necessidade de se dividir os bens da terra por um divisor sempre crescente, sem a possibilidade de aumentar, na mesma proporção o dividendo, o conflito é coisa inevitável. Isso não quer dizer que as mulheres não tenham valência própria num sistema desses, já que delas é que se servem os chefes dos clãs judeus para capitalizar os acervos dos quais falávamos ainda a pouco. Mas, salvo esse insubstituível atributo que a natureza lhes deu, de procriar, e habilidade para cuidar, até certa idade, dos filhos, as outras qualidades que elas possam ter, já que de certo as têm, não são valoradas da mesma forma. Assim, mesmo suportando o mais pesado das lidas diárias, que exercem rigorosamente desde a mais tenra idade, elas são sempre excluídas dos conselhos que se reúnem para tomar as resoluções mais importantes. Essa é a razão de não as encontrarmos nessas assembléias, que eles chamam de Conselhos dos Anciãos, embora a palavra aqui não se refira exclusivamente a indivíduos de provecta idade, mas sim aos que alcançaram certa maturidade de inteligência ou ampla fartura de cabedais, pois uma os leva a conquistar os assentos por mérito e a outra lhes permite comprá-los por bom preço. Nem as veremos em outros lugares, onde de alguma forma o poder é exercido, ainda que, nas sombras, algumas delas dirijam os homens que o exercem, pois na Judéia, como em Roma, ou em qualquer outro lugar do império ou do mundo, naquele tempo como agora, os arrufos de alcova, muitas vezes, sobrepõem-se aos conselhos dos doutos e às maquinações dos políticos.
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Cabeça de mulher, já de origem, é uma febricitante oficina de turvas maquinações – dizem os eclesiásticos judeus –, e se letrada se torna, dessa indústria é que saem os maus sucessos que modificam as fortunas e põem a perder as melhores famílias. Daí é melhor que sejam mantidas ignaras e não se lhes ensinem a ler e escrever além do mínimo necessário para fazer as contas domésticas e aprender a dizer as sagradas orações rituais. Afinal, quem lê e escreve e vai adiante, invariavelmente, mais cedo ou mais tarde, mete-se a pensar em coisas que estão aquém do tempo e do espaço em que se vive e acaba tomando por necessidade primária coisas que só um bestunto muito bem educado nessas frivolidades toma tento. Resta daí, que é melhor que lhes sejam ensinadas apenas coisas úteis, como aprender a trabalhar no tear, no fuso e na roca o linho e a lã, a fabricar o pão, a cozer com sabor e presteza os alimentos; e também a hortar e jardinar com eficiência, para que os legumes e as verduras sejam fartos à mesa e se tenham flores nos quintais para agradar a vista, a esmagar as azeitonas com presteza e habilidade para que o azeite nunca falte nas ânforas e nas candeias á noite, enfim, tudo que cabe a uma boa prestadora de serviços domésticos fazer, que isso é o melhor que se pode esperar delas.
Dessa forma, os frutos das suas mãos serão louvados por quantos delas dependam. Uma mulher assim, ensinam os eclesiásticos em suas sinagogas, “ tem preço que excede a tudo que vem de remontadas distâncias e dos últimos confins da terra; o coração de seu marido põe nela sua confiança e ele não necessitará de despojos. Ela se tornará o bem e não o mal, em todos os dias da sua vida”.
Nesse perfil é que todas as mulheres do país se esforçam para se enquadrar. Por isso é que elas se põem, sem mais rebuços, em seus lugares, e nos seus rostos se pode ler uma conformidade nem jubilosa nem lastimosa, mas apenas natural, qual sina já consagrada de quem tudo aceitou como se destino fosse. Também pouco se lhes dá que possa existir uma forma diferente de viver, pois esta, se houver, não é a que foi ensinada pelos ancestrais, e o que é mais importante ainda, não é aquela que Jeová referenda como virtuosa e pura. Basta-lhes ser, como nos poemas que os bardos da terra gostam de escrever, a “ flor do campo e a açucena dos vales”, e à tarde “ ouvir a voz do amado, saltando sobre os montes e atravessando os outeiros”, ainda que tais cantigas nunca sejam ouvidas pronunciadas diretamente pelos lábios dos seus homens, pois a estes a conversa desnecessária com a mulher é fonte de muitos e maus sucessos.
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No geral é assim que as mulheres são vistas na terra dos judeus, nesse tempo dos quais estamos falando. E um homem que tenha uma em casa – afirmam eles com muita convicção –, sem ter lhe posto os devidos freios, cuidará que muita razão há nessas usanças. Da menina Maria, no entanto, além de cordata, meiga, solerte e o que é melhor, discreta no falar e mostrar-se em público, diz-se que é também excelente cozinheira. Pois o ragu, essa gostosa pasta de grão de bico que eles comem, e os pães e os bolinhos de mel que faz, são muito apreciados por todos quanto os provaram, já que afirmam em toda Belém, que ali, naquela aldeia de cerca de oitocentos e poucos habitantes, ninguém os faz melhor que ela.
