João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


“O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço. Na eternidade, todo tempo ― passado, presente e futuro ― coexiste simultaneamente. No Aleph, a soma total do universo espacial encontra-se em uma diminuta esfera resplandecente de pouco mais de três centímetros.”  
                                                                             
                                                                O Aleph- Jorge Luis Borges
                                   

    Quando ainda muito jovem li um conto fantástico do escritor e poeta argentino Jorge Luís Borges. O conto se chamava “O Aleph”, e ele muito me impressionou. Era uma história incrível que falava da possibilidade de o universo inteiro estar contido numa diminuta esfera de três centímetros de diâmetro, que podia ser contemplada em determinados lugares do espaço, como se fosse uma estrela oculta aos olhos da razão e só visível aos olhos do espírito.

Na época não entendi bem o que ele queria dizer com tudo aquilo, mas ficou a impressão. Eu sempre fui muito impressionável. Durante algum tempo, com algum medo, mas também bastante curiosidade, cheguei mesmo a procurar, no escuro do meu quarto, algo semelhante a essa esfera maravilhosa de Borges, na qual eu pudesse ver o universo acontecendo sem precisar sair de casa, sem ter que ligar a televisão ou ler jornais, ou ainda, ir à escola para saber o que andava rolando por esse mundo imenso onde eu me sentia apenas um minúsculo grão de poeira.
Em princípio pensei que o Aleph de Borges fosse algo assim como uma espécie de Jornal Nacional ubíquo e atemporal, capaz de mostrar concomitantemente todas as dimensões do espaço ― tempo em uma única tela, no mesmo fragmento de instante. Com isso, ao contemplá-lo estaria lendo, num átimo de segundo, uma biblioteca inteira do saber universal, com todas as informações sobre o passado, o presente e o futuro. Seria fantástica uma coisa dessas!
Mais tarde fiquei sabendo que o Aleph é a primeira letra do alfabeto hebraico. Segundo os cabalistas, foi o primeiro som emitido por Deus, no seu esforço de criação do universo. Aprendi que de acordo com essa antiga tradição dos judeus, Deus fez o mundo com três elementos da sua Essência: a luz, que é sua energia atuando em forma de eletricidade, magnetismo e calor, o som, que é a Palavra Sagrada, o seu Nome Inefável e o número, que são as representações qualitativas e quantitativas de suas infinitas qualidades, manifestadas como leis naturais no mundo físico.
Foi com essa explicação que eu consegui entender, afinal, os versículos iniciais da Bíblia, que tratam da criação do mundo. Até então eu imaginava Deus como uma espécie de mago, preso em um quarto escuro, tentando tirar luz de uma bola de cristal.
Haja luz, Ele disse. Houve luz e Ele viu que a luz era boa. Então separou a luz das trevas. Esses versículos sempre foram um mistério para mim, tanto quanto aqueles com os quais São João abriu o seu evangelho. No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, o Verbo era Deus. E pior ainda de entender eram as palavras de Deus a Moisés no Monte Sinai: “Dirá aos egípcios: Eu Sou manda que liberte o meu povo”.
Mas agora eu entendo. Combino o pensamento dos cientistas com a intuição dos cabalistas e tenho uma explicação que me contenta o espírito. Os cientistas dizem que no início (do tempo e não do mundo), havia um corpo, ou região, no espaço, tão densamente carregada de energia, que um dia explodiu. Essa explosão, o Big-Bang, deu início ao universo.
Os cronistas bíblicos dizem que Deus fez o céu e a terra separando a luz das trevas. A partir desta minha nova visão do processo não vejo mais Deus como um mago no escuro dizendo à sua bola de cristal que acenda e mostre em sua superfície todas as conformações do universo futuro, como pensava antes. Agora vejo Deus como se fosse um campo de energia, se aquecendo e se dilatando até o ponto de ruptura, que é quando Ele pronuncia o seu próprio nome. Então Ele explode e se multiplica em infinitos fragmentos de luz. O Big-Bang é esse grito de Deus dizendo: Eu Sooooou... E esse grito ressoa até hoje pelo nada cósmico.
Por isso se diz que Deus é energia e todo o universo é feito de luz. E o Eu Sou, que ele disse a Moisés, quer dizer isso mesmo: Ele é tudo isso.
 
