João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


NOÉ- O FILME E A HISTÓRIA

 
Vendo, pois, Deus que a terra estava toda corrompida (...) disse a Noé: O fim de toda carne chegou diante de mim; a humanidade, por suas obras está cheia de iniqüidades e eu as exterminarei com a terra.”Gênesis, 6:12.
 
Assim disse o Senhor: “ – Estou arrependido;
Pois estes seres que deveriam ser tão perfeitos
Se encontram tão cheios de malícia e defeitos
Que já não passa de um rebanho corrompido.

Arrependido estava, porém inda esperançoso,
O Senhor foi capaz de mostrar sua clemência.
Pois que deu cento e vinte anos de penitência
Para o homem se tornar novamente virtuoso.

Porém a corrupção naquela gente era tão forte,
Que não podia mais ser curada só com perdão,
Pois o salário do pecado se paga com a morte.

E quarenta dias de chuva forte e intermitente,
Afogou de vez aquela antiga e má civilização.
Mas Noé e filhos Deus guardou para semente.

O Parto de Deus- A Bíblia em Sonetos- Recanto das Letras
                                           *** 

                    
Diz a Bíblia que antes de Deus mandar o dilúvio, havia sobre a terra uma raça de gigantes, descendentes do conúbio entre os anjos caídos e as filhas dos homens, que eram muito formosas. Essa civilização, segundo os cronistas bíblicos era muito perversa e tinha “os seus pensamentos todos voltados para o mal”.  (Gênesis 6:5).
No filme Noé, a imaginação do roteirista trocou os rótulos e fez de Tubalcain, um descendente de Cain, o chefe dessa civilização malvada e dos anjos caídos, ele compôs uma raça de gigantes de pedra. Tudo bem. Quando se trata de fantasia e efeitos especiais, tudo vale, embora a comunidade religiosa não tenha gostado nada das adaptações feitas na história do velho patriarca bíblico. Isso é normal. Anormal seria se gostassem.
Tubalcain, aparece na Bíblia, em Gênesis, 4;22, como sendo um hábil artífice de cobre e ferro, o que lhe valeu uma menção honrosa na maçonaria, se tornando uma palavra de passe. A propósito, Tubalcain, tanto quanto Ninrode e outros excomungados da Bíblia,  para uma facção da chamada maçonaria mística (Rito de Mênfis, Cagliosto e que tais) são maçons da velha cepa, os verdadeiros maçons).  Quanto á raça de gigantes, ela aparece em Gênesis, 6;4, como sendo um produto do conúbio entre os anjos caídos e as filhas dos homens.   

