João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


CAPÍTULO X- A ENGENHARIA DO HORROR
 
O Papa Clemente sabia das acusações que estavam sendo feitas aos Templários. Desde o dia primeiro de novembro de 1306, quando ele se encontrou com os Grãos-Mestres do Templo e do Hospital para uma conferência, em Poitiers, esse assunto estava sendo tratado. Embora a reunião tivesse sido adiada por causa de uma crise de gastropatia, mal que o Papa sofria já ha algum tempo, Tiago de Molay conversara, dias depois com o Santo Padre, onde expôs sua preocupação sobre os rumores que estavam sendo levantados em relação a certas práticas que se diziam ser adotatas pela Ordem do Templo.O Papa, acamado, prometeu estudar o problema e dar uma resposta o mais breve possível. Fá-lo-ia em fins de agosto de 1306, num encontro em Poitiers, do qual também participou o Grão-Mestre do Hospital, Fouques de Vilaret. Nessa ocasião discutiram a realização de uma nova cruzada e a fusão das duas Ordens, o que foi, como já sabido, desanconselhado pelo Grão-Mestre do Hospital e firmemente combatido por de Molay.[1]
O Grão-Mestre do Templo suscitou então a questão das acusações que estavam sendo feitas contra os Templários. Pediu ao Papa que abrisse uma investigação a respeito para que não pairasse nenhuma dúvida sobre a virtude dos membros da Ordem. Que fossem condenados os que assim se provassem ter cometidos delitos, e inocentados os demais, que de Molay acreditava ser a grande maioria, “homens virtuosos, tementes a Deus e firmes na fé católica”, como ele os definiu.
 
Clemente V, sem dúvida, tinha o desejo de apurar tais acusações, até porque ficaria numa situação complicada se não o fizesse. Não acreditava, realmente, que os Templários fossem culpados de tais vilanias.  Creditava tais acusações aos progandistas de Filipe, o Belo, especialmente Guilherme Nogaret, que já decidira levar a cabo sua campanha para destruir a Ordem do Templo.
Mas antes que ele tomasse qualquer providência a respeito, Filipe tinha tomado a sua frente. Com sua ação da sexta-feira, dia 13 de outrubro de 1307, ele havia sido colocado diante de um fato consumado, um feit accompli, cujas conseqüências ele precisava agora, saber administrar.
O papa sabia que os Templários seriam torturados e a maioria logo confessaria o que quer que fosse para evitar a mutilação dos seus corpos nos terríveis engenhos de tortura que a imaginação dos sábios padres, engenheiros da Inquisição, haviam desenvolvido para fazer os hereges, as bruxas e os feiticeiros soltarem as línguas. Ele não estava preocupado á  toa. Pois já no segundo interrogatório, duas semanas mais tarde, o preceptor da Normandia, Godofredo de Charney, apresentou-se perante os inquisidores como um velho alquebrado, abatido e frágil. Estava em um estado físico e moral totalmente diferente da primeira vez que esteve ali. Nem parecia o mesmo cavaleiro orgulhoso e varonil que negara, e até desdenhara, alguns dias antes, de todas as acusações que haviam sido feitas aos Templários. As marcas da tortura eram visíveis no corpo alquebrado do outrora altivo cavaleiro. Nos olhos encovados e no rostomacilento, que a comprida e espessa barba branca não conseguia esconder, estavam registradas a consequência da mutilação sofrida nos últimos dias. Dentes quebrados, lábios ressecados e rachados pela dieta água e pão salitroso, pulsos e tornezelos dilacerados pelas argolas das correntes, pernas arqueadas e bambas pelas longas horas de tortura no balcão de estiramento, os polegares esmagados pelas “ratoeiras”, o alquebrado dignatário de Templo, mal conseguia articular palavras inteligíveis para responder aos inquisidores.

