João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


AS TRÊS CRUZES
AS TRÊS CRUZES


Idail era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria o rei desse negócio de humilhar pessoas na escola, de desclassificá-las no trabalho, ofendê-las nos grupos, acabando com a auto-estima delas.Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e algumas pessoas descobriram que umas pessoas são mais fracas que outras. 
Os meninos menos espertos e menos valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados. Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos que usavam óculos, que geralmente eram garotos bem educados, mas não conheciam os truques sujos que o Idail e seus amigos /aprendiam na rua.
Um deles era o chamado “Pau de Bosta”. Consistia em simular uma briga, na qual um deles se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então um dos brigões dizia para ele largar o pedaço de pau e brigar de mãos limpas, se ele “fosse homem”. Em volta dos dois brigões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga. O brigão armado escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segurar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bastão, o sacana o puxava com violência deixando a mão do “engomadinho” toda suja de merda.
Essa era uma pegadinhas mais frequentes. A outra era esconder os óculos dos “quatro olhos”. Os coitados ficavam doidinhos. Era uma judiação.

Brigar era outra das atividades preferidas do Idail. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.
Aos quatorze anos caçava gatos para esfolar e tirar as peles. Vendia-as para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito saborosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato.
Aos quinze anos foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no armazém à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardinhas em lata, algumas latas de conservas e um punhado de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar. Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes. Esses todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.

Os pais do Idail nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os outros garotos que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.
Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a vender também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quantidade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.
Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.
Geralmente tudo ficava na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Idail naquele caso. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele.
Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.
Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lotados e a burocracia era um inferno.

Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com freqüência e nessas ocasiões ficava muito violento. A principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Idail.
Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Idail sabia que a barra ali era pesada, por isso nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada.
Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. A briga do indivíduo com sua irmã tivera início na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, começara a espancar a mulher. Ela correra para a sala, onde ele estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã sangrando e não teve dúvida. O cunhado era um cara grandão, pelo menos uns vinte quilos mais pesado que ele e uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. Não adiantou sua irmã gritar, chorar e se escabelar, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos. Ele parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Idail babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.
“Ele ficou quem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todo mundo queria saber como foi que acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo.

Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele não precisou passar mais que algumas horas numa delegacia.
A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era uma superstição que a sua mãe havia plantado na cabeça dele. Ela, que era dada a freqüentar centros espíritas disse a ele que o espírito das pessoas que a gente mata costuma ficar de encosto no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois lhe parecia que nunca estava sozinho. Em qualquer lugar que ia, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre de alguém o observando.
Ao cabo de alguns meses carregando aquele sentimento, ele foi a um dos centros espíritas que sua mãe costumava freqüentar. O médium que o atendeu lhe disse que as pessoas que morrem violentamente costumam ficar vagando na escuridão, e por não encontrarem caminho para a luz, não conseguem desencarnar definitivamente. Ficam presos à matéria, mas como não têm corpos para se hospedarem, sua única referência no mundo da matéria é a pessoa que lhes tirou a vida. Indagado como poderia fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de trabalhos que deviam ser feitos, como despachos numa cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser feita, além de outras várias oferendas que deveriam ser feitas ao dito espírito, para ver se ele o perdoava e acabava, afinal, por entender que estava morto e devia libertar-se da matéria definitivamente para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.
Mas a principal oferenda que o Idail devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de rapaz perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a fazer o bem. Não devia mais brigar, nem machucar ninguém, nem judiar de pessoas mais fracas ou de animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranqüilo, trabalhador e honesto.
Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Mas não se pode dizer que o Idail não tenha tentado. Arranjou um emprego numa fábrica e passou a freqüentar o centro espírita. Participava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos amigos, quando estes o convidavam para sair e fazer alguma estrepolia. ¨Não posso”, respondia ele. “Hoje vou sair com a minha namo-rada.”
Todo mundo se espantava com a mudança sofrida pelo Idail. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranqüilo, que não provo-cava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.

Toninha era o nome da menina que ele dizia que estava namorando. Ele a conhecera numa das seções do centro espírita que freqüentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encontrar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando. Por isso ele nunca conseguiu acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois seria uma tragédia se alguém da sua família a visse com ele. Idail não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos cinqüenta.
Toninha morava numa chácara, afastada cerca de uns quinhentos metros de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da chácara.
Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Idail achou que era hora de ir falar com os pais dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se estivessem praticando um crime. Disse a ela que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe contasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desesperança que ele via no rosto dela.
“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência do Idail. Então, esse era o segredo dela, ele pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é que significava, para uma moça naqueles tempos, se perder.
Não era mais moça, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez pensasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.

“ E o rapaz, o que aconteceu com ele?”, Idail perguntou.
“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, ela disse.

Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Idail passou muitos dias pensando no caso. Toninha então, era uma menina daquelas. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo a haviam perdoado. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria, com outro rapaz. Por isso o pavor dela em vista com outro rapaz.
Ponderou bastante o caso. Era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ninguém comentara sobre esse assunto com ele. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha. Isso o tranqüilizou. Ponderou que ele também tinha muita culpa para pagar. Era um criminoso. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez perdoando a namorada ele não afastaria definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto?
Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável. Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la.
Quando, na terceira semana, ela não apareceu no centro espírita na quarta-feira, para a sessão da semana, ele, no dia seguinte, encheu-se de coragem e foi até a casa dela, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Ele perdoaria tudo. Ele queria casar com ela o mais rápido possível.
Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família dela. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito dificilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam aceder.

“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.
“Porque, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Idail.
“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.
“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Idail. É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos.”
“Olha moço”, disse o caseiro, já demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai. Foi uma vagabunda que se perdeu com um rapaz e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança ha uns quarenta anos atrás. As duas cruzes que você vê na entrada da chácara foram postas por causa deles.”

O Idail se tornou um cara triste e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso, largou o trabalho e só era visto de noite, rondando a Chácara do Alemão. Ficava sentado no barranco, em frente as duas cruzes, segundo diziam, fumando maconha. Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espirita. Um dia, passados uns  três daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, o sair pela manhã para buscar pão, encontrou Idail morto perto das duas cruzes. Tinha um canivete de molas esperado no coração. Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. Apenas as cruzes que eram duas passou a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.

Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi loteada há uns dez anos atrás e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se viam no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o porquê delas. Houve quem afirmasse que elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropei-ros onde ele passou a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas em homenagem à missa que foi rezada ali. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.
O que maioria concordava era que o local era realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam aparecer ali para assombrar as pessoas. Duas eram de homens, uma era mulher e a outra era de um nenenzinho de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.
Os que viram e ouviram essas coisas juram que tudo é verdade. Mas a maioria achava que tudo não passava de lenda.Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento era tão comum e tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas.
Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.

Para terminar, vou dizer que as pessoas que conheceram o Idail testemunharam que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O eentro espírita que ele freqüentava ainda existe hoje e algumas pessoas que o frequentam dizem que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da sessão para pedir reza, vela e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda ele está vagando.


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/05/2011
Alterado em 03/05/2011


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras