João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A CONSPIRAÇÃO


O indivíduo mal encarado, sentado em frente a uma caneca de vinho numa taverna da Rua de La Juerie, não tirava os olhos da porta de entrada. Vestia um hábito sujo e puído, de cor preta, cingido com uma tira de couro da mesma cor, enrugada e carcomida. Na cabeça  um capuz preto, pontudo, que foi imediatamente puchado para as costas tão logo acomodou-se na cadeira. Suas vestimentas, bem como o rosário pendente no peito, indicavam que ele fazia parte da Ordem dos chamados Frades Negros, como tais eram conhecidos os monges da Ordem dos Dominicanos. Entretanto, uma análise mais cuidadosa da sua figura logo poria o observador em cuidadosa desconfiança, pois além do inusitado da cena– um padre dominicano em uma taverna, com uma caneca de vinho nas mãos – havia também o fato de que sua aparência pouco condizia com o visual comum dos austeros e temidos frades dessa Ordem, os quais, para a opinião pública em geral, eram conhecidos como os “Padres da Inquisição”. E se o observador chegasse mais perto, para sentir o hálito pestilento que aquela boca de dentes puídos exalava, mais ainda duvidaria de que aquele sujeito fosse, de fato, um monge, pois a sua figura apontava mais para um mendigo do Pátio dos Milagres, ou um salteador de estradas, do que para um religioso pertencente à uma Ordem eclesiástica tão temida quanto a dos dominicanos. Além do mais, veria que no alto da sua cabeça, coberta por uma cabeleira suja e desgrenhada faltava a necessária tonsura que a todos os frades era comum.
Sua postura era a de quem estava esperando alguém, e ao mesmo
tempo, a que de quem não queria ser visto em companhia da pessoa por quem estava esperando. Por isso, constantemente levantava-se da cadeira onde estava sentado e ia até a porta da taverna, onde ficava durante alguns minutos, perscrutando as proximidades, para ver se alguma das pessoas cuja presença temia, estaria se dirigindo à taverna.
Esquin de Floyran, esse era o nome do mal cheiroso falso monge que já havia ordenado uma segunda caneca de vinho, quando a pessoa que ele esperava chegou. O sujeito, também vestido com um hábito negro de monge e a cabeça coberta com um capuz da mesma cor, usava uma barba negra, cerrada, de onde sobressaia um nariz aquilino que separava dois olhos negros e severos. Parou por um instante na porta da taverna e olhou demoradamente para os poucos fregueses, que naquela hora, ainda em pleno dia, se davam ao luxo de frequentar um lugar daqueles.
Ao ver que ninguém se mostrou dar conta da sua presença, o sujeito entrou silenciosamente e sentou-se em frente ao seu confrade, que havia ocupado uma mesa na parte mais escura da taverna. Em seguida abaixou o capuz do hábito, deixando ver a tonsura no alto da cabeça, mostrando que ele era, de fato, um monge, e sua presença ali, naquele momento, e junto a um personagem tão estranho e de aparência assás comprometedora, não era algo que ele estava fazendo com alegria e boa vontade.
̶  Estais pronto para fazer vosso depoimento?  ̶  perguntou o recém chegado, para o monge maltrapilho e mal encarado, que antes de responder esvaziou a caneca de vinho.
̶ Sim, Eminência. Já tenho todas as respostas que vós precisais.
 ̶  Então estais pronto para confirmar vossas informações perante o rei e seu Conselho?

 ̶ Perfeitamente, Eminência. É tudo que desejo. Como sabeis, to -
das essas informações já foram dadas ao rei Afonso de Aragão, mas ele não acreditou em nada do que dissemos. A Ordem é muito influente na Corte daquele reino.
 ̶ Sabemos disso. Mas Vossa Majestade, o rei Filipe, está muito interessado em vossas informações. Se elas forem do seu agrado, tereis a vossa recompensa.
 ̶  Não o faço pela recompensa, Eminência, e sim pelo amor à justiça e pelo zelo que tenho para com a nossa Santa Madre Igreja, que está sendo envergonhada pelas práticas infames dessa Ordem de adoradores do demônio.
