João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos




Pobre Maria! Qual não deve ter sido a sua dor, o seu desespero e os temores que assaltaram seu coração quando, de volta a Nazaré, foi informada da triste sina que atingiu José? Como soube ela desse horrível fato? Talvez por informação de vizinhos, ou por conta das incômodas visitas dos soldados romanos, que recebeu em duas ou três oportunidades, pois eles, durante algum tempo, andaram varejando toda a redondeza à cata de quem tivesse participado daquela revolta, ou de quem pudesse acender de novo aquela fogueira que havia sido extinta com tanto sangue.
Não importa como ela soube, medo é o que ela teve de que seus filhos pudessem ser envolvidos naquela tragédia, porquanto o limite entre a infância, a adolescência e a idade viril não eram contas que se faziam naqueles dias para julgar se uma criatura podia ou não ser posta do rol dos indivíduos perigosos para o status quo. Muitos meses tiveram os garotos que passar escondidos nas cavernas que havia nas redondezas durante o dia, só voltando para casa á noite. Havia muitas grutas nas pro-ximidades de Nazaré para servir de esconderijo, e nelas é que a juventude da aldeia se homiziou para evitar a prisão e a morte. Somente depois que ficaram certos que o perigo havia passado, é que os jovens filhos de Maria voltaram para casa para recomeçar uma vida, que sem José, agora muito mais do que antes, se tornara extremamente difícil.

“ Infeliz José! Se o que foi escrito a teu respeito, que eras humilde e cordato, que tinhas a alma tocada pela santidade da virtude e da bondade, e muito da sabedoria que o teu adotivo filho possuía, de ti veio por herança, não era verdade, pelo menos enquanto a certas qualidades que tinhas te fizeram justiça! Porquanto eras simples deveras, tinhas ternura sim e de caráter íntegro também eras provido; foste justo e correto em tuas ações, honesto em teu comércio, sacudido no serviço, comedido no comportamento e nas palavras, frugal e sóbrio em tudo que fizeste, como só acontece com um homem da tua estirpe e con-dição. Só não tinhas sabedoria suficiente para fugir dos engodos que a vida nos coloca, isso certamente não. Se tivesses, não terias feito a bobagem que fizeste, fugindo da tua pequena Belém e vindo para essa Galiléia conturbada e cheia de armadilhas, onde encontraste esse desfecho cruel que parece ser o destino dos homens da tua família! “

O que teria acontecido para que ele fosse contado no número dos revoltosos? Essa deve ser a pergunta que Maria fez no momento em que soube do infausto acontecimento. Homem pacífico, que jamais se envolvera em questões políticas, que nunca reclamara do que quer que fosse, que mal falava das necessidades da vida, porque justo ele teria de terminar seus dias assim, pendurado em um madeiro, como um reles criminoso? Talvez José mal pensasse, pois assim era que as pessoas da aldeia o julgavam – José, o taciturno, José, o caladão –, por causa do seu pouco falar, pelas parcas opiniões que emitia.
Pois de quem pouco fala sempre se acha que também pouco pensa. Deles se imagina que jamais terão problemas com as coisas da política, pois esta nunca dispensa a boa lábia, uma prolífica verborragia e o cultivo da ciência do bom discurso – essa preciosa sabedoria que só se adquire com a aprendizagem dessa nobre arte chamada dialética.
Pela língua, portanto, que geralmente perde os que dela muito se valem, é que ele não pode ter sido condenado. Seria então porque não tenha sabido se explicar, pois dessas incompetências muitos maus resultados também nos advêm? Em situa-ções como essa, que não é nova nem jamais deixará de repetir-se, morre-se pelo muito que se fala ou pelo pouco que se consegue falar; e depois, pouco se dá se quem morre é um mero carpinteiro sem nome e sem fortuna, de muito ou pouco verbo, que este detalhe, em casos dessa natureza não é moeda boa, com a qual se possa negociar, principalmente com gente tão bruta, tão ignorante, como são esses romanos.
E também, que teria ele para explicar, que afinal, gente pobre, sem berço e sem terço – que não é expressão daquelas terras e tempos, mas cabe bem neste contexto –, por mais que se explique, nunca consegue justificar o fato de estar sempre no lugar errado, em hora também imprópria? E o que se perde, nesses casos, não vale a pena reclamar nem se por a procurar.
Mas essas são perguntas que não se pode deixar de fazer e talvez Maria e seus filhos a estejam fazendo. Por que José, um pobre carpinteiro, homem bom, que só vivia para a família, teria que terminar sua vida dessa forma degradante, pendurado em um madeiro, como carnes que um açougueiro expõe ao sol para serem desidratadas? Que fizera ele para encontrar um fim desses, com os abutres voejando em volta do seu corpo, alguns pousando sobre a sua cabeça, como que a montar guarda sobre uma carcaça da qual já tomaram posse? E será que é por piedoso respeito em relação ao homem que ali está, ou por motivo mais profano – porque nos milhares de postes enfileirados na beira da estrada há repasto muito melhor, com mais abastadas carnes –, que eles não se apressam a feri-lo com os aduncos e afiados bicos?
Por que morrera de morte tão infamante como se fosse um criminoso dos mais abomináveis? Sim, pois só os dessa laia recebem tal penalidade. Por que coisas ruins têm que acontecer com pessoas boas? Certo é que à Divindade pertencem todos os desígnios, e debaixo do sol reinam a impiedade no lugar do juízo e a iniqüidade no lugar da justiça. Pois foi assim que ensinou o Pregador quando disse que entre os brutos e os homens reina igual sorte, e do mesmo modo que morrem uns, morrem outros.
Mas Maria não pode conformar-se com isso. Que fizera José para ter tal sorte, ele que nem com o prazer de comer com fartura os alimentos, e beber com prodigalidade o vinho – recompensa que a obra das mãos proporciona àqueles que não conhecem a preguiça –, fora aquinhoado? Que fizera ela para merecer isso? Sim, ela talvez tivesse merecido o fato de agora estar só, com cinco filhos ainda impúberes para guiar na vida. Sim, por que crime ela havia cometido e se agora o Senhor lhe cobrava a obra da juventude, ela de boa mente a pagaria.
Mas e José, deveria ele também pagar por isso? Qual a sua culpa, nesse caso, além de desrespeitar, por causa dela, a lei do país, recebendo-a por esposa, quando, na verdade, o que deveria ter feito era levá-la ao tribunal? Mas então, onde estaria a piedade, o perdão, a redenção prometida, o consolo de Jeová, se tudo isso precisava ser comprado a tão alto preço?