Entendi também o porquê de os cultores dessa estranha sabedoria dos judeus dizerem que o alfabeto hebraico, sistema de escrita que combina letras (som) e valores (números) é uma escrita sagrada, ensinada aos homens pelos anjos, a mando do próprio Deus.
Isso explica porque esse alfabeto é tão cheio de mistérios. Dizem que combinando os sons das suas letras com o valor numérico delas é possível fazer verdadeiros milagres. Há inclusive quem afirme que foi graças a esse conhecimento que Jesus conseguiu ressuscitar Lázaro. A prece que ele fez antes de entrar no sepulcro e dizer as palavras: “Lázaro, levanta-te e sai para fora” (o pleonasmo é da Bíblia, não meu), continha, na verdade, fórmulas cabalísticas que se expressavam em palavras de poder. E todos os milagres que ele fez estavam fundamentados nesse mesmo princípio, razão pela qual seus apóstolos, gente simples que sequer suspeitava da existência de tal sabedoria, não conseguiam entendê-lo.
O homem Adão também foi feito através desse processo mágico. Dizem os textos sagrados que Deus fez um molde de barro do primeiro homem e bafejou nas narinas dele o sopro da vida. Eu acho que não foi um sopro nas narinas que deu vida a Adão, mas sim uma palavra dita ao pé do ouvido do modelo. É sabido que certas palavras têm poder, especialmente quando ditas ao pé do ouvido. Diga para uma pessoa “eu te amo, ou eu te odeio” e veja a tempestade de sentimentos (forças) que você desencadeia dentro dela.
Uma palavra, em especial, que é o Verdadeiro Nome de Deus, é a fonte de todo o poder do Universo. Esse Nome foi a palavra que Ele pronunciou no momento em que rompeu a casca da sua Existência Negativa. Isso foi antes de Ele começar a fazer o universo e se tornar Existência Positiva. Foi quando ele disse “Eu Sou יהוה.” Seu Nome ecoou pelo nada cósmico com uma potência de infinitos megavates e continuará ecoando por toda a eternidade, alargando a vastidão do espaço─tempo, preenchendo-o com sua presença física.
Mas יהוה, ou IHVH, em caracteres latinos, que em nossa língua deu Jeová, não é o único nome de Deus. Essas letras são apenas a base segundo a qual o seu verdadeiro Nome pode ser escrito. Segundo quem entende desse assunto, são cerca de 10 bilhões as combinações que se podem fazer com as letras do verdadeiro Nome de Deus. Só uma dessas combinações é o seu Verdadeiro Nome. Quem o conhece tem poder para fazer coisas extraordinárias, inclusive dar a vida a objetos inanimados. Esse teria sido o poder dado a Adão, no Éden, e que ele usou mal, razão pela qual foi expulso de lá e se tornou um mortal comum, sendo inclusive apagado de sua memória o conhecimento desse Nome Sagrado.
E desde então esse Nome Sagrado tornou-se a Palavra Perdida que os sábios procuram pela vida afora. Fora Adão, Noé e alguns poucos patriarcas antigos, somente Abraão, Moisés e seu irmão Aarão, e depois dele Davi e Salomão, tiveram a glória de compartilhar desse segredo dos segredos, que é o conhecimento dessa Palavra Sagrada. Jesus também deve ter compartilhado dessa sabedoria, senão não teria feito os prodígios que fez...
Muitos cabalistas tentaram descobrir que Nome era esse que Deus deu a Si mesmo. Jeová era apenas um deles. Adonai, Zeus, Tupã, Marduc, Brhama, também. Esses cabalistas pensavam que o verdadeiro nome de Deus estaria oculto nas letras do alfabeto hebraico e por isso passavam a vida calculando e escrevendo as combinações que se podia fazer com elas.
Depois de séculos desse insano trabalho chegaram enfim a um Nome que segundo eles, seria o Nome Sagrado. Com esse conhecimento, eles tentaram imitar o Criador, dando vida a uma forma de barro, pronunciando essa Palavra Sagrada no ouvido dele. Dessa bizarra experiência saiu um homúnculo medonho, uma espécie de ser monstruoso, um Frankenstein mítico, chamado Golém.