 ̶  Hum. Acredito...  ̶  disse o monge, com uma ponta de sarcasmo.  ̶   Vinde comigo então  ̶  completou, levantando-se e puxando o capuz sobre a cabeça.  ̶  O rei nos espera.
O monge, a quem Esquin de Floyran seguiu era nada menos que William, monge da Ordem dos dominicanos, recém nomeado por Filipe, o Belo, para o cargo de confessor da família real. A par da importância do cargo que exercia junto a Corte, que lhe proporcionava uma estreita intimidade com o monarca, esse servil eclesiástico, conseguira, com o apoio de Filipe, ser nomeado para o cargo de bispo de Paris. Dessa forma, era conhecido como William de Paris. Mas o astuto monge beneditino queria muito mais que isso.

William de Paris era um homem extremamente ambicioso. Ordenado padre aos vinte e dois anos, começara uma carreira vitoriosa na administração pública exercendo o cargo de secretário-confessor do rei. Era uma espécie de mentor espiritual de Filipe, o Belo, e nessa função adquirira uma grande influência na Corte real. Nesse posto burocrático ficara durante dois anos, mas não era isso que desejava para sua vida. Sabia que como conselheiro do rei a sua carreira não iria além da cortesia e da amizade que o monarca lhe devotava, pois os assuntos importantes do reino jamais passavam ao largo do seu conhecimento, já que ele não tinha assento no conselho consultivo do monarca.
Assim, aproveitando a sua proximidade com o rei ele manobrou para que lhe fosse arrumado o cargo de Inquisidor-Mor no Tribunal da Santa Inquisição. Com a ascensão de Bertrand du Goth para o cargo máximo da hierarquia da Igreja e a sua nomeação como papa Clemente V, isso foi fácil. O Máximo Pontífice não negava nada ao rei francês. Foi assim que ele se tornou um dos homens mais temidos e poderosos da França.
Sua nomeação para esse alto posto na hierarquia da Igreja lhe dava um imenso poder. Era, por assim dizer, a maior autoridade eclesiástica em solo francês. E como o direito canônico ainda regulava, em grande medida, o comportamento das pessoas em todos os reinos cristãos, podia-se dizer que sob sua autoridade estavam, praticamente, todos os cidadãos da França. Cooptado por Nogaret, logo se propos a ajudar o rei na sua investida contra a Ordem do Templo. Afinal, ele, que era dominicano, não tinha qualquer simpatia pelos Templários. A arrogância e os privilégios de que gozavam sempre lhe pareceram injustos e demasiados.  E se fossem mesmos os sodomitas perversos e idólatras que o rei estava pintando, então a cruzada que se fazia contra eles estaria plenamente justificada.
                                                 
     Jacques de Molay tinha muitas razões para se preocupar, pois Filipe, o Belo, e seus ministros Nogaret e Marigny, já andavam tramando um ataque à Irmandade há algum tempo. Cerca de dois anos antes da invasão do Castelo do Templo ser decidida, Nogaret havia plantado entre os Templários uma dezena de espiões para obter informações sob o que se passava no interior da organização.
A maioria desses espiões havia abastecido o ministro com uma série de informações, mas elas eram tão desencontradas que ele não pudera usá-las até então. É que a maioria deles não conseguira passar dos primeiros graus de iniciação na Ordem e assim não tinham entrado na posse dos segredos mais retritos da Irmandade, que só os mais altos dignitários possuíam.
Essa era uma consequência da forma como a Ordem estava estruturada. Na prática, havia uma cadeia iniciática que todo Irmão que quisesse crescer na hierarquia da organização deveria cumprir. Embora a cerimônia de recepção de um noviço fosse precedida de um ritual, no qual ele jurava cumprir a regra da Irmandade e fazia votos de castidade, pobreza e estrita obediência às ordens superiores, esse ritual era simples e nada de estranho se exigia dele. No mais, ele já estava previsto nas regras que São Bernardo de Clairvaux havia escrito para a Ordem e todos podiam ter conhecimento delas.
