João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



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Ah sim, deve ser uma garota bonita, a gentil Maria, embora seja difícil perceber isso, já que ela usa a roupa comum das donzelas dessa região: no inverno uma túnica longa e pesada, feita de rústica lã trançada a mão; no verão um vestido igual feito de algodão cru, que lhe esconde as formas juvenis que principiam a ganhar aquela graciosidade própria da criatura que já se sabe plena em sua condição de mulher.
Graça essa, diga-se, que ela expressa no olhar furtivo e no rubor das faces, embora estas também estejam sempre encobertas por um véu espesso, que as esconde até a linha dos olhos, ocultando um rosto que termina em um queixo meio anguloso, encimado por uma boca de lábios finos e um nariz um tanto adunco, próprio da gente destas terras. Orelhas pequenas e sombrancelhas finas completam um desenho que se poderia aplicar à maioria das mocinhas do local. Além das simpáticas covinhas que lhe surgem nas faces quando ri, são os cabelos, longos, lisos, pretíssimos, marca registrada das mulheres da sua família, que dão essa impressão de singela beleza que lhe reconhecemos acima, embora estes também estejam sempre ocultos por um véu, pois dessa forma uma mulher virtuosa deve andar, de corpo e cabeça sempre cobertos, pois a Jeová agrada tanto o respeito que se tem pelo corpo quanto os cuidados que se dão à alma. Daí resulta que normalmente dela se possam ver apenas os olhos, estes muito negros e profundos, grandes, brilhantes como pérolas do Egeu, dessas que os mercadores vendem a altos preços nos mercados de Roma, Alexandria, Damasco, Corinto, Antioquia e Éfeso, para citar apenas algumas das metrópoles desse grande império que se apresenta orgulhoso, nos estandartes com suas águias e insígnias, onde a sigla SPQR quer dizer que todos os povos que nele vivem podem se sentir ali representados, pois Roma é formalmente uma república, embora seu governo seja exercido por um imperador.
Como se costuma dizer, os olhos são janelas da alma e é através deles que se pode perceber, dentro da alma da menina Maria, o desenvolver de uma intensa vida interior, que se diria impossível encontrar em uma mocinha que viveu tão pouco tempo e viu tão pouca coisa do mundo. E que mal saiu da sua tosca aldeia, apenas uma ou outra vez, sempre para ir a Jerusalém, que dali não dista mais que quatro ou cinco horas de uma boa pernada, nos dias de festa, pois nessas ocasiões, todo judeu se obriga a comparecer ao Templo para prestar culto ao Deus do país.
A menina sabe, desde que lhe desceu a primeira regra – pois que essa é uma sabedoria arquetípica –, que seu corpo foi feito para receber e germinar a semente de um homem. E que a função essencial de uma mulher é dar descendência ao povo de Abraão, pois Jeová lhe prometeu que essa descendência seria incontável como as estrelas do céu ou os grãos de areia do deserto, medida essa que fica para escolha de quem tiver a curiosidade de saber qual das duas realidades se conta por maior quantidade. 