     Lendas à parte, a verdade é que o alfabeto hebraico, de fato, constitui um sistema de escrita muito misterioso. Dizem que cada letra simboliza uma etapa da construção do universo e contém um cabedal de sabedoria para a vida prática. Assim, esse alfabeto é, na verdade, uma grande enciclopédia do saber, que mostra todo o processo pelo qual Deus constrói o universo e ainda por cima, nos ensina a viver melhor.
Borges diz que Aleph é um signo que condensa o universo inteiro dentro de uma minúscula esfera luminosa que não ultrapassa três centímetros de diâmetro. Toda a vida dele e das demais pessoas do mundo, as que vivem, viveram e ainda vão viver, bem como a totalidade do que já aconteceu, está acontecendo e ainda acontecerá em toda a imensidade cósmica pode ser contemplada dentro dessa esfera, como num filme projetado na velocidade da luz, mas ainda assim possível de ser acompanhado pelos olhos do espírito. Por isso, contemplar um Aleph é ver o universo sendo construído bem diante dos nossos olhos. O universo que já foi, o universo que é e o universo que será. Esse é o sonho de toda alma que guarda em si um pouco dessa qualidade que se chama espiritualidade. Por conta dessas sutilezas de espirito, os santos se entregaram à uma vida ascética, profetas se imolaram, os alquimistas passavam a vida toda à procura da pedra filosofal, feiticeiras foram queimadas e fervidas em caldeirões, e os magos de todas as espécies construíram uma febril mitologia que ainda hoje faz ferver a mente da humanidade em grandes delírios. Todos estavam buscando o seu próprio Aleph.
Na época não me dei conta da implicação desse fenômeno porque não tinha nenhuma informação a respeito, mas hoje chego a entendê-lo melhor. Na verdade, tenho a impressão que talvez Borges estivesse falando do átomo primordial, chamado de Grande Singularidade pelos cientistas, de Ovo Cósmico pelos hierofantes das antigas religiões e de sefirá Kether pelos cabalistas. Já o profeta Isaias chamou essa visão de Mercabá, o movimento sagrado que Deus faz em suas manifestações, a partir das quais constrói o universo.
Segundo esses velhos mestres do conhecimento arcano o universo primordial era como uma espécie de ovo, que a divindade responsável pela construção do mundo botou e chocou.
Essa é uma visão interessante. Pois de acordo com os homens de ciência, o universo nasceu da explosão de um corpo carregado de energia, há cerca de cinco ou seis bilhões de anos atrás, e os sacerdotes das antigas religiões diziam que ele nasceu de um ovo. Essas visões não são incompatíveis porquanto foi um padre cientista chamado Georges Edward Lemaitre quem primeiro divulgou entre seus colegas a ideia de que no tempo zero o universo era uma massa minúscula de energia, condensada em um espaço de infinita pequenez, que ele chamou de “ovo cósmico” ou “super átomo.” Devido à pressão interna causada por uma potência energética tão grande, comprimida dentro de um espaço tão mínimo, ele um dia se rompeu.
E de acordo com os velhos mestres dessa sabedoria tão antiga quanto a humanidade, o universo primordial era uma espécie de ovo, que a divindade responsável por sua construção botou e chocou.  O ovo é uma analogia que aparece em todas as cosmogonias imaginadas pelos povos antigos. Ele é o símbolo que representa o nascimento, o renascimento, a renovação e a criação universal de forma contínua e cíclica. Muitas civilizações antigas acreditavam que o mundo havia nascido de um ovo. Os hindus, por exemplo, diziam que uma gansa de nome Hamsa (o Sopro divino), havia chocado o ovo cósmico na superfície das águas primordiais, o qual foi dividido em duas partes e deu origem ao céu e a terra, sendo o céu a clara, e a terra a gema.
A intuição do ovo cósmico aparece igualmente nas tradições chinesas, celtas e egípcias. Na China antiga se dizia que antes do surgimento do mundo, um ovo semelhante ao da galinha se abriu e de dentro dele surgiu a terra (Yian) e o céu (Ying). Já para os celtas o ovo cósmico era assimilado a um ovo de serpente. Dentro dele a energia cósmica, representada por uma serpente que morde o próprio rabo estava contida. Ao romper-se o ovo, essa energia deu origem ao universo físico.

