João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

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A Cabala é um sistema iniciático desenvolvido pelos mestres da religião de Israel, para interpretar a Bíblia e desvendar os segredos místicos, que no entender desses mestres, o livro sagrado encerra. Para esses mestres, a Bíblia teria sido escrito em código, utilizando as propriedades que o alfabeto hebraico possui, de combinar letras e números em uma mesma grafia, apresentando a cada combinação, um significado diferente.
Assim, a Cabala se fundamenta na idéia de que o alfabeto hebraico constitui uma forma de escrita que vem diretamente de Deus, pois foi desenvolvida no céu para fins de comunicação entre Deus e os seus agentes, construtores do universo, que são os anjos. Os sons e os valores númericos desse alfabeto, devidamente combinados, formam signos que contém as grandes verdades físicas e espirituais que formatam o universo em todas suas dimensões. Conhecer cada combinação e seus significados é o grande ensinamento dessa tradição, ensinamento esse que só pode ser repassado de forma oral aos seus iniciados.
A Cabala, como sistema filosófico e disciplina de conduta moral foi criada por um grupo de filósofos, a maioria de origem israelita, a partir do século XII da Era Cristã, provavelmente na região do Languedoc francês, mas suas raízes estão fincadas em uma antiga tradição já encontrada entre os rabinos nos tempos bíblicos, e utilizada principalmente por grupos sectários judeus, nos séculos anteriores ao nascimento de Jesus Cristo, e também por escritores esotéricos cristãos nos primeiros séculos do Cristianismo para disfarçar a pregação da doutrina cristã, então posta na clandestinidade pelas autoridades romanas.[1]
 
Alguns dos precursores da Cabala, segundo os estudiosos desse sistema, foram os profetas Ezequiel e Daniel, cujas visões, extremamente difíceis se serem explicadas em linguagem vernacular, só podem ser estudadas e entendidas por quem domina o arsenal do simbolismo cabalístico. É fato que tais visões guardam relação com os momentos históricos vividos pelo povo de Israel e refletem os próprios sentimentos, temores e esperanças vividos por esse povo. Mostram também a existência de uma tradição muito em voga entre os povos antigos, de retratar os seus estados interiores através de complicadas visões gestaltianas. Como explica Northrop Frye há, no Velho Testamento, uma concepção de linguagem que é poética e “hieroglífica”, não no sentido de uma escrita de sinais, mas no sentido de se usarem as palavras como um tipo particular de sinal.[2]
Destarte, muitas palavras, que na linguagem comum significam uma coisa, na linguagem usada pelos autores desses antigos textos significam coisas muito diferentes, que só podem ser devidamente decoficadas se postas no exato contexto em que viveram os seus autores e recenseadas as suas relações de sentimento e interação com o ambiente e os acontecimentos que fizeram parte da experiência que eles relatam. Referindo-se ainda ao estudo do autor acima citado, verifica-se que nas sociedades mais antigas, há uma interação mais estreita entre o sujeito e o objeto, no sentido de que a ênfase do sentimento experimentado pela pessoa recai mais sobre a relação que os liga do que na própria observação do sentimento em si, coisa que só começou a acontecer depois da experiência grega.[3]  
É nesse sentido que o referido autor explica que "muitas sociedades primitivas possuem palavras que expressam essa energia comum á personalidade humana e á natureza circundante e que são intraduzíveis em nossas categorias e correntes de pensamento.(...) A articulação das palavras pode dar corpo à este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como fórmulas de “feitiço” ou encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário desse princípio é o que pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tal contexto, as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder.
[4]
 
Gráficamente, a palavra Cabala deriva da raiz hebraica Qibel, que significa “receber”. Assim ela originou o termo hebraico Qabalah, aportuguesado para Cabala, que por definição refere-se ao recebimento da doutrina “não escrita” que supostamente estaria escondida em nomes e termos bíblicos, alguns deles intraduzíveis para as linguagens desenvolvidas pelos povos do ocidente, pois se referem a conceitos esotéricos só conhecidos pelo povo de Israel. Dessa forma entende-se a Cabala como sendo uma tradição oral transmitida de geração a geração por alguns iniciados na mística da religião judaica, e que pretende conter as verdades enunciadas por Deus a Moisés, verdades essas que não fazem parte da Torá escrita. E nas partes em que essas verdades são recepcionada nos cinco livros atribuídos á Moisés, ela aparece cifrada em títulos, nomes e outros termos, cuja transposição de letras e valores numéricos lhes dão diferentes significados, só conhecidos pelos iniciados[5]  
   
     Dessa forma, podemos dizer que a Cabala é uma tradição que vem acompanhando a saga do povo de Israel desde a sua mais remota origem. Provavelmente, como bem assinala Dion Fortune em seu excelente livro, suas raízes venham de antigas  crenças caldaícas, de onde Abraão e seus descendentes a receberam, e por transmissão oral ela foi passando de geração em geração, como forma de tradição, e esta, por fim acabou desembocando na corrente rabínica dos mestres da religião de Israel, que a desenvolveram em um sistema filosófico.[6]
   A tradição costuma atribuir a codificação da Cabala a um rabino chamado Simeon Ben Yohai, que viveu no século II da era cristã, no governo do Imperador Adriano, que aliás o condenou á morte. Teria sido esse rabino, muito famoso na história da religião judaica, que reuniu os ensinamentos dos antigos mestres e repassou-os oralmente ao seu filho, Rabi ben Eleasar, e outros discípulos seus, em forma de discursos, feitos em uma linguagem simbólica e mística. Estes, por sua vez, teriam reunidos esses ensinamentos em um livro denominado Sepher há-Zhoar (o Livro do Esplendor), que se tornou a Bíblia cabalística por excelência. Historicamente, porém, como bem demonstra Alexandrian em seu tratado sobre a filosofia oculta, o Shefer há-Zhoar só aparece no Ocidente em fins do século XIII, revelado por um rabino judeu espanhol, chamado Moisés ben Schemtob (1250- 1305), que ensinou Cabala nos reinos de Leão e Castela.[7]
A partir de investigações conduzidas ainda na Idade Média, relatadas pelo autor acima citado, muitos estudiosos chegaram á conclusão que o Zhoar, na verdade, seria um trabalho compilado ainda no século XIII, e dele teriam participado vários autores, a maioria deles oriundos da região do Languedoc, onde uma próspera colônia judaica florescera nos territórios dominados pelos príncipes simpáticos á doutrina cátara.[8] Todavia, ainda que se aceite esse pressuposto, não se pode negar que essa tradição já estava bem desenvolvida na Europa e já era de larga aplicação junto á comunidade judaica e também entre os cristãos gnósticos muito antes do advento do catarismo. A prova disso é a existência de várias escolas de ensinamento cabalístico pelo continente europeu muito antes da região do Languedoc ter se tornado a capital do misticismo na Europa e a principal preocupação da Igreja de Roma.[9]
 
Ao longo do tempo, os praticantes desse sistema desenvolveram dois tipos de Cabala. Um deles, relacionado com as coisas divinas, é chamado de Cabala Sagrada. Essa é a Cabala dita religiosa. Refere-se á pesquisa do Inefável Nome de Deus, palavra sagrada, mística, impronunciável, somente conhecida de alguns poucos iniciados, que formavam um grupo seleto de mestres, denominado Mischnah. Seu conhecimento conferia ao iniciado nesses Mistérios um poder divino, que o capacitava a repetir o próprio ato de Deus no exercício de criação. Seus aspectos estão diretamente ligados á uma crença judaica, de que certas palavras, se pronunciadas com sua grafia e som corretos, possuem um grande poder. Alguns rabinos diziam mesmo que a Cabala continha os ensinamentos dados por Deus à Adão no Éden, ensinamentos esses que permitiram a ele dar nomes á criação, e através dos nomes dados, exercer o seu domínio sobre eles. Pois como diz a Bíblia, [1]E o eterno Deus formou da terra todo animal do campo e toda ave do céu, e trouxe ao homem para ver como os chamaria; e tudo que chamasse o homem á alma viva, esse seria seu nome.” [10]
Dessa forma, uma palavra secreta, quando se aprende a formá-la e pronunciá-la com seus sons corretos, pode construir ou destruir o próprio mundo. Tal era a crença dessa escola de ensinamento cabalístico. Foi dessa escola, e das aplicações encontradas nesse estudo, que nasceu a Cabala mágica, como tal entendida a crença de que certo tipo de oração, discurso, ou mesmo frase, pode eliciar forças ocultas para atuar em benefício ou em prejuízo de alguém. Úma das aplicações mais bizarras dessa linha cabalística era a pesquisa dos nomes secretos de Deus, dos anjos e dos demônios, pois quem detivesse esse conhecimento, segundo essa crença, poderia ter o controle do universo. Aliás, segundo essa corrente de pensamento, Deus teria criado o mundo manipulando os sons e as letras do alfabeto hebraico. Assim, saber escrever e pronunciar as palavras certas conferia ao seu autor o poder de criação. Ele seria o mago por excelência, capaz de fazer aparecer e desaparecer coisas, e realizar qualquer tipo de milagre. Esse era o tipo de poder que alguns místicos cristãos, adeptos da Cabala, pretendiam que Jesus tinha. Segundo essa tradição, Jesus (Yeshua ben Ioseph), era um rabino que detinha esse conhecimento, dai os milagres que lhe eram atribuídos. Um dos fundamentos dessa tese é o fato de Jesus jamais ter chamado (em público) Deus pelo seu nome hebraico consagrado (Jeová), mas sempre se referir a ele como “o Pai (Abba) que está nos céus”.
 
Assim, esse tipo de Cabala, profundamente impregnada de ensinamentos esotéricos, tinha, não obstante, um objetivo bem prático. Sua função era revelar aos seus iniciados os grandes segredos da natureza, mediante os quais se poderia conseguir poder sobre ela. Nesse sentido ela se equiparava á alquimia, e em muitos casos, as duas tradições conviveram estreitamente, compartilhando os mesmos signos. Esse tipo de Cabala mágica acabou inspirando vários pensadores ocultistas cristãos, que viam nela uma forma de conhecimento da natureza. Foram esses filósofos cabalistas os mestres que precederam os rosacrucianos no desenvolvimento da filosofia oculta e no apostolado do livre pensamento, numa época em que discordar, ou pensar diferente dos doutores da Igreja, significava a prisão, a tortura nas masmorras e a morte nas fogueiras.[11]
 
Um outro tipo de Cabala foi desenvolvido principalmente por filósofos que queriam ver nessa disciplina uma filosofia moral destinada a aperfeiçoar o caráter humano e tornar a vida do homem na terra, mais confortável. Nesse sentido transformaram a Cabala em uma espécie de disciplina de auto-ajuda, erigindo, ao mesmo tempo em que pugnava por uma liberdade de pensamento estranha aos costumes da época, um edifício cosmológico e ético que viria contribuir em muito para a construção das correntes de pensamento que influenciaram a Reforma religiosa e o sistema filosófico que se seguiu, o Iluminismo.[12] Esse ramo da Cabala é hoje o mais difundido entre os povos de cultura cristã, pois emcampa um vasto domínio nas doutrinas de conteúdo moral, sendo utilizado inclusive por profissionais da psicologia e da psicanálise para subsidiar estudos sobre o conteúdo mais profundo da mente humana. O exemplo mais conhecido dessa aplicação se encontra nos trabalhos do grande psicanalista e pesquisador Carl Gustav Jung.[13]



 
 
[1] Principalmente os essênios, que utilizavam muito esse tipo de escrita. Outro exemplo dessa literatura clandestina escrita em linguagem simbólica, usando o método cabalístico é o Apocalipse de São João. Esse curiosa obra, que visa divulgar a doutrina cristã á sete igrejas da Ásia, até hoje desafia a curiosidade dos estudiosos, em face da estranha simbologia usada pelo autor.
[2] Northrop Frye- O Código dos Códigos, Ed. Boittempo,  São Paulo, 2004
[3] É o que mostra Sir James Fraser em seu estudo “ O Ramo de Ouro” publicado pela Zahar Editores, São Paulo, 1982 quando se refere ao sentimento do homem primitico em relação aos seus deuses. É uma relação de simbiose, no sentido de que o homem não possui um “self” ou seja, um sentimento de si mesmo, independente da divindade que ele cultua. Essa noção só seria desenvolvida pelos gregos com a cultura da filosofia.
[4] Idem, op citado, pg. 28.  O autor em questão cita, á guisa de exemplo, a palavra maná, ou mana, que em Êxodo, 16, aparece como sendo uma espécie de farinha que Jeová fez cair do céu para alimentar o faminto povo de Israel. Essa palavra (Man, Maná, Manes), designa uma força, ou energia, que se encontra concentrada em objetos ou pessoas e que pode ser adquirida, conferida ou herdada. Na mitologia romana, esse termo conecta-se com “manes”, palavra que designa a influência que os ancestrais mortos podiam exercer sobre os vivos.
[5] Os cinco livros atribuídos à Moisés formam o Pentateuco, ou seja, Gênese, Êxodo, Números, Deuteronômio e Levítico. No conjunto eles compõem a Torá ( Toráh). As citações bíblicas aqui registradas são extraídas da Bíblia Hebraica, traduzida por David Gorodovitz e Jairo Fridlin, publicada pela Editora e Livraria Séfer Ltda, São Paulo, 2015.
[6] Dion Fortune- A Cabala Mística; Ed. Pensamento, São Paulo, 1957.
[7] Sarane Alexandrian, História da Filosofia Oculta, Esfinge, Lisboa, 1970.
[8] O Languedoc foi assim chamado por causa da língua falada nessa região. Era a língua occitana, também conhecida como occitânica, langue d'oc, ou provençal (em francês, langue d'oc; em occitano, lenga d'òc). Língua derivada do latim, era falada no sul da França, ao sul do rio Loire, em territórios italianos nos Alpes e algumas partes da Espanha e Portugal. A língua portuguesa arcaica sofreu muita influência do provençal. O Languedoc foi a terra dos cátaros, principal seita herética da Idade Média, cujo extermínio, pela Igreja de Roma, é considerado um dos maiores genocídios da História.
[9] Exemplos dessas escolas foi a de Isaac, o Cego, que ensinou a Cabala entre 1160 e 1180 na Provença e seu aluno Ezra ben Salmon, que lecionou, na mesma época, essa disciplina na Espanha. Na Itália destacaram-se-se os famosos sábio cabalistas Abraham Abulafia ( 1240-1291  ) e na Alemanha Yehuda ben Samuel, o Piedoso, e Elazar, rabino de Worms (1176-1238). Cf. Alexandrian, História da Filosofia Oculta, op citado.
[10]  Gênesis, 2: 19. Bíblia Hebraica, Ed. Séfer, São Paulo, 2015.
[11] Entre estes pensadores podemos listar os médico Paracelso e Van Helmont, bem como o fiósofo Robert Fludd, todos famosos alquimistas que usaram os métodos da Cabala em suas pesquisas sobre a Pedra Filosofal.
[12] Ver nesse sentido, as obras da historiadora inglesa Frances Yates, que mostra, com muita propriedade, a influência desse tipo de pensamento sobre os filósofos da Renascença, especialmente o grande Giordano Bruno. Seus dois estudos, Giordano Bruno e a Tradição Hermética e O Iluminismo Rosacruz, são obras fundamentais para o entendimento do pensamento que inspirou a Reforma religiosa e as correntes filosóficas que a seguiram, como o Ilumismo. Ambas foram editadas no Brasil pela Editora Cultrix.
[13] Jung faz muitas referências à Cabala em seus escritos, quanto ás relações que ele encontrou entre sonhos de seus clientes e suas conexões com símbolos cabalísticos. Em uma de suas cartas, ele fala da necessidade de se estudar a Cabala do ponto de vista psicológico. Ver Obras Completas de Jung- Ed. Vozes, 1978
 
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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 03/09/2015


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