João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

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UMA CRUZ NA BEIRA DA ESTRADA
 
A estrada que vai de Cunha á Campos Novos, uma pequena aldeia que fica na Serra da Bocaina, ali pelos lados da nascente do Paraitinga, tem se tanto, uns dez quilômetros. Mas parece que tem cinquenta. Tantas curvas numa serra escarpada e cheia de precipícios fazem com que se leve mais de uma hora para vencer, de carro, esses dez quilômetros, pois o medo de despencar num daqueles socavões, onde não sobraria nem a alma, leva a pessoa a dirigir devagar e com muito cuidado. E depois têm aquele monte de cruzes na beira da estrada. Parece que morre mais gente naquela estrada do que as pessoas que nascem e moram naquela aldeia.
Antigamente a viagem de Campos Novos até Cunha, feita á cavalo, levava pelo menos umas cinco horas. Era nisso que João pensava quando dirigia por aquela estreita e perigosa estradinha de terra. João nascera em Campos Novos e saíra de lá muito pequeno Não se lembrava como era a sua velha aldeia de nascimento, mas tinha ás vezes um lampejo de memória das festas da Igreja do arraial. E sempre que tinha esses lampejos, lhe vinha também aquele gosto estranho na boca que ele identificava como sendo de um doce que era vendido naquelas quermesses da igreja da aldeia. Era um doce feito com açúcar, gengibre e groselha, que tinha a forma de um cavaquinho e um gosto forte, que ele nunca esquecera. Aliás, esse era o nome do doce: cavaquinho.
Há mais de quarenta anos que ele não ia á Campos Novos. As únicas referências que tinha da aldeia, além da lembrança do cavaquinho, eram as estórias de assombração que a mãe dele contava. Toda noite ela contava alguma. Ele, menino ainda, ouvia as estórias com um quê de fascinação, mas também de medo, que o levava a puxar o cobertor para cima da cabeça justamente no momento em que ela estava chegando ao clímax da estória, naquela hora em que a assombração se apresentava e dizia o que estava querendo da pessoa. E sua mãe, que era boa contadora de estórias, imitava aquela voz fantasmagórica de espectro recém saído do túmulo.
Parecia que a Serra da Bocaina era o reduto das miotas, das mulas sem cabeça, das almas penadas e de todas as entidades desencarnadas que ainda não descobriram se pertencem a este ou ao outro mundo, e por isso vivem de dia em um e de noite no outro.
Por isso, quando João dirigia pela estradinha de terra que vai de Cunha a Campos Novos, ele estava tranquilo. Era de dia, e as assombrações, lembrava ele, rindo, só apareciam á noite.
Mas as lembranças das estórias que sua mãe contava voltavam todas á sua memória, enquanto ele fazia as curvas da estrada e observava, em cada uma delas, a existência de uma cruz á beira da estrada. Isso, de alguma forma, o incomodava. Umas eram simples estacas de madeira cruzadas, fincadas na terra. Outras ficavam dentro de pequenas capelinhas, marcando o lugar de alguma tragédia cabocla, que levara a vida de algum sertanejo.
Ah! Eram tantas as histórias... Algumas até tinham virado lendas... A Cabocla Teresa. O Zé Fogueteiro. A dona Sinházinha, da Casa de Caboclo. Lendas que viravam poemas, canções, folclores.
Numa dessas capelinhas João viu um caboclo sentado na porta. Estava enrolando um cigarro de palha e se levantou, fazendo um sinal para João parar quando o carro estava passando em frente. Uma das suas mais antigas lembranças veio á tona. Ele teria, quando muito, uns três anos. Fora, junto com sua irmã mais velha, pegar umas verduras no canteiro que ficava na beira de uma estradinha de terra, onde ficava a tapera em que eles moravam; uma vaca furiosa, que estava pastando nas proximidades, correu atrás deles. Tiveram que se esconder numa dessas capelinhas. A capelinha tinha salvado a vida deles. Se não houvesse aquela capelinha, a vaca teria matado os dois a chifradas. João lembrava que ela ficou bufando uns quinze minutos na porta da capelinha, tentando atingi-los com seus chifres.