– Quando o senhor foi recepcionado na Ordem? – perguntou Guilherme de Paris.
– Há trinta sete, ou trinta e oito anos atrás – respondeu Charney, com dificuldade.
– Quem o recepcionou? – perguntou Guilherme.
– Um irmão de nome Amaury de La Roche, juntamente com o Irmão Jean François, na época preceptor de Paris –.respondeu o preceptor da Normandia.
O interrogatório prosseguiu. O Inquisidor, sempre no mesmo tom incisivo, e o interrogado, respondendo, como se tivesse dando respostas decoradas.
– Pode descrever como foi essa recepção? – perguntou o Inquisidor.
O preceptor da Normandia ficou um momento em silêncio, como se estivesse juntando forças para falar. Por fim, como se estivesse saindo de um doloroso conflito interno, e como quem já desistira de lutar, respondeu, com voz cansada e dispersa. 
– Depois da vigília de praxe, na qual fiquei sozinho na cripta, orando e velando minhas armas, fui levado á presença do dito Irmão Amaury e do preceptor de Paris, Jean François. Presentes também vários outros Irmãos, já falecidos. Fui recebido com um beijo nos lábios, e o Irmão Amaury vestiu-me com o manto.
Godofredo de Charney suspirou fundo como se alguma dúvida se passasse na sua cabeça. Guilherme de Paris prosseguiu, inclemente.
– Continue.
– Trouxeram-me uma cruz com a imagem de Cristo – disse ele, finalmente, como se aquela revelação lhe pesasse na alma.
– E o que o senhor fez?
– O Irrmão Amaury disse que Cristo era um falso profeta e que eu não devia acreditar nele. Não se tratava de um Deus.
– Continue – ordenou Guilherme de Paris, cuja face, naquele momento, revelava uma alegria que não conseguia esconder.
– O Irmão Amaury me disse para renegar Cristo três vezes.
– E o senhor o fez?
– Sim. Mas apenas com os lábios e não com o coração.
– Cuspiu também na imagem de Cristo sobre a cruz?
– Não me lembro de tê-lo feito.
– E quanto aos beijos obscenos que os noviços são obrigados a dar nas partes íntimas dos veteranos, o que pode dizer sobre isso?
– Beijei o meu receptor no umbigo, por que assim foi mandado que o fizesse.
– Não praticou conjunção carnal com seus Irmãos?
– Nunca o fiz, nem me foi pedido que o fizesse. Mas ouvi o Irmão Gérard de Sauzet dizer aos iniciados dos Capitulos que era melhor unir-se carnalmente com os Irmãos da Ordem, do que ter relações com mulheres. Que isso não era considerado uma quebra do nosso voto de castidade.
– Como preceptor da Normandia o senhor recepcionou pessoalmente a muitos Irmãos?
– Sim.
– E procedeu a essas recepções da mesma forma como foi recebido pelo Irmão Amaury?
– Nas primeiras vezes sim, mas depois percebi que cada preceptoria aplicava a seu modo esse ritual e então voltei a fazer nossas recepções de acordo com os Estatutos da Ordem.
– Porque resolveu agir assim?
– Porque percebi que a forma como fui recepcionado era uma profanação ímpia e contrária a fé católica. [3]
 
Isso é o que queriam ouvir Guilherme de Paris, Guilherme de Nogaret, Filipe, o Belo, e todos aqueles que buscavam a perdição dos templários: uma confissão feita por um grande dignatário da Ordem. Não importava que ela tivesse sido extraída a´custa de tortura. Pois, nos dois dias que antecederam esse interrogatório, Godofredo de Charney, Tiago de Molay e Godofredo de Gonneville, os três mais importantes dignatários da Ordem, em território francês, haviam sido cruelmente submetidos á engenharia do horror. Passaram pelo suplício da roda, foram postos no cavalete, para que seus corpos fossem esticados até o limite do rompimento, suspensos na estrapada, para que seus membros e ossos fossem deslocados. Tiveram os pés untados com gordura de porco e amarrados próximos a um archote, para que a gordura, ao esquentar, lhes queimasse a pele. E em todos esses suplícios, era o próprio Guilherme de Paris que os assistia e comandava, sempre dizendo: – Confessem, para que esse suplício possa acabar. Salvem suas alma e poupem dessas dores o vosso corpo.
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Foi dessa forma, triturados, alquebrados, com os braços e pernas deslocados, os pés em carne viva, que esses bravos e altivos cavaleiros se apresentaram, pela segunda vez, perante o terrível Inquisidor. E desta vez disseram o que seus algozes queriam ouvir.
 