Em estudos anteriores já publicados neste site, nos referimos ás obras do escritor e historiador Zecharias Sitchin. Esse autor, estudando a literatura suméria encontrada nas ruínas de Babilônia e Ur dos caldeus, a antiga cidade do patriarca Abraão, afirma que a tal civilização de gigantes a que se refere a Bíblia era a civilização dos anunnakis, povo extra terrestre que teria aportado na terra por ocasião da aproximação de um planeta chamado Nibiru, planeta esse que teria sido detectado pelas sondas da NASA e rotulado com o nome de planeta X. Esse planeta faz uma órbita em volta do sol no prazo de 3600 anos e se aproxima da terra a cada um desses períodos. Quando isso acontece, varias mutações ocorrem na estrutura material da terra e na vida que nela habita. A ultima dessas aproximações teria ocasionado o dilúvio de que fala a Bíblia e o filme de Darren Aronofsky  mostra.
Hoje parece não haver muitas dúvidas entre os historiadores de que as crônicas bíblicas a respeito das origens da humanidade foram todas inspiradas na literatura dos povos mesopotâmicos, onde o próprio povo de Israel teve origem. Abraão, por suposto um mago, ou sacerdote caldeu, com certeza conhecia todas essas lendas e as legou aos seus descendentes, que as adotaram como sendo suas próprias lendas de origem.
Abstraindo o fato de os tais anunnakis serem, efetivamente, seres extraterrestres que aportaram na terra em face desse acontecimento cósmico, que o Dr. Sitchin se refere em sua curiosa tese, não se pode negar que o dilúvio relatado na Bíblia efetivamente ocorreu pois esse acontecimento é relatado em quase todas as tradições antigas, sendo pois, um arquétipo de compartilhamento coletivo em todas as civilizações que emergiram da pré-história.
É evidente que os cronistas israelenses se apossaram desses antigos relatos da mitologia suméria para justificar suas próprias teses a respeito da origem do povo de Israel e sua pretensão á qualidade de “povo escolhido” por Deus. Assim Noé, o patriarca que Deus teria sido escolhido para dar continuidade á raça humana, é um ancestral do povo de Israel, da mesma forma que seria um dos seus filhos, Sem, o pai das tribos semitas, de onde sairia, tempos depois, a tribo de Israel. A propósito, o roteirista do filme inseriu na história uma novidade teológica, ou ideológica, conforme se queira interpretar. No filme, Noé acredita ter sido escolhido, não para conservar a raça humana sobre a terra, como é registrado em Gênesis, 7;2;3, mas sim para acabar com ela, pois até as próprias netas, filhas de Sem, ele se propõe a matar, para que elas não viessem a procriar. Depois ele se arrepende e poupa as crianças, como Abraão faria tempos depois com seu próprio filho, mostrando que o sentimento de preservação da espécie é, muitas vezes, maior até que o próprio fanatismo religioso que alguém possa desenvolver.Talvez seja essa a parte que as comunidades religiosas não gostaram, pois fanatismo religioso é com elas mesmas.
 
O relato bíblico sobre a Arca de Noé e como seus três filhos deram origem á raça humana depois do dilúvio é por demais conhecida e não vamos nos deter nos detalhes que a Bíblia registra. Nem nos remeter ao filme, pois que ele termina justamente quando a arca estaciona em terra seca. Queremos nos referir aqui ás mais variadas interpretações que são dadas a esse mito, pois essas sim, influenciaram de tal modo os destinos da humanidade ─ e continuam influenciando até hoje (veja-se a guerra israelense-palestina) ─ que merecem ser vistas e revistas sempre, ainda que de forma fantasiosa, como no filme Noé.