Ele não pode deixar de esboçar um pequeno sorriso. Graças a Deus, alguém tinha morrido naquele local. Por isso ele e sua irmã estavam vivos. Puderam crescer, ganhar dinheiro, ter filhos. Tudo por causa de uma capelinha erguida em lembrança de um morto.
Veio-lhe á memória o nome do caboclo que tinha morrido naquele lugar, para o qual tinham erigido aquela capela. Chamava-se Genésio. Sua mãe o conhecera. Morrera assassinado por um desafeto, por causa de uma disputa de terras.  
Moço, mi dá uma carona até Campos Novos? ─ perguntou o caboclo, com um sorriso de poucos dentes, todos amarelados de fumo.
─ Claro. Sobe ai─ disse João, parando a caminhonete e abrindo a porta para ele subir.
O sinhô não é daqui não, né? ─ perguntou o caboclo.
─Não. Sou de São Paulo ─ respondeu João. ─ Mas eu nasci em Campos Novos e depois de quarenta anos, estou vindo fazer uma visita só para ver se ainda encontro alguns parentes meus.
─ E de que família o sinhô é? ─ perguntou o caboclo.
─ Dos Marianos ─ respondeu João.
─  Ah! os Mariano!Conheci muito eles ─ disse o caboclo com seu sorriso amarelado.
─ É mesmo? E o senhor sabe se algum deles ainda mora por aqui?─ perguntou João, interessado.
Oia, moço, que eu saiba num tem não. O urtimo, prá dizer a verdade, já morreu há muitos anos. Era o Zé Virgino. Os fios dele foram tudo embora prá cidade.
─ Que pena ─ lamentou João. ─ Mas pelo menos eu posso visitar o túmulo dos meus avós e tios no cemitério.
Ah, é ─ disse o caboclo. ─ No cimitério o moço vai encontrá eles tudo.
Estavam quase chegando á aldeia de Campos Novos, que fica numa depressão da serra, formando um pequeno vale. Já dava para ver a torre da igrejinha da aldeia e as cruzes do cemitério que ficava atrás dela. Em volta da igreja, as poucas construções da aldeia. Dois arruados de cerca de cem casas.
Num deve te mudado muito desde que o sinhô saiu daqui, né, moço?─ perguntou o caboclo.
─ Nem sei, sabe? ─ respondeu João. ─ Eu sai daqui com uns três anos de idade e a única coisa que me lembro é do gosto de um doce que se vendia nas quermesses da igreja, um doce chamado cavaquinho. E também de uma vaca que perseguiu a mim e á minha irmã um dia. E nós só nos salvamos porque nos escondemos numa capelinha igual áquela onde o senhor estava sentado ─ disse João.
Eles tinham chegado á porta do cemitério da aldeia.
É aqui que eu fico ─ disse o caboclo.
─ Eu também vou parar aqui. Afinal, se não há nenhum parente vivo meu por aqui, a única coisa que eu posso fazer é visitar o túmulo dos estão ai ─ disse João.
É bão mesmo a gente ter arguém que lembra de nóis ─ disse o caboclo. ─ Eu digo preles que o senhor teve aqui. Eles vão gostar. Si mais num vê ─ completou o caboclo, meu nome é Genésio e eu me lembro do senhor quando entrou na minha capela fugindo daquela vaca.
João nunca mais se esqueceu do arrepio que percorreu todo o seu corpo quando o caboclo lhe deu aquele gélido aperto de mão. E quase desmaiou com alucinação que teve em seguida. Pois a ele pareceu que o caboclo simplesmente desaparecia em um daqueles túmulos. Quando se aproximou do túmulo para comprovar se fora  mesmo uma alucinação, seu coração quase disparou. Nele havia uma plaqueta, carcomida pelo tempo, onde ele pode ler um nome: Genésio de Oliveira 1914- 1946. Mas as surpresas do dia ainda não haviam terminado. Quando ele voltou para o carro, com o coração batendo como um tambor descompassado, cambaleando como um bêbado, ele viu, no banco do carro, um daqueles antigos doces que parecia um cavaquinho, do qual ele tanto se lembrava. No entanto, segundo informações do povo da aldeia, ninguém mais, na região, fazia aquele tipo doce há mais de quarenta anos.

 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/09/2014
Alterado em 29/09/2014


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