João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


CAPÍTULO XVI-  O TEMPO DA VINGANÇA.
 
 
De cima da nave da Catedral de Notre de Paris, o Mestre Jean de Longwy olhava, melancolicamente para a Ille de la Cité, onde seu tio, o Grão- Mestre da outrora poderosa Ordem dos Templários fora queimado, alguns dias antes, juntamente com o preceptor da Normandia, Hugo de Peiraud. Ele ali estava, inspecionando os trabalhos de restauração de uma das naves da imponente catedral. Seus pedreiros, cerca de vinte, pendurados nos andaimes, vistos de longe, poderiam ser confundidos com as estátuas que ornavam os nichos do fronstispício, não fossem os movimentos que faziam.
Duas eram suas preocupações naquele momento. A primeira era a incubência que lhe dera seu tio, Jacques de Molay, na última vez que lhe permitiram visitá-lo no calabouço. O velho Grão-Mestre já não tinha mais esperança de que a Ordem pudesse sobreviver, e tinha certeza também, de que sua vida não seria poupada.
– Mas a Ordem não pode, simplesmente, desaparecer – disse Jacques de Molay, ao sobrinho. – Ela certamente continuará a existir em outros reinos, com outros nomes. Já temos informação de que na Escócia, o rei Robert Bruce, não só deu proteção aos nossos Irmãos escoceses, impedindo que eles fossem perseguidos e processados, como também acoitou diversos dos nossos Irmãos que conseguiram fugir da França. Eles agora estão lá, ajudando o rei na sua luta contra Eduardo II, pela independência da Escócia.
– Sim, meu tio. Essas informações são verdadeiras. Eu também as recebi. E soube mais. Que o rei Robert está propenso a a fundar uma nova Ordem, sob o patrocínio de Santo André, que como sabeis, é o santo padroeiro da Escócia.  Lorde Sinclair estaria á testa desse empreendimento, que só ainda não foi formalizado por causa da situação militar. O rei está reunindo um exército nas terras altas e logo uma grande batalha, que creio será decisiva para essa guerra, deverá ocorrer.
– Mas esse Sinclair não é aquele de que deu depoimentos contra os nossos irmãos, na Escócia? Como ele estaria agora á testa de um empreendimento desses?– perguntou o Grão-Mestre.
– Ele foi a isso coagido pelo arcebispo de Midlothian, que como vós e muitos dos vossos Irmãos também foram – disse Longwy. – Sabeis que uma ameaça de excomunhão não é coisa da qual a maioria dos nossos nobres faça troca. A Igreja ainda tem muita força para fazer com que servos se voltem contra seus senhores. E ninguém gosta de trabalhar para um excomungado.
– Um dia – suspirou Jacques de Molay – essa influência perniciosa acabará e cada um terá liberdade espiritual para acreditar naquilo que lhe falar mais abertamente ao seu coração. A ditadura que a religião exerce sobre o espírito das pessoas deixará de existir. Foi esse desejo que nos perdeu, meu caro sobrinho – concluiu, desconsolado, o velho Grão-Mestre.
–  Ainda é cedo para isso, meu tio. Os espíritos ainda estão contaminados pela superstição que a Igreja incute em suas mentes. Vede o que fizeram aos pobres habitantes do Langedoc, que ousaram praticar uma religião diferente daquela que Roma defende. Não sobrou ninguém para contar a história pelo lado deles– disse Longwy.
– Salvo messier Gulherme de Nogaret – respondeu Jacques de Molay, com um sorriso amargo.
– Esse aí...esse ai, – disse Longwy, com um profundo suspiro e uma enigmática expressão no olhar – esse aí é uma cobra vestida com pele de cordeiro.
– No caso de acontecer o que estamos prevendo – disse o Grão-Mestre – ele deve ser o primeiro.
– Podeis ficar tranqüilo quanto a isso – respondeu Longwy.
– Quanto aos nossos Irmãos nos outros reinos, que notícias tendes deles? – perguntou Jacques de Molay.
– As melhores notícias vêm de Portugal, meu tio. Lá, nenhum templário foi incomodado. A Ordem foi dissolvida por que o rei, Don Diniz, não quis desobecer o Papa, mas ele tomou a si a defesa dos Irmãos e conservou em seu poder todos os bens do Templo, para devolvê-los assim que tudo estiver terminado. Sabe-se que o rei Don Diniz está pensando também em criar uma nova Ordem para substituir o Templo em Portugal. Em Castela e Aragão também há algumas informações que nos levam a acreditar que novas Ordens serão fundadas para continuar o nosso trabalho.
– Abençoados sejam, Irmão. – Conto convosco para que a nossa tradição seja preservada e a verdadeira religião continue a ser praticada no seio dessas novas Ordens – disse Jacques de Molay.
– Podeis ficar tranqüilo quanto a isso – respondeu Longwy.  
– As compagnonnages não foram atingidas. Nós continuamos a manter os nossos ofícios e a praticar as nossas tradições. A Igreja precisa de nós para construir os seus templos e os reis e os barões para construir os seus. Creio que, se tivermos o devido cuidado, seremos deixados em paz. 
– Mas muitos dos nossos Irmãos pedreiros foram presos e torturados – disse o Grão-Mestre.
– Sim. E alguns até foram queimados, juntamente com os Irmãos cavaleiros. Mas os bispos, nas províncias, chegaram á conclusão que se queimassem todos os mestres pedreiros que tinham alguma ligação com o Templo, logo ficariam sem profissionais para fazer suas obras. E sabeis como eles gostam delas cada vez mais suntuosas – disse Longwy.
– É. Nisso eles são muito ciosos. Dilapidam as rendas de seus feudos na construção de templos suntuosos, enquanto o povo vive de esmolas disse o Grão-Mestre.
– E pregam que essa é vontade de Deus – respondeu Longwy. – A quem muito tem, mais será dado, de quem nada tem, o pouco que tem ainda lhes será tirado. Eles levam a sério essa idéia e fazem tudo para que esse provérbio infeliz se torne realidade.  
 