– Há quarenta e dois anos – disse Tiago de Molay – fui recepcionado na Ordem pelo irmão Humberto de Perráud, na preceptoria de Beaunne. Estava presente o Irmão Amaury de La Roche e muitos outros dos quais já não me lembro os nomes. Fiz a promessa de observância dos estatutos da Ordem, depois recebi o manto. O Irmão Humberto mandou trazer uma cruz de estanho, com a imagem do Cristo crucificado. Ordenou-me que o renegasse três vezes e que cuspisse nela. De mau grado pronunciei a renegação, porém não cuspi sobre a cruz, mas no chão.
– Recepcionou muitos Irmãos dessa maneira?
– Presidi a poucas recepções, mas o cerimonial nunca foi muito diferente desse que relatei. Depois do beijo protocolar, que era ás vezes no umbigo, ás vezes nos lábios, os recipiendários eram encaminhados aos seus respectivos instrutores, os quais continuavam as práticas que deviam fazer. Eu nunca participei delas por completo.
– E quanto á acusação de sodomia. O senhor, alguma vez, uniu-se carnalmente aos seus Irmãos?
– Não, nunca o fiz ─ respondeu com firmeza o Grão-Mestre.
Então o Inquisidor fez a pergunta ptrotocolar, feita a todos os inquiridos, para salvaguarda do devido processo legal:
– Proferiu qualquer falsidade, ou declarou inverdades em seu depoimento, em razão de tortura, ou por outro meio coercitivo?
– Não –  respondeu de Molay, com um fio de voz.
Gulherme de Paris insistiu.
– Foi torturado, ou por qualquer meio coagido, para dizer o que disse?
– Não, – foi de novo a resposta.
– Tudo que disse é, pois, a verdade, dita de forma expontânea, em nome de Deus?
– Tudo que disse é a verdade, para a salvação da minha alma!
Guilherme de Nogaret sorriu. Agora sim, a coisa tinha sido bem conduzida e estava do jeito que ele queria. Os patifes tinham sido amolecidos pela engenharia do horror. Mas além disso, tinham sido iludidos com a falsa promessa de que suas confissões não acarretariam penalidades maiores do que as penitências devidas. Mas tinham que dizer claramente que todas suas confissões eram expontâneas. A mistificação estava pronta. 
Nos dois dias seguintes Hugo de Perráud, Visitador da Ordem para todo o território francês, daria igual depoimento, declarando em alto em e bom tom ter praticado todos aqueles comportamentos dos quais a Ordem era acusada.Os prelados que acompanharam seu depoimento não puderam deixar de observar que ele se encontrava em excelente estado físico e que parecia não ter sofrido nenhuma tortura ou constrangimento moral. Seu testemunho foi claro e incisivo, bem diferente dos testemunhos de Godofredo de Charney, Tiago de Molay, e Godofredo de Gonneville, preceptor de Aquitânia, que depuseram antes dele. Os três haviam sido barbaramente torturados, mas o Visitador de França não. Mas só Guilherme de Nogaret sabia a razão desse privilégio. _
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notas históricas

