João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


MEMÓRIAS DE UM APOSENTADO
 
Por Nelson Albissu
 
 
 
  • Mãe
“Mãe, sinto muita falta da senhora. Das suas conversas, suas coisas e, principalmente, da sua presença.
Conheço um poema do Drummond que diz: Que de tudo fica um pouco, mas da senhora ficou bastante.
Aqui em casa, tudo lembra a senhora. Quando vou comer, lembro-me de quanto gostávamos das suas sardinhas fritas e da sua salada de pimentões assados, que tão felizes comíamos, conversando tantas coisas.
Até das suas histórias, que eu estava cansado de ouvir, agora sinto falta. Também não sei por que a senhora partiu tão depressa. Podia esperar mais um pouco.
Sabe, mãe, meu passarinho partiu logo depois da senhora? E foi triste, porque ele também eu vi agonizar. Lembra de que uma das suas últimas distrações era vê-lo cantar e pular de poleiro em poleiro? Acho que eu o amava por causa da senhora.
Lembra-se daquelas plantas de frente à sua janela, que eu ia tratando enquanto conversava com a senhora? - Floriram. São vermelhas e bonitas.
As bananeiras que plantei no Mirante também já deram cachos.
É, mãe... dá saudade mesmo! Por que a gente se amava tanto?
Em minha formatura foi tão duro não ver senhora. Lembro-me da senhora querendo ficar boa, para ir me ver. A senhora ia gostar de ver este seu filho recebendo diploma.
Mãe... é tão dura a saudade que sinto, por que a gente se amava tanto?
Hoje, por acaso, se acaso existe, antes de escrever esta carta, fui rever aquela minha antiga palestra. Por vício, peguei um lápis e comecei a reescrever algumas passagens que o tempo deixou sem sentido. Mas foi tão difícil! Quase não consegui. Dizia tanto da senhora. Precisei cortar o trecho do crucifixo, pois não tinha mais a senhora para dar o testemunho. Outras coisas mantive. Coisas que dizem tanto de mim e da senhora. Com esses cortes, alguns momentos da sua grandeza ficaram inexpressivos. Mas tudo da senhora continua muito significativo na minha memória. Fazem parte de mim. Até hoje, nos momentos de indecisão, recordo da senhora dizendo:
- Vai, filho!
E eu ia e vou, às vezes, até mesmo sem conhecer o caminho, porque a senhora me deu a certeza de que, mesmo quando erro, não sou o pior dos homens.
Meus filhos, mãe, estão ficando grandes. Através deles, agora, percebo as dores que lhe causei. Mas do meu amor pela senhora ninguém pode duvidar.
Mãe, estava me esquecendo de contar que a casa ficou pronta. Pena a senhora não estar aqui para ver. Agora até tenho tempo. A gente poderia conversar tanto! A senhora gostava de conversar, mas eu só vivia correndo.
Lembra-se dos seus últimos meses? Eu chegava tarde da faculdade, devido ao projeto, e a senhora estava me esperando. Mesmo quando sua dor era grande, a gente ia conversando, conversando, até a senhora se distrair e dormir. Não foram poucas as madrugadas que passamos juntos.
A senhora me chamava, logo que eu chegava.
- Oi, mãe! - eu respondia, lá da cozinha, com pão atravessado na boca.
E senhora pedia:
- Vem conversar comigo!
Eu lhe falava do meu futuro, enquanto senhora me contava de uma saudade, que sinto hoje sem nunca tê-la vivido.
Hoje tenho mais tempo, para o passado, presente e futuro, mas não tenho mais a senhora.
Ah! Ia esquecendo: - nasceu minha filha caçula. É forte e bonita. Chama-se Bruna. Pena a senhora não ter podido esperar, para ela conhecê-la. Com certeza, vocês também iam se gostar tanto.
Com um grande beijo, querida!
 