O carceireiro bateu na grade, anunciando que a hora da visita tinha acabado. Jean de Longwy levantou-se para sair. Antes de deixar a apertada e úmida cela, onde Jacques de Molay estava presos por cadeias atadas aos seus tornozelos, o sobrinho deu três longos e apertados abraços no velho Grão-Mestre, aunindo as espáduas, á direita, á esquerda, e á direita novamente.  Em cada um dos abraços, deram-se três tapinhas nas costas, um do outro. Enquanto praticava esse estranho ritual, Longwy aproveitou para murmurar ao seu ouvido:

– Seja o que for que aconteça, meu tio, podeis estar certo que vossos inimigos não ficarão impunes.
 
João de Longwy era um homem de cerca de cinqüenta anos. Baixo e atarracado de corpo, pouco se assemehava ao seu tio por parte de mãe, Jacques de Molay, o Grão-Mestre da Ordem do Templo do Templo. Este era um homem alto, de testa larga e altaneira, com um nariz comprido e fino, destacando-se num rosto de formato longilíneo, terminando num queixo anguloso, que lhe dava um ar de prodigiosa masculinidade.
Longwy, por seu turno, era de estatura baixa, com um pescoço curto, escondido embaixo da gola da espessa cota de malha que diariamente usava, como se estivesse sempre pronto para a batalha. Tinha um rosto redondo, de bochechas rosadas e salientes, cujo rubor alguém poderia atribuir aos bons vinhos da Borgonha, do qual ele era consumidor contumaz. Seu queixo quadrado, de longos e ossudos maxilares, passava uma impressão de determinação férrea, que também se refletia nos apertados olhos de pupilas negras que pestanejam quando falava.
Longwy era o mestre da compagnonnage, a corporação dos pedreiros livres, guilda que reunia os profissionais da construção civil na França. Essa guilda era ligada á Ordem do Templo por laços de tradição e profissionalismo. Fora a Ordem que organizara esses profissionais em uma liga para que eles servissem ao Templo, construindo suas preceptorias, seus castelos, fortalezas e igrejas. Com o tempo se tornaram profissionais de tanta utilidade, que a própria Igreja os tomou sob sua proteção, concedendo-lhes diversos privilégios,  necessários ao exercício de uma  profissão, que mais que qualquer outra, havia se tornado iniciática.
Jean, senhor de Longwy, feudo do condado borgonhês, havia sido iniciado cavaleiro templário, e era, por direito, o herdeiro de seu tio, Jacques de Molay. Certamente, com a morte do velho Grão-Mestre, seria ele o próximo comandante da Ordem. Milagrosamente escapara do processo movido contra os templários, graças a uma filigrana jurídica urdida por seus advogados, que conseguiram provar aos inquisidores da Borgonha, onde ele vivia, que a compagnonnage, a confraria dos pedreiros-livres, não era, de jure, uma organização ligada ao Templo, embora para ele trabalhasse e até fosse comissionada pelos templários para realizar as obras de seu interresse e participasse, como “homens dos templários” de alguns de seus capítulos.
A compagnonnage era uma organização praticamente independente dentro da Ordem do Templo, da mesma forma que o Templo se tornara uma organização independente dentro da Igreja. Ela tinha seus próprios estatutos, suas próprias tradições, seus ritos e práticas, as quais, de certa forma, se confundiam com algumas daquelas que os próprios cavaleiros templários estavam adotando em alguns dos seus capítulos. Eram essas práticas, aliás, de caráter iniciático e difícil entendimento por aqueles que não detinham a sua razão de ser, que tinham despertado a desconfiança de alguns Irmãos templários que a ela haviam sido submetidos nos capítulos, sem que lhe fosse dado a devida justificativa de sua adoção.
De fato, para os iletrados e simplórios cavaleiros templários que haviam sido educados nos sacramentos da Igreja, os ritos dos quais eram obrigados a participar, para fazer uma carreira na Ordem, lhes aparecia sob uma forma muito estranha. Do seu ponto de vista, aquelas bizarras cerimônias, nas quais eles eram convidados a beijar os umbigos e a extremidade da espinha dorsal de seus Irmãos, assim como a prestar reverência aquela imagem de uma cabeça barbada, a qual se chamava Sofia, em alguns capítulos, ou Baph-Metra em outros, tinha fumos de heresia. E havia outras coisas, que eles não entendiam, mas na simplicidade de seus espíritos, atormentados pelos temores infundidos pelos padres, cheiravam á heresia.   
A Ordem do Templo tinha se desenvolvido de uma forma muito peculiar. Ela não era apenas um serviço militar, onde o Irmão aprendia as regras da cavalaria e se exercitava na aquisição de uma habilidade guerreira, que lhe permitisse defender a fé cristã com sua própria vida, nunca se rendendo e lutando até a última gota de sangue, como no início se preconizava, e como se dizia nos seus estatutos, redigidos por São Bernardo de Clervaux. Nem se notabilizava pela difusão da doutrina defendida pela Igreja, ou pela educação do povo na fé e na ciência que Roma professava, como faziam as demais Ordens religiosas fundadas no seio da Igreja, mas havia se tornado uma verdadeira organização dentro dos reinos onde ela existia. E como organização, abarcava um largo espectro de interesses, econômicos, políticos, sociais, onde os dogmas da fé cristã, na verdade, já não eram mais, desde algum tempo, uma unaminidade.
 