     De qualquer modo, a ideia é a de que o universo primitivo era algo redondo, esférico, granular, o que nos faz pensar que tanto Borges quanto os velhos mestres estavam falando da mesma coisa.
Para os cientistas, no começo do tempo, Deus era uma região no espaço onde a energia estava tão densamente concentrada, que um dia explodiu. Por falta de um nome melhor (os cientistas são pessoas sem imaginação), chamaram Deus de Grande Singularidade e ao seu grito de liberdade, de Big Bang. Assim, místicos e cientistas usam linguagens diferentes para expressar a mesma visão de um evento que a nossa mente não consegue organizar, mas apenas imaginar.
Admirável fórmula para justificar a existência de algo que ainda não se consegue explicar! Mas assim tudo se combina. Luz, que é energia polarizada; Bang, que é um som, Big, que dá uma ideia de grandeza, ou de número. Aí voltamos à intuição inicial dos cabalistas. Luz, Som e Número, dando início ao maior espetáculo de todos os tempos: o nascimento do universo! Eis a ciência e a tradição dando-se as mãos, cantando um dueto, que afinal de contas me parece bem afinado. Eis o Big-Bang, o parto de Deus, feito em Si próprio, por Ele mesmo.  
     Oh! Imaginação! Maravilhosa propriedade da mente humana essa, que nos permite construir visões tão deliciosas quanto fantásticas! Não há poesia mais bela quanto a linguagem da fantasia tentando construir imagens do desconhecido. Nem verdade mais provável do que aquela que só os puros de coração conseguem fantasiar.

                                        
     O fato é que depois de muita concentração acabei descobrindo o Aleph no meu próprio quarto. Agora, quando me bate a necessidade de contemplar o inconcebível, como dizia Borges, já sei onde buscá-lo. Basta me deitar em decúbito dorsal, fechar os olhos e me abandonar à voragem da liberdade de uma mente sem controle, que ele me vem imediatamente. Então eu posso ver o universo inteiro com todas suas relações acontecendo perante meus olhos. Eis aí o meu primeiro dia e minha última noite, o primeiro beijo e o primeiro esperma colhido na palma da mão. O peso do prazer, a cor do meu ódio e o cheiro do meu amor. O som da esperança e a textura da dor; a extensão rasa da alegria e a profundidade insondável da tristeza. Todas as mensagens neurolinguísticas que informam meus programas de vida estão ali e eu posso estudá-las, não para mudá-las, pois elas são história e a história não se muda, mas sim, para compreender essas informações e aprender um jeito novo de interpretá-las e conviver com elas.

Posso recuperar o gosto do primeiro beijo; compreender a estrutura do átomo e a desorganização celular que se transforma em câncer. Tudo são informações que a minha mente registrou, decompôs, interpretou e remontou com um significado todo particular. E depois as registrou nos meus neurônios na forma de cores, sons, aromas, tatos, paladares, que eu vi, ouvi, senti e provei por todas as minhas vidas, a atual e as anteriores, que são as memórias dos meus antepassados, registradas no meu DNA.
Com elas posso navegar, sem aparelhos, pelo fundo do mar e viajar, sem equipagens, pelo espaço cósmico. Cavalgar um cometa num passeio pela Via Láctea. Minha mãe dizia que eu era louco por ficar pensando em coisas parecidas com essas e minha mulher achava bonito eu falar nisso quando nós estávamos namorando. Gostava dos poemas que eu escrevia com temas desse tipo. Um deles era assim:

“Eu sou feito da mesma essência que as gotas da chuva
E as rosas do meu jardim.  
Mas eu não sou chuva e muito menos uma flor.
Eu sou uma síntese que ganhou interioridade.
Certamente eu poderia ser qualquer coisa no universo
Se não tivesse perdido,
Na complexidade das metamorfoses sofridas,
A irmandade que tenho com a unidade primitiva da matéria.
   
Ao longo da flecha do tempo,
Dividido até a mais ínfima particularidade
Eu encontraria a minha fórmula fundamental.
Mas de que me serviria ser apresentado ao meu eu elementar,
Esse grão inicial de poeira cósmica, infinitesimal e infinitamente grande,
Esse ser pluralístico, energético e uno,
Se nele eu não puder ver o meu próprio rosto?
 