Evidentemente, nem nas próprias interpretações dos sábios rabinos judeus que fazem a exegese da Bíblia é aceita a idéia de que Noé teria posto em sua arca a totalidade das espécies existentes de animais existentes sobre a terra, representados por um casal de cada. Uma arca que pudesse conter tantos animais assim seria extraordinariamente grande( não somente trezentos côvados por cinquenta, como diz a Bíblia,  ou seja,  cerca de 198x 33 metros, igual a um espaço de 6.534 m2, mais ou menos do tamanho de um campo de futebol) e que levaria muitos anos para construir, exigindo para isso uma mão de obra colossal. (Mesmo com a ajuda dos anjos petrificados do filme).
De fato, a história da Arca de Noé, mesmo para os intérpretes mais fundamentalistasda Bíblia, é uma coisa meio difícil de explicar. Os mais céticos preferem vê-la como uma metáfora de fundo simbólico que teria sido produzida pela imaginação dos cronistas bíblicos para justificar algumas proposições doutrinárias. E os mais crédulos, também, só estes são mais fantasiosos ainda.
 Por exemplo, alguns exegetas cristãos cunharam a estranha tese de que a Arca de Noé é uma alegoria que simboliza a “salvação em Cristo”. Nesse  sentido, as criaturas encerradas na arca são as pessoas salvas pelo batismo da água, praticado por João Batista e adotado pelos seguidores de Jesus. A Arca seria a Igreja, espécie de “ nave da salvação”, aquela que levava os convertidos para a “montanha da salvação”, e dali para uma nova terra e uma nova raça. Essa tese foi inspirada na doutrina de Santo Agostinho, que em sua obra clássica “A Cidade de Deus”, chega mesmo a dizer que as dimensões da Arca correspondiam ás dimensões do corpo de Cristo, ou seja, a própria Igreja. Outro autor católico, Santo Hipólito, bispo de Roma (235- 312?), tentou demonstrar que "a arca era um símbolo de Cristo, o qual era esperado desde aqueles tempos. Com isso declarou que a Arca tinha sua porta aberta na parte oriental, e que os ossos de Adão (sic) foram levados a bordo juntamente com ouro, mirra e resina, e que a arca foi lançada ao vaivém nas quatro direções sobre as águas, fazendo o sinal da cruz, antes de eventualmente parar no Monte Kardu, "a leste, na terra dos filhos de Raban, que os orientais chamaram de Monte Godash e os árabes e os persas chamaram-na de Ararat".
Essas foram algumas das elocubrações sacadas dos bestuntos dos doutrinadores para explicar as formidáveis contradições que se levantaram sobre o assunto. Ele não tirou o sono só dos bispos de Roma, mas também preocupou muito os doutrinadores islâmicos, que levantaram algumas teses bastantes bizarras sobre o tema. Um deles, chamado Abd Allah ibn Abbasplo, que viveu no tempo de Maomé, escreveu que a arca tinha forma de barriga de ave e foi feita com a madeira de uma única árvore. Já o persa  Abu Ja'far Muhammad ibn Jarir al-Tabari, que escreveu uma História dos Profetas e Reis informou que que a primeira criatura a subir a bordo foi a formiga e a última foi o burro, e que por meio desse animal Satanás também subiu a bordo e acabou sendo salvo. Masudi (956? ) outro comentador árabe disse que o local onde ela encalhou depois que as águas baixaram ainda poderia ser visto no seu tempo e que ela passou por Meca antes de dirigir-se ao monte Ararat, onde finalmente ancorou.
 
