João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



Sabe, Maria Eunice, a noite lá fora está escura. Estamos em fase de lua nova. Isso acontece todo mês, quando a Lua encontra-se em conjunção com o Sol e sua face visível fica às escuras, pois a visão que poderíamos ter dela fica totalmente obstruída pela luz do astro-rei.  Não é estranho isso? Que a escuridão apareça justamente por causa da presença da luz? Mas é exatamente assim. A escuridão é mais intensa tanto maior é a intensidade da luz. Assim também é a vida da gente. Por isso o ditado: quanto mais alto se sobe, maior o tombo. Quanto maior o prazer de se obter uma coisa, maior a dor da sua perda.
O mundo foi feito assim. Uma eterna luta entre dois princípios. Você, eu me lembro bem, era bastante apegada aos ensinamentos da sua igreja. Brigava comigo quando eu dizia que as histórias da Bíblia eram metáforas que não deviam ser interpretadas literalmente. Lembra-se quando eu lhe dizia que a expressão “ e exista luz; e a luz existiu. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas”, era a mesma coisa que os cientistas diziam quando afirmavam que o universo começou com uma grande explosão luminosa que brilhou na escuridão cósmica como um desses fogos de artifício que nós soltamos no reveillon ou nas noites de festas juninas, enchendo o céu de luzes coloridas? Você ficava danada da vida com essas comparações, principalmente quando eu dizia que o episódio de Adão e Eva era uma metáfora disfarçada do momento em que o homem sofreu as mutações que o transformou, primeiro em um antropóide andrógino, que congregava em si mesmo os dois sexos, depois num indivíduo sexuado, cujo sexo foi separado em dois, dando nascimento ao macho e a fêmea. Por isso é que ainda temos, na matriz da célula que nos dá origem, uma parte masculina e outra feminina, e nunca somos totalmente uma coisa ou outra.
                                                                                        
  (O big Bang)                         (O andrógino da teosofia)

 Você achava essas idéias horríveis, não era mesmo Maria Eunice? Dizia que preferia a idéia de que o homem foi feito bonitinho, todo perfeitinho, de um molde de barro, como diz o Gênese, e que Deus soprou nas narinas dele o sopro da vida. E que Eva tinha sido feita de uma costela de Adão, do jeitinho que está escrito no livro sagrado, sem tirar nem por. E ficava fula quando eu brincava com você dizendo que desse jeito Deus parecia um desses cientistas loucos que passam a vida nos seus laboratórios pesquisando os mistérios da engenharia genética para tentar descobrir os segredos da vida. E eles já fizeram clones, mudaram sexos e aprenderam a gerar embriões fora do útero materno. Estão perto de realizar o sonho dos alquimistas e dos cabalistas medievais, que era fabricar um ser vivo, semelhante ao homem.
Essas são coisas de Deus ou do Diabo, Maria Eunice? O que será que você pensa disso agora, vinte anos depois? Eu dizia que essa história de Eva ser feita da costela de Adão foi uma alegoria inventada pelos cronistas bíblicos para justificar a posição hierárquica inferior que era conferida à mulher nas antigas civilizações patriarcais, e que todas as religiões, inclusive o cristianismo, fizeram questão de conservar ao longo da história.  


Maria Eunice, Maria Eunice. Será que foi por isso que você me largou e acabou casando com aquele idiota da Polícia Militar que dizia que queria ser soldado por que esse era um emprego fixo e assim ele poderia casar e encher a mulher de filhos? Sim, talvez você não saiba, mas era isso que ele dizia quando a gente ia esperar vocês na porta daquela fábrica onde você trabalhava. Era legal aquilo. Naquela fábrica só trabalhavam meninas. E onde havia meninas, os meninos se ajuntavam como abelhas sobre um torrão de açúcar. Não era como hoje, que são as meninas que cercam os meninos como se eles fossem a caça e elas as caçadoras. Não sei se hoje é mais legal do que naquele tempo. Sei que é mais fácil. Não é preciso mais fazer charme, nem bancar o cavalheiro, nem praticar aqueles rituais de aproximação e sedução que o garoto tinha que saber para ganhar a menina. Lembra-se? Se o menino deixasse a menina andar do lado de fora da calçada diziam que ele estava “vendendo” a garota. Nos bailinhos, se você se recusasse a dançar com um menino e imediatamente saísse bailando com outro, que não fosse seu namorado, o garoto recusado começava logo uma briga porque tinha levado uma “tábua”. Pegar na mão levava uma semana. Beijo na boca custava um mês. Ir para a cama então...
Mas foi muito bom aquilo. Começamos a namorar desse jeito. Você saia da fábrica às dez horas da noite. Eu ficava em frente da fábrica, junto com outros meninos mexendo com vocês. Os mais ousados abordavam suas colegas e tentavam uma aproximação. Mas isso só acontecia quando vocês davam bola. Era aquela olhadinha de soslaio, um sorriso quando o gracejo caia bem, uma postura mais convidativa na rigidez do corpo, que nos diziam se podíamos ou não chegar mais perto e começar um bate papo. Depois, o que rolava ficava sempre por conta da lábia do garoto.
Você era a favorita de pelo menos uns três garotos da platéia que se aglomerava, todo dia, na porta daquela fábrica para ver o espetáculo das meninas saindo. Um deles era eu. Outro, que eu me lembro, era o Odair. Lembro por que ele é o idiota da Polícia Militar a que eu me referi algumas linhas atrás. Ele dizia que estava estudando para entrar na polícia porque então ia ter um emprego para toda a vida. “ Coitada da mulher que casar comigo”, dizia aquele imbecil. “Vou enchê-la de filhos”. Imaginei como seria a coitada que ia ser mulher dele. Pensei naquelas senhoras, que com trinta anos tem uma cara de cinqüenta e um corpo de sessenta. Imaginei uma cadela com uma ninhada de dez cachorrinhos, todos tentando mamar ao mesmo tempo. Só que ela possuía somente duas tetas. Ele morria de rir quando eu descortinava essas visões para ele.