Tais questionamentos, é preciso que se diga, quem faz é o cronista, mas estes, certamente Maria pode ter feito também. Não são lavras exclusivas de quem gosta de pescar nas águas turvas da filosofia, mas meras queixas que podem ser formuladas por qualquer pessoa, por mais humilde e iletrada que seja, quando um infortúnio a acomete. Também em nada ofenderia ao Deus de Israel se ela os fizesse– por mais austero e circunspecto que Ele seja –, pois de certo Jeová não costuma castigar quem não entende o que Ele faz, nem se aborrece quando se Lhe inda-gam por suas estratégias. Sabemos sim, porquanto está escrito, que Ele pune os rebeldes, os descrentes, os ímpios, os que desvirtuam seus caminhos ou põem palavras na Sua Boca. Mas aos cismadores, aos curiosos, aos perguntadores, que apenas inda-gam sem contestar, que confessam ignorância sem se rebelar, que questionam sem criticar, Ele perdoa, e, às vezes, até ajuda a entender. Não são assim as crianças, que sempre mantém uma atitude de fascinação e curiosidade em face dos acontecimentos, e não têm vergonha de fazer as perguntas mais indiscretas? Não são elas os protótipos perfeitos das criaturas que serão recebidas com galardão no céu? Não é a elas que pertence o Reino dos Céus?
E depois, não foi isso também o que aconteceu com aquele Jó, a quem Ele deu muitas riquezas e depois tirou e tornou a dar em dobro, como prêmio pela sua fé? Não chorou Jó, não reclamou, não indagou de Jeová pela Sua Justiça, não questionou os seus métodos, quando lhe foram retiradas a fortuna e os filhos? Perguntemos pois, se quisermos respostas para nossas angústias e consumições, porquanto não é justo que as tenhamos e não nos seja dado o direito de indagar das suas razões.