No imenso de mim desaparece a intimidade do meu ser.
No mais ínfimo de mim eu sou todos os seres.
Nos dois limites de mim
Sou além de mim e aquém do que sei de mim.
Cada grão de mim tem sua própria singularidade.
Cada grão de mim é múltiplo e retém as propriedades do todo.
Cada grão de mim é eventual e torna-se fato a cada nova relação.
“Eu sou um sistema, um totum e um quantum.”

    Depois, quando ficamos mais maduros e as contas para pagar começaram a fazer pressão sobre as nossas vidas, ela dizia que era perda de tempo ficar gastando fosfato com essas especulações sem sentido. E no mais das vezes, incompreensíveis para uma pessoa sensata.
 Seria mais produtivo, disse ela, aprender inglês ou fazer um curso de direito. Aceitei o conselho, fiz os dois cursos, passei em um concurso público, dei um jeito de ganhar a vida sem ter que trabalhar como jumento de sertanejo nordestino, mas comprei também um telescópio. Quando chegava da faculdade, à noite, ou depois que voltava da repartição, deixava a aridez da lei para os exegetas, as dificuldades da língua inglesa para Shakespeare, as chatices da repartição para o dia seguinte e ia para a varanda ouvir a música das estrelas. Sim, as estrelas cantam.
 
     O Aleph de Borges é menos misterioso do que o dos cientistas. O Aleph dos cientistas só pode ser visto com aparelhagens muito sofisticadas na intimidade dos laboratórios mais avançados de física nuclear ou de astronomia. Borges dizia que esse signo mágico podia ser visto em toda sua inteireza no porão de um velho prédio da rua Garay, na Buenos Aires dos anos quarenta.