– De fato – dizia o senhor de Longwy ao misterioso interlocutor, vestido de monge, que estava sentado á sua frente – há muitas coisas em nossa Ordem que precisam ser revistas, se quisermos sobreviver.
– E sobretudo, presservar, agora com mais cuidado e inteligência, os nossos segredos – respondeu o monge.
– Temos que fazer como os nossos Irmãos da Obra – disse Longwy.
– É verdade – respondeu o monge. – Só admitirmos em nossos segredos verdadeiros adeptos, que do ofício participem pelo espírito da obra e não por empenhos da profissão.
– É isso mesmo. Entendestes bem o espírito da coisa – disse Longwy. – Daqui para frente trabalharemos nas sombras, não como uma organização secular, embora, para a oficialidade, sejamos apenas mais uma corporação de ofício, cujas particularidades se referem apenas aos seus interesses corporativos.
– Então vamos abrir a compagnonnage para a entrada de pessoas de outras profissões? – perguntou o monge.
– Por enquanto, somente para os Irmãos da Obra, como tu, Irmão Everardo – disse Longwy. – Mais tarde abriremos para quem for do nosso interesse.
– Bem pensado– disse mestre Everardo, o monge alquimista que também era cavaleiro templário, e que graças aos bons serviços que prestava ao bispo da sua diocese, escapara vivo, ao processo movido contra o Templo. 
Vivo, mas não ileso. Na sua perna direita, que coxeava, trazia a marca da tortura a que fora submetido na prisão. Mais do que no corpo mutilado, era no coração que mestre Everardo de Evreux, o monge alquimista, guardava as maiores citratrizes dos tormentos que sofrera no calabouço, por ousar mostrar independência de espírito, numa época em que a ditadura espiritual, muito mais que a autocracia política, mantinha a humanidade presa aos grilhões da ingorância e da pobreza mais abjeta.
Ódio. Ódio a quem fizera aquilo com ele e com os Irmãos do Templo, era tudo que conservava Everardo de Evreux vivo. A vingança, só para a vingança seu cérebro ainda trabalhava. E era para isso que viera procurar Lorde Longwy. O tempo da vingança tinha chegado.

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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.



 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/11/2013
Alterado em 16/11/2013


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