De ordinário, não fosse ela filha de um pastor, cujas rendas vêm todas do seu pequeno rebanho de cabras e carneiros, sabe também fazer queijos e coalhos muito bem. Disso e da venda do leite das cabritas é que vive a família do pastor Joaquim, que além dela tem mais dois filhos já casados, uma moça chamada Débora e um rapaz de nome Jeú. Este trocou o ofício de pastor pela tinturaria de panos e o curtume de couros, e anda, conforme se deu notícia, lá pelas bandas da cidade de Jericó, que é onde fica o palácio de verão do rei que governa o país, que ela nunca viu e apenas sabe o nome. E que é muito mau, segundo ouviu dizer, pois costuma mandar prender e matar as pessoas de quem não gosta.
Maria se alegra por morar tão longe dos lugares onde esse rei costuma ir e que ele não conheça, nem sequer saiba da sua existência e da sua família. Assim pensa estar segura, ela e os seus, pois acha que se o rei costuma fazer mal às pessoas de quem não gosta, certo é que ele precisará primeiro saber que tais pessoas existem para tomar tento se delas se agrada ou não. Se ele nunca vier a conhecê-los não terá como desagradar-se, e, portanto, ela e sua família, por lhe serem desconhecidos, estarão a salvo. Esse é o raciocínio simples da donzela, que não sabe que reis não precisam conhecer pessoas e nem sequer ter sentimentos a respeito delas para tomarem decisões sobre suas vidas. Eles obedecem a uma deusa chamada Política, que tudo lhes ensina e cujo culto a tudo justifica, de sorte que passam por nunca tomarem decisões erradas. Deles sequer se pode dizer que façam mal a alguém com suas ações, pois as cabeças que fazem rolar nos cadafalsos e os corpos que eles mandam torturar nas masmorras são como sacrifícios oferecidos a tal divindade, em tudo iguais aos passarinhos que são imolados no Templo de Jerusalém para agrado de Jeová. Estes coitadinhos valem tanto que um par deles pode ser comprado por um ceitil nas barracas montadas na praça em frente ao santuário; aqueles, mesmo valendo um pouco mais, podem ser facilmente adquiridos no mercado de escravos por preços variados, conforme a condição física que ostentem e as habilidades que adquiriram em suas vidas miseráveis. E também podem ser vendidos, por trinta moedas, pouco mais ou pouco menos, nos acordos que se fazem para perdê-los nos corredores dos palácios e nos átrios dos tribunais. 
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A casinha onde ela mora, nas cercanias da aldeia, é um tosco quadradinho de pouco mais de vinte e cinco metros de área, feito de adobe, esse tijolo rústico que é produzido com o barro vermelho tirado da terra local. Não é muito diferente das habitações da aldeia, onde vive uma gente tão simples quanto ela. Consiste numa única peça que Joaquim dividiu em dois compartimentos com biombos feitos com peles de cabra, costuradas umas nas outras, separando de um lado um espaço para servir de quarto de dormir, onde são estendidas as esteiras, de outro lado cozinha e sala, onde ele fez um pequeno forno de barro para assar o pão e um fogão á lenha para cozer a lentilha, o grão de bico, os legumes, etc. Esses tipos de grãos e hortaliças são a base alimentar do povo da terra, juntamente com o leite, e às vezes, a carne dos carneiros, embora nunca se as comam juntas, que interdito é, por lei, colocar na mesma mesa o leite e a carne, e dos dois se servir no mesmo repasto.
Nesses ermos quase desérticos que são os arredores da aldeia de Belém, os dias se sucedem um ao outro com a monotonia própria de um local onde mal se sabe como começam e terminam esses intervalos de tempo, não fossem eles divididos entre luz e escuridão, cada um com sua metade para preencher, como meninos brincando com figuras de colorir. Pois está escrito que foi assim que Jeová criou o fenômeno da duração, os dias se sucedendo às noites, um luzeiro maior e muito quente para identificar o dia, um luzeiro menor e muito frio para representar a noite. E pelo movimento que fazem pelos espaços que cobrem em sua marcha pelo firmamento se contam as horas, os dias, os meses e os anos. Louvado seja quem nos deu tais relógios, porque se não fossem eles jamais saberíamos que a nossa vida está limitada a um intervalo dessa duração. E então não teríamos urgências para nada, nem angústias ou crises de existência, como não as têm os animais e as plantas, que não sabem que envelhecem, nem que cada dia vivido é uma página virada em um livro, cuja leitura não pode ser interrompida para ser retomada no dia seguinte, nem refeita para se tentar entender o que não foi compreendido na página anterior. Os animais nem sabem que vivem e que um dia não farão mais parte desse livro, cujo conteúdo se escreve minuto a minuto. De certo é essa ignorância que lhes dá a dignidade que se vê em suas posturas, quando a idade provecta chega e também a invejável indiferença com que enfrentam essa que dizem ser a maior inimiga de toda criatura que hospeda essa mais excelsa qualidade do universo, chamada vida. 
                                           
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/04/2011
Alterado em 09/05/2011


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