Hoje eu sei que Alephs são grãos de energia luminosa que guardam  o soft da composição estrutural do universo. São partes que mantém as propriedades do todo. Deram até nome de gente para ele. Chamam-no de “bóson de Higgs”, cujo apelido é “partícula-Deus.”
Não posso provar que ambos sejam a mesma coisa, mas a minha intuição me diz que sim. Se forem, posso dizer que toda a matéria universal é feita de Alephs. Cada grão de poeira pode conter um deles. Cada átomo e cada célula do nosso corpo também. Então haveria muitos desses grãos energéticos primordiais espalhados pelo espaço cósmico e pelo nosso organismo. Para vê-los só é preciso adotar uma adequada postura no ato de olhar e um certo estado de espírito para identificar o que se está vendo.
Isso não são fantasias de escritor não. São realidades físicas factuais. Os iniciados em física atômica e os experts em informática sabem do que estou falando. Os sensitivos também. Há pessoas que vêem e falam com espíritos. Não são todas as pessoas que têm essa capacidade. Para isso é preciso ser médium. Médiuns são indivíduos que desenvolvem um tipo de sensibilidade especial. Minha mãe, por exemplo, era médium. Conversava com espíritos e tinha visões. Eu nunca acreditei nas coisas que ela dizia ou que afirmava ver. Ela era analfabeta e pessoas sem instrução não podem ser sábias, eu pensava. Mas ela morreu com setenta e oito anos e só entrou num hospital para morrer. Nós a levamos para um hospital porque lá seria mais fácil obter o atestado de óbito do que se a deixássemos morrer em casa. Em muitos casos é isso mesmo que fazemos todos os dias. Nos recusamos a receber a morte em nossa casa e levamos os nossos entes queridos para morrer num hospital, longe das pessoas que eles amam. É cruel, mas é a forma mais fácil de se lidar com isso.
A minha mãe tratou-se a vida inteira com os remédios que conhecia. Nossa casa parecia uma botica de alquimista. Lembro-me que lá havia uns remédios com nomes estranhos. Bryonnia, Aconittun, Allium Sativum, Beladonna, Phósporus, Arnica, hortelã, chifre de boi queimado, estranhas ervas e uma raiz esquisita chamada carapiá, que mais parecia um tufo de pelos pubianos. Nada de drogas sintetizadas em laboratório.
Minha mãe era iletrada e ingênua. Mas conseguiu criar sozinha os quatro filhos que lhe sobraram dos oito que teve, pois o meu pai morreu quando eu tinha sete anos e o meu irmão mais velho, quinze. Nunca passamos fome nem tivemos que pedir nada para ninguém. Hoje eu penso que se tivesse que fazer o que ela fez me faltaria sabedoria e coragem para tanto. E agora eu acho que se ela dizia que via e falava com espíritos, então falava. A sabedoria que eu tenho hoje não me é suficiente para contestar a sensibilidade dela.
A ideia de Borges é a de que o universo é como um caleidoscópio. Você olha para ele de certa maneira e ele se decompõe em milhares de cores e formas. A nossa mente também é assim. Você olha para ela e ela se multiplica em infinitas relações chamadas visões, ideias, conceitos, valores. Nós as chamamos de memórias, raciocínios, fantasias, mi-ragens, alucinações, insights, inspirações etc. Mas na verdade, o que eles são é uma profusão de cores, aromas, sons, sensações táteis e gustativas que foram registradas no nosso cérebro como códigos neurolinguísticos. 
Cada um com o devido valor emocional. Quanto custa, na moeda emoção (que não tem paridade com nenhuma outra moeda), a lembrança do primeiro beijo? A dor da perda de um ente querido? A memória das melhores férias da nossa vida? A mágoa de uma separação que a gente gostaria de ter evitado? A primeira palavra de um filho? Quanto valem esses registros?
Perdi minha primeira esposa para um câncer. Lutamos muito, eu e ela, para evitar que ela fosse embora antes de chegar o nosso primeiro neto. Uma vida pela outra me parecia uma troca justa. Mas não foi. A sensação é de que paguei antes e muito caro para receber depois um produto que acabou sendo um presente para outra pessoa. Um afeto nunca substitui o outro. A gente aprende a viver numa nova conformação de universo, só isso. Só por razões de equilíbrio. Com novos prazeres, novos apegos, novas motivações para viver. Mas nunca os mesmos. Não há substitutos para aquilo que se perdeu na voragem do tempo.
Minha filha mais velha casou-se muito jovem, foi viver a vida dela longe de mim. Odiei a opção que ela fez, achei que estava jogando a vida fora. Depois vi que estava enganado. A minha raiva calou-se, o meu diálogo interno passou a ser orquestrado pela emoção que senti ao ouvir o choro da minha netinha. A minha filha caçula foi viver na Austrália. Longe demais para que a gente possa se ver pelo menos uma vez por ano. Nós nos comunicamos quase toda semana pelo skype. Mas a informação neurolinguística virtual não tem a mesma densidade emocional que a cinestesia do toque, do cheiro e da visão. A emoção de um abraço não pode ser compensada nem pela mais perfeita informação visual ou sonora.
Assim, de uma hora para outra toda uma vida montada com processualística regularidade e planejadíssima esperança foi torpedeada por um maldito câncer. Ou pelo menos eu achava que ele era o culpado. Hoje não acho mais. O Aleph me mostrou que não. Ele me ensinou que o mundo é feito de partículas energéticas que se cruzam e se combinam. A vida também. Ela é feita de relações, que por mais indesejáveis que sejam, não conseguimos evitar porque são necessárias para a conformação estrutural do universo. Isso também já não me incomoda mais. Hoje eu sei que não há culpa no universo físico porque na matéria não existem intenções. Só informações que se cruzam e se transformam em outras informações. Ficou mais fácil conviver com as mutações que ocorrem na vida.
                                      
     O Aleph de Borges era uma realidade física que podia ser vista a olho nu, bastando para isso se colocar num certo ângulo de visão e adotar uma atitude de fervorosa credulidade.