“Você precisa de uma cadela e não de uma mulher”, eu dizia para ele. Só nunca imaginei que essa mulher seria você, Maria Eunice. São as voltas que o mundo dá. O mundo é redondo, o átomo é redondo, as células do nosso corpo são redondas, os grãos que compõem a matéria universal também têm essa conformação. A lua é redonda, por isso ela faz essas órbitas elípticas em volta da terra. Em conseqüência temos essas fases: nova, crescente, cheia, minguante. E tudo isso se repetindo eternamente. Nossa sensibilidade também vive fases semelhantes. Ora está escura como uma lua nova; de repente começamos a nos recuperar e tudo parece uma lua crescente. Quando a bola está cheia tudo é lindo. Depois começa de novo o ciclo minguante. E tudo vai e vem, numa eterna repetição de ciclos, como dizia o velho Nietzsche.
E nós somos como bolas rolando no espaço. Há sempre a possibilidade de nos chocarmos umas com as outras. E quando esse choque acontece ocorre uma interação. Uma interação promove uma relação. Uma relação gera outras relações. Somos resultado de relações e de relações entre relações. Jamais eu poderia pensar que um dia você acabaria se relacionando com o Odair. Você nunca deu bola para ele lá na saída da fábrica. Ignorou os gracejos dele como se fossem o relinchar de um cavalo. Aceitou os meus como se eu tivesse cantarolado uma canção que você gostava. Mas acabou se casando com ele. 

Foi assim que tudo começou. Eu me lembro que era uma terça-feira quando você me deu pista de que a minha senha fora aceita. Ah! sim, este negócio de senha é uma metáfora moderna. Naquele tempo não tínhamos disso. Hoje vivemos no mundo das relações virtuais e tudo tem que ter uma determinada senha para a gente entrar na sintonia do outro. Essas senhas têm que ser reconhecidas formalmente. Naquele tempo as senhas eram naturais. O garoto fazia um galanteio e a menina respondia, com sua linguagem não verbal, se gostava ou não. Se gostou, dava um sorriso disfarçado, fazendo o arco da boca ficar côncavo, acompanhado de um relaxamento nos músculos da face e um afrouxamento nos músculos do corpo.Se não gostou, a boca se fechava num arco convexo, acompanhado de uma rigidez nos músculos do rosto e uma postura mais empertigada no corpo. E o menino tinha que ter sensiblidade para interpretar essa linguagem não verbal e saber qual era a hora certa de entrar no cumprimento da onda dela.
Era assim e continua sendo assim. O nosso corpo tem suas senhas próprias quando gosta ou não gosta de alguém que se aproxima de nós. É como se ele dissesse “ eu me abro para você”, quando gosta da partícula que entrou no seu espaço, ou “eu me fecho para você”, quando não gosta. Só que hoje, parece, a sensibilidade para entender essa linguagem se deteriorou. Por isso as relações se estabelecem com tanta facilidade e se acabam com maior facilidade ainda. Não há mais o "rapport" que os antigos rituais de namoro exigiam. Hoje conhece-se alguém numa balada, toma-se um drink juntos, trocam-se duas ou três palavras e logo se vai para a cama. Ás vezes se acorda pela manhã perguntando " Hei, quem é você?" 