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Maria vive em um país cuja cultura é fundada sobre rígidos costumes e severos princípios morais, o que a força naturalmente a mitigar sensibilidades relacionadas à libido. Mas sendo mulher, não há como evitar que elas lhes sejam despertas sempre que um varão a olha de certa maneira. Isso é o que fazem aqueles indivíduos abrutalhados, do corpo da guarda do rei, e os soldados betusianos que trabalham na segurança do Templo em Jerusalém. Que olham para ela de uma forma indecente, não há dúvida. Aliás, fazem isso com todas as mulheres que passam diante dos seus olhos. Toda vez que ela vai à cidade, sempre acompanhada de um séqüito de mulheres da aldeia, que andam religiosamente atrás dos homens, os soldados se põem a fitá-la de tal forma, que ela se sente despida pelos olhares compridos que lhe são lançados. As mulheres da terra temem esses indivíduos, pois de ordinário não lhes custa muito faltar com o respei-to que se deve a elas. E neste tempo e lugar de costumes tão severos, mulheres não podem ficar a tagarelar com estranhos nem se perder em olhares furtivos, pois tais posturas podem ser interpretadas como convite a comportamentos mais ousados.
Afinal, a maioria dos soldados da guarda de Herodes nem judia é. Daí que sequer sabem dos bons preceitos da terra, que mandam que se tenha o devido respeito com as mulheres. Então não custa muito que um desses ímpios ignorantes, de repente erga a túnica e fique a expor e sacudir o infame falo, coisa que alguns deles já fizeram mais de uma vez para provocar os austeros filhos de Israel. Esses atentados ao pudor são comuns na cidade, especialmente quando se trata de soldados, e não poucos tumultos já ocorreram por causa disso, pois os judeus levam em alta conta as tradições herdadas dos seus antepassados. Conta-se que, de certa feita, um desses brutamontes abusou demais do vinho, e abaixando o calção, expôs o membro viril, ficando a sacudi-lo e a gritar impropérios e palavras de baixo calão para um grupo de judeus e suas mulheres, que por ali passava. A comoção foi tanta, que para evitar um tumulto de conseqüências imprevisíveis, o tal soldado foi preso e teve o indigitado membro amputado em praça pública, morrendo em seguida, esvaindo-se em sangue. O evento, entretanto, não fez escola, pois não inibiu o comportamento desrespeitoso deles, que continuam a praticá-lo com freqüência. Aliás, disseram mais tarde que o tal soldado só foi castigado dessa maneira por ser um sírio sem eira nem beira, cuja vida a ninguém interessava preservar. Por isso, agora a prática é mais ignorar que reagir, e isso é que os judeus fazem.
Mesmo sem muita informação a respeito de assuntos dessa natureza, Maria sabe quais as conseqüências que podem advir quando uma mulher ousa desafiar os limites da virtude e corresponde aos olhares lôbregos que lhes são lançados. São muitos os becos na cidade, para onde uma mulher pode ser arrastada por um desses brutos e seviciada de forma que ninguém a possa socorrer. As conseqüências dessas violações, quase sempre trágicas, nunca terminam sem a morte de alguém, um pai, um irmão, um marido, um parente qualquer que se faça de valente e resolva tirar cobro da ofensa feita. Sendo israelitas os ofensores, bem, existem as leis de Moisés, que mandam que tais estragos sejam punidos ou compensados na devida forma: cinqüenta ciclos de prata para o Templo e casamento forçado, ou então a morte por lapidação, pois é assim que manda o bom preceito que o profeta lhes legou, tão logo saíram do Egito os seus ante-passados e principiaram a criar esse país diferenciado que constitui a nação dos judeus.
Mas nestes tempos bicudos em que a influência estrangeira torna lenientes os magistrados, pouco se pode confiar que os justos ordenamentos dados por Moisés sejam cumpridos. Por isso é melhor que se previna antes, pois depois do mal acontecido, possível é que não se encontre mais remédio. Outra conseqüência que pode advir dessas violações, esta ainda pior que a primeira, não é a morte que sempre ronda esses eventos, pois ela, mais que problema, traz solução para tudo, e sim a vida que tem a infelicidade de ser gerada desses conúbios forçados. Porque esta, sem ser abençoada pela lei ou pela religião, além daqueles que a produzem, acaba perdendo também quem a recebe; e a mulher violada, sem marido, com filho, ainda que não o tenha desejado, que tenha participado do evento com inocência, que tenha se defendido da violação, gritando, chutando, fechando as pernas, lutando com todas as forcas para salvaguardar a honra, como está escrito nos livros da lei que ela tem que fazer para não ser julgada conivente, acaba sempre repudiada e posta na conta das perdidas, dessas com as quais se enchem os prostíbulos. E ao filho assim gerado – infeliz dele –, o que sempre lhe resta é uma dessas profissões que acabam fatalmente levando o seu praticante à cruz. 
                                                                           