[1] Principalmente porque a cruzada seria financiada principalmente pelos tesouros das duas Ordens e suportada militarmente pelos cavaleiros templários e hospitalários. Os templários tinham acabado de sair de uma aventura semelhante, na qual haviam perdido as últimas possessões cristãs na Terra Santa e não queriam arriscar novamente. Uma nova cruzada, disse Tiago de Molay, só teria sucesso se ela fosse conduzida na forma como foi feita na primeira e na segunda, como uma passagium generale, ou seja, uma guerra total, com a participação da maioria dos reinos da cristandade, apoiada logisticamente pelas repúblicas italianas, fornecendo transporte e abastecimento ás tropas cruzadas. Fora disso seria loucura. A recusa do Grão-Mestre do Templo caiu mal na opinião pública e foi muito criticada na mídia da época, que advogava uma atuação mais efetiva dos templários nas lutas contra os sarracenos. Tiago de Molay foi  pintado como um velho teimoso, arrogante e egoísta, o que muito  contribuiu para o descrédito da Ordem.
[2] Os padres responsáveis pelos autos de fé que caracterizaram a Santa Inquisição foram pródigos na invenção de aparelhos de tortura. Nesse sentido desenvolveram uma prodigiosa engenharia, no sentido de criar instrumentos cada vez mais eficientes para causar dor nos acusados. A engenharia do horror, como foi chamada essa habilidade dos zelosos defensores da fé cristã, usava de todos os recursos para extrair confissões dos pobres diabos que caiam em suas garras. Aparelhos sofisticados, de complicada tecnologia, como a Virgem de Ferro e a Roda do Despedaçamento eram usados, juntamente com ferramentas simples como tesouras, alicates, garras metálicas, martelos, chicotes com bolinhas de aço nas pontas, garrotes, para causar nos acusados as mais horríveis mutilações.
Uma das mais famosas obras da literatura medieval é um catálogo publicado pelo padre dominicano Bernardus Guidonis ( 1261-1331) chamado Liber Sententiarum Inquisitionis (Livro das Sentenças da Inquisição). Nessa obra o zeloso padre descreve os vários métodos usados pelos seus colegas dominicanos para obter confissões dos acusados. Dentre os descritos na obra e utilizados comumente, encontra-se a descrição pormenorizada do funcionamento de aparelhos, como as já citadas Virgem de Ferro, a Roda do Despedamento e as Máscaras do Escárnio, além de torturas psicológicas a que os infelizes eram submetidos, tais como obriga-los a beber a própria urina e engulir os próprios excrementos. Entre as várias obras dessa engenharia de horror, destacam-se alguns equipamentos realmente singulares, como o Berço de Judas, uma engenhoca em forma de pirâmide sustentada por hastes de metal cortante. A vítima, pendurada por correntes, era colocada sentada sobre a ponta da pirâmide. Á medida que carrasco ia afrouxando as correntes, o vértice da pirâmide ia penetrando nas partes íntimas do acusado.  O Berço de Judas também é conhecido como Culla di Giuda (italiano), Judaswiege (alemão), Judas Cradle ou simplesmente Cradle (inglês) e La Veille (A Vigília, em francês) Outras engenhocas como o garfo, ( espécie de haste metálica com duas pontas em cada extremidade, era presa por uma tira de couro ao pescoço da vítima. Perfurava a região abaixo do maxilar e acima do tórax, limitando os movimentos; as garras de gato (espécie de rastelo usado para açoitar a carne dos prisioneiros) a pêra, instrumento metálico em formato de pera que era introduzido na boca, ânus ou vagina da vítima (continha um mecanismo que fazia com o instrumento se expandisse gradativamente ferindo as partes íntimas do acusado), mostram a criatividade desses verdadeiros engenheiros do horror, que foram os padres da Inquisição.
[3] Todos esses nomes são de personagens reais, citados nas atas do julgamento dos Templários. A esse respeito ver Malcon Barber- O Julgamento dos Templários, citado e também  Os Grandes Julgamentos da História, Amigos do Livro, citado.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 04/01/2014


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