  •  PAI
Virou a última volta da chave. Apanhou o canivete, o fumo e o cachimbo, apagou a luz da cozinha e respirou fundo e forte. Sentiu que o dia havia terminado e só lhe restava a noite de solidão.
A noite que não teria de esperar por ninguém. Não viriam atropelar seu sono leve. Seria a primeira noite, absolutamente sozinho, depois de quarenta anos de muitas obrigações no convívio da família. O filho caçula, o último ainda solteiro, que também se chamava Casemiro, abreviado para Miro, depois de ter sido Mirinho, havia casado nesse dia.
Um sentimento forte de vazio tomou conta dos seus sessenta e sete anos. Pensou em ir dormir, mas, a caminho do quarto, sentou-se no sofá vermelho da sala e entregou-se às recordações e às emoções passadas. Ia cortando o fumo e retrocedendo no tempo.
Lembrou-se da mãe bugre, humilde e de estrutura pequena, como toda mulher brasileira do século passado. A figura do pai se impôs: sujeito forte e valente, administrador de fazenda, descendente de Mouros, gente das Astúrias, na Espanha.
Rememorou imagens da infância, quase já esquecidas, de menino pobre de Ribeirão das Almas, carpindo café, fazendo roçados, prendendo porcos, peraltices feitas e de quando saiu de casa, aos nove anos, para ir trabalhar e viver entre peões adultos.
Contemplou na parede lateral, pintada de rosa, a fotografia emoldurada do filho mais velho, aos 19 anos, vestido com a farda do exército nacional. Hoje, casado, pai de filhos, formado em Direito e morando a 60 km dali, em Mogi das Cruzes, cidade de muitos voluntários da revolução de 1932.
Encheu o cachimbo e mergulhou em reminiscências da adolescência e juventude entre Taubaté, São Manoel e São Paulo.
Mulheres dançaram na lembrança... caboclas, moças solteiras, malcasadas e até algumas de uma só vez. E sussurrou com saudade:
─  Bons tempos!
Olhou para as mãos, que tanto trabalharam e notou pequenas cicatrizes, impressões deixadas por muitas máquinas, instrumentos e ferramentas. Mas sentiu que as da alma eram mais profundas.
─  O senhor está despedido. Não precisa mais vir amanhã!
─  Por quê?
─  Acabou o algodão para enfardar.
─  Pode passar no escritório!
─ Por que, senhor?
─  Não veio o pedido do vidro que esperávamos. E sabe como é... com esta crise temos de despedir alguém. O setor metalúrgico é o mais atingido.
Mas, em tempo, lembrou-se da empresa inglesa. Os ingleses da fiação.
─ Deus do céu! Que loucura é a vida em um só minuto antecipado. As mulheres precipitaram tudo. Não era para distribuir o manifesto internamente. Com isso, perdera o emprego e passou a ser caçado pela polícia, por pertencer ao partidão.
O desterro para Santo André, em 1949, foi inevitável. A mulher com o filho nos braços, exilados entre as plantações de eucalipto, iniciando um novo bairro e vivendo da colchoaria empoeirada e escondida.
A lembrança da mulher, já falecida há três anos, explodiu na memória.
Sentiu vontade de chorar, mas se conteve. Nunca chorou na presença dos filhos. Seus retratos na parede denunciavam suas existências e testemunham esta firmeza. E só murmurou:
─  Ela não devia ter partido tão cedo! Podia ter esperado mais um pouco, para ver o casamento do menino e a minha velhice!
Com a garganta seca, baforou a fumaça do cachimbo e indagou-se:
─ Agora como vai ser? Pra que continuar aqui, se meu filho mais velho mora em Mogi das Cruzes, a filha com dois netos em São Bernardo e o caçula, âncora dos meus dias, casou e foi para São Paulo?
E concluiu com dor:
─ Um após o outro, todos partiram! Todos levaram um pouco de mim e deixaram este imenso vazio.
Olhou o telefone, pensou em ligar para o filho, mas era tarde, então renunciou, mais uma vez, em transmitir solidão. E assim continuou só e entregue, feito velho, nas mãos da saudade e do tempo.
Junto ao telefone, avistou o carnê da Previdência Social e um sorriso de amanhã surgiu em seus lábios, trazendo-o de volta ao presente.
─ Amanhã é dia de luta com meus companheiros na Associação dos Aposentados.
Levantou-se, apagou o cachimbo, verificou se havia trancado a porta e foi deitar-se feliz, pois, corajosamente, decidia:
─ Fico em Santo André!    
(a um herói que conheci ─MEU PAI)
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Nelson Albissú, é paulistano é mestre em Artes Cênicas, formado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Entre outros, escreveu mais de cinco dezenas de livros infanto-juvenis, muitos deles presentes há 25 anos em catálogos de várias editoras. Foi dramaturgo de dezoito peças, que ascenderam ao palco. Também é cronista, professor universitário e diretor de teatro. Por 10 anos, foi diretor municipal de Cultura. Hoje é coordenador do idoso, em Mogi das Cruzes (SP). E-mail: nelsonalbissu@yahoo.com.br

 
NELSON ALBISSÚ
Enviado por João Anatalino em 16/10/2015


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