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Não obstante, a uma mocinha de dezesseis anos, posto que a concentração hormonal está no pico, não faltam ilusões. Com estas, as cismas e a curiosidade, natural em quem ainda não conhece homem, fazem com que ela se sinta constrangida quando um deles olha para ela daquele modo que os soldados fazem. E embora saiba que existe um quê de pecado nessa cinestesia, ela não pode deixar de pensar no momento em que o conhecimento do bem e do mal lhe será apresentado. Pois esse foi, sem dúvida, o pecado de Eva, pelo qual as mulheres ainda estão pagando a maior parte, pondo no mundo os filhos dos homens com sofrimento e perda de sangue. Isso, pelo menos, é o que está escrito nos livros sagrados dos judeus e não custa acreditar na veracidade dessa proposição, inteligentemente disfarçada na metáfora do fruto colhido da árvore da vida.
Maria sonha, que de ordinário é costume das mocinhas da sua idade sonhar; e em seus sonhos há sempre um jovem pastor, bonito como teria sido aquele antecessor famoso da sua aldeia, que foi um grande rei. E segundo as histórias que se contam sobre ele, era de bela figura, alto, forte, formoso de rosto e de certo bem dotado dos petrechos de varão, ( ainda que a melhor das suas figurações, feitas por um famoso escultor florentino, o tenha retratado com músculos demais e virilidade de menos). Conta-se, no entanto, que as mulheres não lhe resistiam aos encantos, tanto que Jeová, mesmo o tendo em alta conta, já que o escolheu para ser rei do povo por Ele amado, teve que castigá-lo por suas muitas façanhas amorosas. Estas, tanto quanto os seus feitos militares, estão descritas com muitos detalhes no livro que fala dos reis de Israel, o que mostra quão relativo pode ser o conceito de virtude, pois até o inflexível e austero Deus dos judeus se torna extremamente tolerante quando lhe é conveniente.
Mas a um varão assim, de certo Maria não teria muito pejo em entregar a flor do seu corpo. Afinal, honroso seria germinar a semente da sua descendência e ser a mãe de um filho real, o que a faria ser abençoada por muitas gerações, como foi aquela Raquel, esposa de Jacó, também conhecido como Israel, o fundador da nação dos judeus, e cujo túmulo ainda hoje pode ser visto a meio caminho entre Jerusalém e Belém.
Além disso, ela não ignora os oráculos feitos pelos profetas da terra, pois ainda que não se permita que as mulheres leiam os rolos da lei e fiquem a discutir o que querem dizer as metáforas, os vaticínios e o complicado jogo de palavras que mascaram o verdadeiro significado desses escritos, às sinagogas elas vão regularmente, como os homens. E as leituras elas ouvem, caladas, no lugar que lhes compete ficar. Maria conhece, portanto, todas as falas dos profetas, especialmente a daquele Isaias, que previu, há mais de quinhentos anos atrás, que uma virgem conceberia e daria luz a um filho, ao qual se daria o nome de Em-manuel, nome de anjo e não de gente, diga-se. Como pouco entende dessa sabedoria que se ensina aos homens letrados do país, especialmente essa divina arte de combinar as letras do alfabeto com seus valores numéricos, e dessas combinações gerar palavras que concentram conteúdos de poder e ciência, a mocinha não perde tempo em matutar no que isso quer realmente dizer. Que o nome Emmanuel pudesse conter um significado secreto, que poderia ser interpretado como uma visita do próprio Jeová ao seu povo, par a com eles morar e experimentar todas as sensibilidades com que Ele havia dotado as suas criaturas,é uma idéia que nunca lhe passou pela cabeça, pois ela jamais suspeitou que essa profecia fosse simplesmente uma metáfora, dessas de que estão cheias as escrituras judaicas. Na verdade, para ela, como para a grande maioria do povo judeu, essa profecia era uma literalidade que devia ser entendida como vontade expressa do Senhor dos Dias, que se cumprirá no devido tempo.
Na verdade, Maria não especula sobre esses assuntos, pois sua mente simples poucos produtos dessa arte chamada filosofia, orgulho dos gregos, pode produzir. Desprovida que é das matérias primas que se fazem necessárias para essas fábricas, ela sequer saberia como elaborá-las. Mas sabe ela, por tanto ouvir dizer, que a sabedoria oculta nas palavras que Jeová ditou aos profetas confere àqueles que a conhecem o dom de antecipar as coisas que ainda irão acontecer. Essas aulas, os rabinos que compartilham dessa sabedoria dão secretamente a alguns poucos pupilos, os iniciados, título que se dá aos privilegiados estudantes que são escolhidos a dedo para aprender o que não se pode ensinar ao povo. Por isso, pensa a menina Maria que a profecia do nascimento de um filho de mulher virgem, de certo deve ser um desses segredos só explicáveis através dessa misteriosa arte, que dá aos sábios que a praticam a capacidade de interpretar os sortilégios que a criação humana está fadada a viver. Afinal, sempre lhe ensinaram que o Deus de Israel tudo pode e não precisa justificar a ninguém os seus atos. Milagres, prodígios, são obras constantes de suas mãos. Nascimentos miraculosos, por exemplo, são coisas corriqueiras na história do seu povo. Não foi assim com Sara, aquela que foi esposa do patriarca Abraão, que era de idade avançada, e estéril além de tudo, quando gerou Isaque? E se Ele fez assim com uma mulher já desprovida da capacidade de procriar, ela pensa que Ele pode fazê-lo com mais facilidade com uma virgem, na flor da idade e ventre adubado pelos hormônios próprios da juventude. Afinal, se diferença houver entre a terra infértil, que recebe semente, mas não tem capacidade para fazê-la germinar, e a terra fértil que nunca recebeu semente, mas mesmo assim germina, essa diferença deixa de existir quando a Mão de Jeová opera como adubo ou arado. 
                                   