      Certamente, quem for à Buenos Aires hoje para tentar repetir a experiência do grande poeta argentino não o conseguirá, pois segundo ele mesmo, o imóvel onde ele aparecia foi demolido nos anos quarenta, mas eu acho mesmo que aquele Aleph não estará lá porque Borges já morreu e o levou com ele para a dimensão onde se encontra hoje esse “quanta energético”, que um dia foi Jorge Luís Borges, maravilhoso contador de histórias extraordinárias, tão verossímeis quanto os artigos escritos pelos melhores cientistas.
Pois o Aleph nada mais é que uma fagulha desprendida pela nossa própria mente quando entra em contato com a energia do universo. Quantas coisas você vê quando olha para dentro de si mesmo? Todas as suas lembranças, que são o seu passado cósmico, registrado no seu DNA, todos os seus desejos, que são o seu presente, e todos os seus sonhos, que são o seu futuro, estão condensados nessa centelha. No meu Aleph eu vejo o queixo anguloso da Walkíria, minha primeira namorada. Vejo um trem de subúrbio na antiga Central do Brasil. Uma caixa de engraxate, gibis do Fantasma, do Mandrake, do Roy Rogers, do Bolinha e dos Sobrinhos do Capitão. Uma bola de meia, um par de Alpargatas Roda. Um salão na Rua Senador Dantas. Meu primeiro emprego de carteira assinada. Minha mãe me dando café amargo no meu primeiro porre. Sinto o gosto e o cheiro dele. Vejo o Bellini erguendo a Taça Jules Rimet em Estocolmo. Danço numa Fonte Luminosa que havia em frente à loja Marisa. Sinto cheiro de verniz na mão. Ouço o discurso do presidente Castelo Branco inaugurando uma usina de fabricar aço em Mogi das Cruzes, vejo um rapazinho jogando uma garrafa de gasolina na parede do prédio do Makenzie e depois correndo para não apanhar da polícia do Erasmo Dias. Festivais de música popular no antigo teatro Paramount. Vejo diplomas, alunos, um casamento, uma criança nascendo, um fusquinha verde, com o motor vazando óleo, um churrasco na praia, uma cama de hospital, neve nos Alpes e a areia quente do deserto da Síria; as Pirâmides do Egito e as ruínas de Petra e Palmira; Sacerdotes eviscerando o corpo de Ransés II e o imperador Pachacutec dando instruções para os maçons incas construírem o santuário de Machu Pichu; um teatro na Broadway levando o Fantasma da Ópera. Passeio pelos esgotos de Paris com Jean Valjean. Vejo o John Wayne matando índios e o Alan Ladd ─ o bruto que também amava ─ liquidando fazendeiros maus que molestavam pobres colonos sem terra. Todas as cores do Almodovar e as visões do Kurusawa desfilam ante meus olhos. Ouço o mar tempestuoso de Dylan Thomas, os sinos fúnebres do Hemingway; vejo os “ookies” de Steinbeck plantando Vinhas da Ira e os cangaceiros de Graciliano interagindo com Deus e o Diabo na terra do Sol. Lá está Glauber Rocha com uma filmadora na mão. Capitu passou na minha frente com seus olhos de ressaca. Iracema aparece vertendo o sangue dos seus seios como o pelicano da lenda. Ouço e vejo uma ambulância, homens de branco, gente morrendo de tifo, de varíola, peste negra, de AIDS. Sinto cheiro de éter e clorofórmio. Vejo também telas de computador e letras misturadas, como frutas num liquidificador; livros empilhados, contas para pagar, uma formiga que passa equilibrando nas pinças uma folha de grama três vezes maior que ela. Minha mãe lavando e passando uma pilha enorme de roupas. Um e-mail que não abri cobrando uma resposta que não dei.
Um pouco mais de crença e coragem poderia me levar às minhas vidas passadas. Existe gente que jura de pés juntos que já fez isso. Eu não cheguei nem perto.
Um passarinho bica três vezes a vidraça. É um aviso. Mudo de tempo. É o meu presente. Coisas para fazer. Livros para ler. Perguntas para responder. Uma ideia para registrar. Bateu a fome. Vou à geladeira. Só tem um iogurte. Preciso ir ao supermercado. Ah! Tem cerveja. Pego uma. O passado é enfadonho, o presente é cansativo, o futuro pode assustar. Venta lá fora. Está calor dentro do quarto. Abro a janela. A mente escapa por ela.