Magistra natura, anima discípula. A alma é discípula da natureza e nada aprende se não for com essa infalível mestra. Assim como a planta castigada pelo inverno renasce quando o sol volta a prodigalizar seu calor à terra, também a vida mutilada pelas intempéries do destino reage a seu tempo. É sempre assim que acontece, nesses casos. Passados os primeiros dias de desespero, quando já não se sabe mais para que lado se virar, pois que todas as direções parecem estar obstadas por negros e impenetráveis muros, eis que as necessidades da vida fazem com que os músculos e os nervos se movimentem; e estes, por conta da inevitável unicidade que precisam manter com a mente ativam esta, e daí o rio da existência torna a fluir. Volta-se a pensar com critério e recomeça-se novamente a viver.
É o que acontece com Maria. Mulher forte, no físico franzino e castigado é que ela não é. Nos músculos e na gordura sócio-econômica, como tal entendidas as boas relações que se cultivam com amigos ricos e influentes, e a posse de bons cabe-dais, já sabemos que muito menos é provida a jovem viúva. Antes, frágil de força física e pobre em recursos financeiros é que ela se apresenta aos nossos olhos. Educação esmerada também não tem, conforme já sabemos. Jamais se aventurará no comércio como profissão, nem reivindicará influência no conselho dos sábios. Não foi pensando em mulheres como ela que o Pregador escreveu o elogio da mulher forte, belo discurso que consta do Eclesiastes, aquele livro que registra todos os ensinamentos dos grandes rabinos de Israel.
Mas tem que se fazer de forte com as fraquezas que possui. Não tem mais marido para orgulhar-se dela, assentado na assembléia dos juízes. Mas sobraram-lhe filhos e enteados, que agora dependem do seu juízo para serem criados e levados a bom termo em suas vidas. Os encargos dessa pesada tarefa estão agora sobre seus ombros estreitos e frágeis. Para complicar – porque desgraça pouca é bobagem e nunca vem no varejo, mas de atacado, o que quer dizer que uma puxa outra e de repente tudo desaba de uma vez só –, o momento é extremamente com-plicado. A rebelião de Judas Galileu foi dominada, seu exército dizimado, mas ainda há muita luta, muita violência grassando por essas terras, com enfrentamentos freqüentes dos soldados de Antipas e o exército romano, contra os bandos de guerrilheiros e salteadores que infestam a região.
A repressão não arrefeceu depois que Judas Galileu foi derrotado e se escondeu nas montanhas. A lei marcial não foi suspendida e todo dia se noticia que alguém foi preso ou morto em alguma refrega. E não foram poucas as vezes que o longo braço da repressão feriu tão próximo deles, na pessoa de um vizinho, um conhecido, que Maria teme por sua própria família. Herodes Antipas e seus aliados romanos têm espias por todos os lados. Como evitar que seus filhos e enteados não acabem se envolvendo nessas refregas? Judas já está quase com dezoito anos e Jesus com treze. E se os inimigos descobrissem que ele é filho de Judas Galileu? E se o menino descobrisse esse parentesco? O que fariam os romanos? O que faria ele?
Guerras são eventos que mexem muito com a cabeça dos adolescentes. O fragor dos combates, o retinir das espadas, o tropel dos cavalos, são vozes que falam mais alto aos jovens espíritos do que os discursos dos eclesiásticos e os ensinamentos dos pais e dos ancestrais. A glória, essa estrela que ofusca os olhos da juventude, brilha mais nos céus dos campos de batalha do que nos tetos das sinagogas. Maria teme que um dos meninos, ou ambos, possam ser seduzidos por esse canto de sereia, como outros jovens de sua própria aldeia já foram, e aí a desgraça estará completa.
Um dos meninos terá que calçar as sandálias do pai, metáfora usada na terra para designar o herdeiro das responsabilidades de chefe da casa. Mas qual deles fará isso e como? Judas, o filho de José, embora mais velho, não parece estar suficiente-mente maduro para tanto. Seu filho, com apenas treze anos, também carece de maturidade, conquanto em termos de sagacidade pareça ser mais velho que Judas. A vida precisa ser ganha e a carpintaria ainda é o único meio de sustento que a família pode lançar mão. Certo é que ela poderá trabalhar também, manipular o fuso e a roca, não apenas para vestir os seus, como fizera até então, mas também para o comércio, e pode voltar a fazer os queijos e os coalhos que eram tão apreciados em Belém. Enfim, a vida continua a fluir, inexorável como o curso de um rio. Ela não para só porque um dos canais por onde ele corria foi eliminado.
Dessa maneira, Maria assume o perfil da mulher forte, como aquela que foi elogiada pelo Pregador em seu discurso eclesiástico. Enquanto ajuda, com seus conselhos e bom senso o trabalho de carpintaria assumido pelos dois jovens, administra com sabedoria simples, mas competente, os demais assuntos da família. De tal forma que não se vê naquela casa a abjeta pobreza que faz desaparecer o pão da mesa e a candeia apagar-se de noite. E por conta disso, as pessoas assim contrastadas com tal penúria acabam sendo levadas à marginalidade. Ontem como hoje, as mazelas são as mesmas. Só nós é que não aprendemos nunca a lidar com elas. E é por isso que aos pobres sempre os teremos conosco, como bem disse o filho de Maria.
Maria trabalha em tudo que é utilidade e possibilidade, para uma mulher, nesses tempos, trabalhar, para que o sustento da família seja provido. Por isso, bem lhe cabe as palavras daquele outro sábio, que dizem: “muitas filhas ajuntaram riquezas: tu excedeste a todas, pois reunistes sabedoria e zelo.” Foi assim também que, mulher ainda jovem para a quantidade de dias que vivera, mas já tão desgastada pela qualidade da vida que levava, ela despediu-se dos prazeres que a natureza nos deu para gozar, na mesa e na cama. Porque na primeira nunca se serviu sem a manopla da frugalidade a limitar-lhe a quantidade e a qualidade dos alimentos; e quanto à segunda, se teve outros homens em sua vida, depois de José, a ninguém foi dado saber. Nós a iremos encontrar de novo, vinte e poucos anos mais tarde, aos pés da cruz em que seu filho foi pendurado para morrer, e nessa ocasião não consta que tivesse tornado a dividir seu leito com outro homem.


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/05/2011


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