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É verdade que bem mais simples e lógico seria imaginar Jeová se valendo dos processos naturais que Ele mesmo criou para dar geração à espécie humana. E por certo até mais edificante e bonito fosse se Ele produzisse as coisas dessa forma, considerando que juntar um homem e uma mulher pelos laços do amor e do desejo, fazê-los frutificar e dar vida às suas crias, talvez seja bem mais trabalhoso e difícil do que recuperar um útero seco ou fertilizar um ventre virgem sem a utilização de semente viril. Aliás, o que Maria não sabe, é que algumas dessas coisas os homens aprenderão a fazer com as ciências que desenvolverão, o que quer dizer que, no futuro, já não se precisará de um Deus para produzir tais resultados, enquanto que para fazer nascer o amor entre duas pessoas, uni-las em prazeroso conúbio, deste germinar uma cria e depois conduzi-la por boas e seguras sendas, fazendo dela uma criatura digna da família Dele, será uma tarefa tão difícil que talvez seja preciso intervenção divina para realizá-la como se deve.
É claro que não podemos exigir de uma mocinha como ela especulações dessa ordem. Ela jamais as faria, seja porque não tem linguagem suficiente para entabulá-las em sua mente, ou porque a cultura que molda sua forma de pensar nunca permitiria que as fizesse. O registro aqui feito é para que não se imagine que a gentil donzela teria pensamentos desse tipo, e num futuro recenseamento das influências que moldaram esta história se venha a fazer dessa jovem uma idéia diferente da que se tem hoje, pondo-se alguém a figurá-la como uma dessas George Sand ou Simone de Beauvior, que de vez em quando aparecem no mundo para pô-lo de cabeça para baixo. Esse pecado, se pecado for o livre pensar, ela não deve. O escriba que tais pensamentos registra, sim, certamente que os deve e pagará, sabe ele, com o castigo que cedo ou tarde alcança todo livre pensador: o desdém das mentalidades comportadas, que se conformam aos moldes que lhes foram impostos pela cultura em que foram criadas. Mas se inferno há, todos seremos encontrados lá, ainda que por diferentes razões. O escriba por ter blasfemado, os conformados por não terem experimentado o gostoso molho da ousadia.
                                            
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O que a jovem Maria nem desconfia, entretanto, é que os nossos sonhos, quer acreditemos neles ou não, podem se realizar. Sonhos são pensamentos que se constroem à semelhança de edifícios; quando erguidos sobre rochas, chamam-se projetos; se edificados sobre a areia, chamam-se quimeras. Mas quer seja um projeto ou uma fantasia, ambos são semelhantes aos planos que se traçam para a produção de uma obra de construção civil ou um artefato de oficina ou fábrica. São gestados no interior da nossa mente imaginativa como uma presença incerta, indefinida, inexprimível, e ali ficam até que os levemos para a prancheta da razão, onde adquirem forma. Depois, se tivermos força e coragem suficiente para levá-los até a oficina onde trabalham nervos e músculos, eis que eles começam a ganhar a devida consistência. Destarte, se energia temos para movimentar esses dois equipamentos – mente e corpo –, e impulsioná-los para um trabalho de concretização desses produtos, veremos que a coisa toda vira obra. Se não, o que resta dos nossos sonhos são desejos insatisfeitos que nos ficam assombrando a mente, como se fossem apenadas almas que não lograram receber um corpo para nascer.
Há quem afirme que dentro da nossa mente inconsciente existe uma espécie de gênio que está sempre a considerar os nossos mais secretos desejos. Só que ele é muito burrinho e não sabe distinguir a fantasia da realidade. E também não sabe o que são essas coisas que a nossa razão chama de Ética, Moral, Justiça, Direito, etc., que são deuses absolutamente lógicos, não sendo à toa que a maioria deles tenha sido personalizada pelos gregos. Mas são eles que presidem as regras de convivência social, e ao patrulhar as ações do nosso gênio evitam que cometamos muitas besteiras. Mas também, na contra vertente, às vezes nos impedem de operar com a plena capacidade dos nossos recursos e nos colocam muitas limitações. O nosso gênio realiza os nossos desejos, muitas vezes das formas mais inusitadas. Se lhe pedimos dinheiro, por exemplo, ele tanto pode nos fazer ganhar um prêmio na loteria, quanto nos levar a assaltar um banco ou a planejar um grande negócio. Se for com a fama que sonhamos, ele tanto pode nos transformar em um portento das artes ou do esporte, quanto num assassino frio que esquarteja dezenas de pessoas pelo simples prazer de ver sua foto publicada nos jornais. Enfim, sabe-se lá que estratégias pode ele sugerir para nos levar a esse resultado.
Quem sabe não é isso o que acontece com Maria? Donzela com hormônios no pico, ela não tem medo de sonhar com seu mocinho bonito. E mesmo não tendo a coragem de contar tais sonhos a ninguém, receio também não tem de exprimi-los nos olhos e nos suspiros que exala ao entardecer. E sendo assim, quem sabe o sonho dela não se realiza numa tarde, ou num princípio de noite dessas, em que o calor não a deixa pegar no sono e ela sai para sentar-se no terreiro, num banquinho de madeira em frente à casinha onde vive? Pois é ali que a encontraremos, a olhar as estrelas sem conta, brilhando no firmamento sem limite, como se fossem pirilampos estáticos grudados na abóbada celes-te, ou alguns, que dela se desgarram, distantes vagalumes a piscar no ar, como aquela estrela que marca o céu com um longo rabisco de luz que se apaga sozinho algures. Essa é a hora em que o mundo de fora se conjunta com o mundo de dentro e uma doce languidez se espalha pelo corpo de todos quantos se entregam a tais devaneios. É nesses momentos, só nesses momentos, que se consegue ouvir a voz da garota, que se nota agora, é suave como o gorjeio de um arroio na floresta. E ela está cantando uma velha canção dos dias de Salomão.