Estou de novo em Jerusalém, percorro a verdadeira Via Dolorosa. (Engraçado, ela não se parece nem um pouco com aquela viela que o guia me mostrou.) No Egito subo o Nilo numa barca dos tempos de Cléopatra. Passeio de barco pelo Pantanal de Mato Grosso. Garças, jacarés, anacondas enormes roncando como sujeitos com apneia.  Embarco no Expresso do Oriente em Veneza e vou até Istambul, passando por Serajevo, Bratislava, Bucarest, Tirana, os cumes nevados dos Montes Carpatos. O Castelo do Conde Drácula no alto das montanhas da Valáquia, o Bósforo, a cúpula da Santa Sofia. Vejo um laboratório de alquimista em Praga, onde um Adepto acaba de transformar duas libras de estanho em duas onças de ouro; danço uma valsa em Viena, vestido de casaca e usando uma cabeleira empoada; uma casa de chá em Tóquio, as muralhas da China e o Taj Mahal. Atravesso São Paulo num aero-trem, construído em cima do Tietê limpinho e sem aquele cheiro de cloaca.
 O Aleph de Borges é uma esfera de cerca de três centímetros de diâmetro, o meu tem o tamanho da minha capacidade de linguagem, pois ela é que conforma a minha imaginação.
Paulo Coelho viu no Aleph as suas vidas passadas. Cada um vê, não talvez o que quer, mas o que precisa. Eu talvez não tenha vidas passadas, pois ainda acho que uma já é demais.
Borges dizia que aquilo que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o universo, porque a eternidade não é uma linha reta que se estende de um irrecuperável instante que ocorre antes de nós, até outro ponto, na nossa frente, que também nunca atingiremos. A eternidade, nessa imaginação, é um ponto único de extrema densidade, onde tudo ― tudo mesmo, presente, passado, futuro ― coexiste simultaneamente.
E só existe um lugar onde esse processo pode ocorrer: dentro da nossa mente. Ela é uma máquina, um poderoso acelerador de partículas, onde elas colidem normalmente e formatam um inconcebível universo.
O Aleph é como um holograma do universo. Uma ínfima parte dele que conserva as propriedades do todo. Como a nossa mente, que também é uma fração do universo, mas dentro dela a realidade inteira está contida. Não é preciso se encerrar no porão de um prédio soturno numa rua qualquer de uma cidade específica, para podermos vê-lo. Basta, em alguns casos, fechar os olhos e deixar a mente vagar à toa, sem querer dirigi-la, como tentamos fazer com a nossa própria vida.
O Aleph de Borges é um conto cabalístico, extraordinário, mas também é uma bela história de amor. É o relato do amor dele por Beatriz Viterbo e da dor pela sua perda. Parece que quando sofremos perdas emocionais irrecuperáveis (e todas essas perdas são do tipo irrecuperável), a nossa alma se fragmenta e um pedacinho dela se separa de nós. Então ele fica boiando no espaço, girando, como se fosse um minúsculo planeta, com tudo que fomos, somos e seremos, expostos dentro dele. Quem vê o Aleph encontra a sua Palavra Perdida.
O meu Aleph é a história das minhas relações com o inconcebível universo, o seu é a sua. Cada célula do nosso corpo, cada gota do nosso sangue, das nossas lágrimas e do nosso suor carrega a totalidade da nossa experiência presente, passada e futura. Essa totalidade é o nosso DNA. Nele está inscrita toda a memória do mundo, o resultado presente das relações que se estabelecem dentro dele e as expectativas futuras das relações que ainda serão estabelecidas. O universo é unitário e atemporal. A sensação de que ele tem uma idade e uma medida é uma ilusão da nossa consciência, que não aceita o fato de que nós passamos e ele continua. Nós é que somos efêmeros e limitados. Somos passageiros que precisam descer do trem em alguma estação. Nada do que já aconteceu desaparece. Apenas foi deixado para trás, em outra estação. Tudo que vai acontecer já existe em algum lugar. O futuro é uma estação que ainda não chegou. Por algumas a gente passa. Por todas nunca.
 
Cores, sons, cinestesias, passam pela tela da minha mente na velocidade da luz.  Meus olhos internos já não conseguem acompanhar o desfile vertiginoso das imagens que se formam diante dele. Fugidias como a areia que escorre entre os dedos, elas se perdem na eternidade, como cometas no infinito cósmico. Sonolento, à beira da inconsciência, não consigo mais reter as visões que se sucedem. Mas consigo ouvir, com todas as letras, as palavras do pregador: “unde exeunt flumina revertuntur, ut iterum fluant”.*

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* Tudo é de ti, tudo vem de ti, tudo a ti reverterá.
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/04/2018


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