É claro que as coisas mudam com o passar do tempo. Existe no universo um troço chamado principio da incerteza que faz com que tudo se repita sim, mas não nas mesmas condições em que um determinado fenômeno se produziu. Não é bem uma incerteza, que é algo que a gente espera mas sabe que pode não ocorrer; é uma incertude, algo que a gente já tem como certo mas nunca sabe que realmente vai possuir. É como beatitude, a santidade que ainda não se completou, a mansitude, a mansidão que que ainda pode explodir em rebeldia, a solitude, que é a solidão acompanhada.  
Por exemplo. Se nós dois, Maria Eunice, pudéssemos voltar ao passado e mudar uma vírgula que fosse na nossa história, nada disso que você está vendo no seu quarto agora, e nada disto que o meu universo de dentro e de fora está me mostrando neste momento seria igual. Nós teríamos mudado tudo no universo, desde a posição das estrelas, a curvatura do espaço, o clima na Amazônia, a vida das tribos do deserto e a cultura dos maoris na Polinésia, a vida política e econômica das nações, a tua vida e a minha e a dos nossos filhos e de todas as pessoas no mundo, se você tivesse dito não em vez de sim para mim naquele dia em que eu perguntei se queria namorar comigo e eu tivesse sim em vez de não no dia em que você perguntou se eu ia me casar com você. Mas você disse sim naquele dia e eu disse não no outro dia. E então o mundo aconteceu de outra forma. E isso é assim porque você muda a conformação universal cada vez que troca de roupa ou de penteado, a cada vez que muda um móvel de lugar na sua casa, a cada vez que acede a um pedido dos seus filhos ou a cada vez que nega. Porque o tempo e o espaço onde estamos quando fazemos alguma coisa nunca é o mesmo. O mundo muda a cada respiração que damos, mas nós nos sentimos sempre os mesmos.Isso é incertude, Maria Eunice.Estar mudando a cada instante e no entanto achar que temos um eu, uma identidade que´permanesce sempre a mesma pela vida toda. Não, nãoprocure no dicionário essa palavra. Ela não existe.


   


                            
              

Ah! o Princípio da Incerteza? Ele foi descoberto por Werner Heisenberg em 1927 e se tornou um dos mais importantes postulados da moderna física atômica.  Mas do ponto de vista filosófico ele já havia sido deduzido por Jesus Cristo há mais de dois mil anos. Ele o expôs no seu famoso Sermão da Montanha: “ Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã cuidará de si. ; a cada dia basta o seu próprio cuidado.”(Mateus, 6;34)
Isso porque, na prática, o princípio da incerteza diz simplesmente que é impossível prever com exatidão o que acontecerá em cada momento seguinte da vida do universo e na nossa vida. Assim é porque primeiro nós nem sabemos onde estamos no momento em que tomamos consciência do fazemos, e segundo, nós não sabemos para onde vamos e o que vamos encontrar na nossa trajetória pelo espaço. Essa é a questão filosófica colocada pelo principio da incerteza. Para saber onde queremos chegar seria preciso saber onde estamos. São duas quantificações necessárias para se determinar a nossa posição, em termos físicos, no tempo e no espaço. Mas as experiências feitas até o momento na medição das trajetórias das partículas atômicas mostram que quanto mais precisão se obtém na determinação de uma, perde-se precisão na determinação da outra. Quer dizer, a trajetória de uma partícula é determinada pelo conhecimento, em um dado instante, da sua posição e da sua velocidade. Mas tanto a posição quanto a velocidade da partícula são variáveis. Ou seja, se estou aqui neste exato momento, no momento seguinte estarei em outra posição do espaço, da mesma forma que a velocidade com que me movo se altera em razão dos obstáculos que encontro no movimento. E nós somos partículas que se movem juntamente com o espaço em que estamos. A simples medição que os cientistas fazem na velocidade com as partículas se movem é uma ação que altera a possível posição em que ela poderia estar no momento seguinte.


Assim, tudo é um eterno vir a ser. É como a estória daquele fazendeiro cujo grande amor era o seu filho único, um rapaz de seus dezoito anos. E sua única riqueza era um belo cavalo baio que constituía o orgulho da sua fazenda. Um dia o cavalo sumiu. Então vieram os vizinhos para tentar consolá-lo pela perda do seu único bem. “ Que azar”, disseram os vizinhos, “ esse animal era a única coisa valiosa que você possuía, e agora você não tem mais nada”. “Talvez”, respondeu o fazendeiro. Passados alguns meses, o cavalo voltou e junto com ele veio uma manada de cavalos selvagens. O fazendeiro e seu filho construíram um curral, prenderam e domaram os cavalos e assim ele se tornou dono de uma grande manada de belos animais. Então vieram os vizinhos e disseram: “Mas que sortudo você é. Ontem não tinha nada e hoje é o fazendeiro mais rico da região.” “Talvez”, respondeu o fazendeiro. Alguns dias depois, o seu filho único resolveu dar uma cavalgada com um dos cavalos selvagens e este o derrubou. Ele quebrou uma perna e algumas costelas e teve que ser completamente imobilizado. Lá vieram os vizinhos para dizer: “ Que azar o seu. Se esse cavalo não tivesse voltado com esses animais selvagens, seu filho não teria se machucado.” “Talvez”, respondeu novamente o fazendeiro. No dia seguinte estourou uma guerra e os agentes do governo vieram recrutar todos os jovens da região. Levaram todos os filhos dos fazendeiros da região para a frente de batalha. O filho do fazendeiro, imobilizado em uma cama, foi poupado. E aí vieram os vizinhos. “ Você é realmente um cara sortudo. Se seu filho não tivesse se machucado ele estaria agora na frente de batalha.” “Talvez”, respondeu prosaicamente, o fazendeiro...




João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/01/2012
Alterado em 03/02/2012


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