E aí por diante, denotando o extraordinário surto de imaginação que esse assunto tem provocado ao longo dos séculos. Em outras tradições há igualmente muitas informações bizarras sobre esse tema. Os mandeanos, tribo que habita o sul do Iraque e se dizem disipulos de João Batista, ao qual reverenciam como o verdadeiro Messias, sustentam que a Arca de Noé parou no Egito e não na Armênia como diz a Bíblia. Na mitologia dos irlandeses, um filho bastardo de Noé, chamado Bith, o qual  não foi autorizado a entrar na arca, aportou na Irlanda, a bordo de outro navio e junto com um grupo de pessoas começou um processo de colonização nas ilhas Britanicas, que teria malogrado.
Na época do Renascimento, o tema da Arca de Noé passou a ser rediscutido em novas bases, com os comentadores tentando arrumar explicações mais lógicas para os fatos. Assim é que Alfonso Tostada, filósofo, Johannes Buteo, geometra, e outros estudiosos elaboraram curiosas explicações para mostrar como Noé conseguira conciliar a presença de tantos animais de instintos diversos, e como conseguiam conviver num ambiente tão complicado como aquele que deveria existir na arca. No filme Noé o roteirista foi mais simples e direto: fêz a animalesca toda cheirar uma fumacinha milagrosa e todo mundo dormiu.
A par das explicações puramente imaginativas, como as acima mencionadas surguiram teses como as de Thomas Browne(1646)  Lipsius (1547-1606) e Atanásio Kircher (1601-80), que tentaram harmonizar a crônica biblica com o conhecimento histórico e natural da época. As hipóteses propostas por esses estudiosos foram de bastante utilidade nos estudos posteriores da flora e da fauna do planeta.
Hoje a maior parte dos historiadores concorda que a história do dilúvio, bem como as referencias anteriores sobre as civilizações que precederam esse fato, assim como outras citações posteriores que a Bíblia faz, como a Torre de Babel, Sodoma e Gomorra, e outras passagens cujas provas arqueológicas ainda não puderam ser levantadas são reminiscências de mitos e memórias que os povos mesopotâmeos registraram em sua literatura cuneiforme.
Especialmente os sumérios, que possuiam uma rica literatura a esse respeito. De fato, toda a narrativa bíblica do dilúvio, a Arca de Noé, com todos seus detalhes e nuances, a reconstituição da raça humana através de seus filhos, são encontrados na literatura suméria, que segundo os historiadores, é anterior á Bíblia em pelo menos um milênio. Essa história é um dos temas principais tratados no famoso poema épico do herói Gilgamesh, na qual um rei-sacerdote de nome Utnapishtim, protegido pela Deusa Ea, foi o único sobrevivente da grande inundação que cobriu todas as terras do mundo. Ali se encontra inclusive a passagem segundo a qual esse personagem, para sondar se as águas já haviam baixado, soltou primeiro um corvo, que não regressou, e depois uma pomba, que ao voltar com um ramo verde no bico, deu a ele a certeza de que as águas haviam baixado. Essas passagens são mostradas no filme com uma riqueza de imagens realmente sensacionais.
É importante dizer que escavações arqueológicas no sítio de Ur, que a Bíblia sita como sendo a cidade de origem de Abrão, encontraram provas de que ali, realmente, aconteceu uma grande inundação há cerca de 4000 mil anos atrás. Essa inundação pode ter se originado tanto de um descongelamento das calotas polares quanto como resultado de uma tsunami provocada por um abalo sísmico no fundo do mar, como aquele que destruiu a ilha de Santorini cerca de 2500 anos atrás.  Nesse sentido, algumas escavações feitas nesses sítios mostram que nessa época considerada, as águas do Golfo Pérsico cobriam toda aquela região onde se situam as ruínas de Ur e a moderna cidade de Bagdá.
Na epopeia de Gilgamesh são listadas várias dinastias de reis que supostamente podem ter inspirado os cronistas bíblicos na  composição da história dos seus patriarcas. Uma longa história de lutas e famílias dinásticas é relatada para mostrar como a civilização se implantou e se desenvolveu nos vales do Tigre e do Eufrates.
Como se pode perceber, Gilgamesh é um arquétipo existente em muitas tradições antigas, da mesma forma que Utnapishtim, o Noé sumério. Na literatura grega, Gilgamesh é o homônimo do potente Hércules, o qual, tal como o herói sumeriano, também realiza suas façanhas com o objetivo de tornar-se um deus, ganhando a imortalidade. Também a literatura maia e asteca tiveram o seu Noé, assim como os esquimós, os polinésios e os tibetanos. Dessa forma, Noé é arquétipo que habita no inconsciente coletivo da humanidade e como todos os mitos que constituem esse formidável tecido neurológico, ele certamente tem origem num fato real, histórico, que certamente ocorreu.  
Não entra aqui em discussão se tais personagens existiram na forma como foram descritos nas crônicas bíblicas ou se os fatos se passaram de acordo com o que prescrevem essas antigas tradições. Que ocorreu um dilúvio na terra em tempos anteriores aos primeiros registros históricos é um fato que parece não suscitar contestações. O que se cria em torno dessa história pode ser visto como artigo de fé ou tema de especulações. No fim, o que fica é sempre aquele pressuposto que se coloca quando se trata de discutir assuntos sobre os quais não se tem evidências comprováveis. Esse pressuposto diz: para quem acredita nessas coisas, nenhuma prova é necessária; para quem não acredita, nenhuma prova será suficiente. Como dizem os poetas, talvez a imaginação seja a única possibilidade do homem viver a sua própria realidade.  Com tudo isso, o que fica é que o filme Noé é uma obra prima de efeitos visuais, com mais uma primorosa interpretação de Russel Crowe.
 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 07/08/2014
Alterado em 07/08/2014


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