“ Eu sou trigueira, mas formosa,
Ó filhas de Jerusalém.
Como as tendas de Cedar,
E os pavilhões de Salomão.
Não me olheis a morenice,
Pois o sol mudou-me a cor,
Meus irmãos não me conhecem
Nem me querem receber.
Diz tu, ó meu amado,
Onde apascentas teu rebanho,
Onde armas tua tenda
Para que eu possa te encontrar.”

E depois, eis que a vemos respirar fundo e perscrutar, à sua volta, os outeiros que se descortinam até onde a vista alcança, sentindo a brisa fresca a soprar-lhe nos cabelos. Podemos ver, agora que ela não está usando o véu que sempre lhe cobre a cabeça quando se apresenta na frente de outras pessoas, o quanto são realmente negros, de fios grossos, lisos, a cair-lhe numa cascata escura sobre os ombros. E agora é possível apreciar-lhe também o rosto, de cútis bem morenas, frescas, juvenis, e os lábios finos que se entreabrem como se estivessem experimentando um leve roçar de outros lábios, que a menina, diga-se, não sabe como é, pois nunca teve qualquer experiência nesse sentido. E essa coisa de beijar na boca não é uso comum entre os judeus; pelo menos não da forma voluptuosa e lasciva como fazem os gentios, principalmente gregos e romanos, esses sim, segundo dizem, são uns pervertidos morais que usam até os do mesmo sexo como parceiros das suas sem–vergonhices e descobrem sem pejo e pudor a fealdade de suas irmãs, tias, sobrinhas e filhas, como se animais fossem todos. Que Jeová os tenha na conta de amaldiçoados pelos séculos dos séculos e não os deixe escapar da ira vindoura, que além de punir os maus, os invejosos, os violentos, os avaros, também levará para a eterna danação os lascivos, os impenitentes, os sodomitas, os promíscuos e todos aqueles que desdenham dos bons preceitos que Ele legou aos homens. Claro que não é da menina Maria que partem vitupérios dessa ordem, pois mesmo que os quisesse lançar sobre os ímpios filhos das trevas que vieram de outras terras para contaminar as crenças do seu povo, decerto não o poderia fazer por que desconhece tudo quanto diz respeito aos costumes deles. E de beijos e outros achegos, que ela ouve dizer, acontece entre dois amantes, só sabe mesmo o que contém os velhos poemas que constam das escrituras. Estes, dizem, foram escritos pelo sábio rei Salomão para as muitas amadas que passaram pela sua cama e são lidos em círculos muito restritos, pois mesmo sendo parte dos escritos sagrados, conhecido é o respeito que os judeus devotam ao recato que se deve observar nessas questões. Por isso, só quando está sozinha, como agora, é que ela cantarola essas canções, reconhecidamente lascivas.
 
“ Beije-me, com ósculo da tua boca,
Os teus peitos são melhores do que o vinho,
Fragrante como o bálsamo mais precioso.
Teu nome é como o óleo da unção.
Por isso todas as donzelas te amam.
Leva-me contigo, meu amado,
Nós seguiremos o teu perfume.
O rei me introduz nos seus celeiros
No seu amor nos regozijamos.
No seu prazer nos alegramos.”

Como nos é dado ver, rústica sim e muito recatada também é a meiga filha do pastor Joaquim, mas não menos romântica do que qualquer mocinha da sua idade. E por certo imagina que não terá a realização dos seus juvenis devaneios se casando com seu prometido noivo, pois já o sabe viúvo e beirando os quarenta anos, com filhos ainda pequenos para criar e carpinteiro por profissão. Até porque essa figura não o aproxima nem um pouco da imagem idealizada que ela faz daquele que dizem ser seu conterrâneo, o rei Davi, jovem e formoso pastor-guerreiro, a quem ela de pronto se entregaria de muito bom grado se ele se encantasse por ela como se encantou com a bela Betsabá, que além de tudo era estrangeira e casada, o que não a impediu – tais são os estranhos desígnios de Jeová – de dar ao seu povo o maior de todos os seus reis, o sábio Salomão.

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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/04/2011
Alterado em 09/05/2011


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