Mas internamente, depois de recepcionado e ter recebido o manto branco dos Templários, havia outras práticas ritualísticas que não constavam das regras escritas. Elas se referiam a certos atos litúrgicos acrescentados ao longo do tempo no cerimonial de iniciação e estes eram secretos. Um desses atos, que provocava alguma consternação ao iniciando, era o beijo ritual que alguns preceptores davam na boca do noviço. Esse beijo, dado da face do iniciando era normal. Isso ocorria em quase todas as cerimônias de recepção praticadas pelas ordens monásticas. Agora, o beijo na boca, diziam os delatores, era uma inovação templária e acontecia somente nas iniciações dessa Irmandade. Era um gesto lascivo, obsceno, carregado com uma conotação francamente sodomita, que nada tinha da sincera cordialidade própria das cerimônias desse tipo.
Havia também aquela outra prática, que a maioria dos iniciandos achava mais estranha ainda, que consistia no ato de negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Mas aquilo, diziam os preceptores, era apenas uma encenação, necessária para provar a coragem e a firmeza do noviço. Se havia um significado mais profundo nessa ritualística, só os altos dignitários do Templo sabiam e isso não era comunicado aos neófitos. Fazia parte do ritual de iniciação e todos aqueles que quisessem fazer parte da Irmandade templária deviam cumpri-lo sem hesitação e sem perguntas importunas.
O problema maior vinha depois, quando o noviço era entregue aos veteranos para que estes lhes dessem as “primeiras instruções”. Aí sim, segundo o relato dos espiões, todo o caráter infame da Ordem era revelado, pois então a eles era dito que os votos de castidade feitos pelo neófito na sua admissão só se referiam ao uso de mulheres, e que se um Irmão não pudesse resistir aos apelos da carne ele estaria livre para aliviar-se com outro Irmão. E ele era logo convidado a praticar atos contra a natureza, em obediência a tais preceitos. Os noviços que se recusavam a ceder a tais impulsos eram severamente castigados.
    Como todos eles se recusaram a servir sexualmente aos veteranos, disseram os espiões, foram logo colocados em ocupações subalternas e não puderam ascender na hierarquia da Ordem para compartilhar dos “segredos” divulgados nos seus Capítulos mais avançados. Por isso não dispunham de maiores informações a respeito do que se passava nos círculos mais altos da Irmandade.
     Somente um desses espiões, o sujeito chamado Esquin de Floyran, havia conseguido subir na hierarquia da organização templária. Ele fora preceptor durante algum tempo na província de Bézier e prior em Montfalcon. Prior e preceptor eram cargos de alta hierarquia dentro da Ordem e a eles só eram guindados os cavaleiros que se sobressaiam dentro da Irmandade pelo desenvolvimento de alguma habilidade útil às atividades da organização.
     Esquin de Floyran era um hábil administrador e por isso fora aquinhoado com esses postos. Mas, na administração da preceptoria de Bézier se mostrara corrupto e mau caráter, razão pela qual acabara sendo preso e castigado. E depois fora expulso da Irmandade por conduta inadequada. Segundo constava de um processo movido pela Ordem contra ele, ele foi acusado de desviar dinheiro da organização para utilização em proveito próprio, além de expoliar servos e arrendatários em nome da Ordem, carreando para a organização a antipatia e o ódio do povo daquela província. Depois de cumprir cinco anos de prisão fora expulso dos quadros da Irmandade. Desejoso de vingança havia procurado o rei de Aragão, Jaime II, e apresentado uma série de acusações contra a Ordem. Mas aquele monarca tinha em alta conta a Irmandade em razão dos serviços que ela prestava ao seu reino e não dera importância às suas denúncias.
    Ao saber que o rei Filipe, de França, estava interessado em infor-mações que pudessem comprometer o Templo, ele procurou o Inquisidor-Mor da França, William de Paris, que o levou à presença do rei e de seu principal ministro, William de Nogaret, aos quais fez um relato das cerimônias de iniciação dos Templários e das práticas heréticas e obscenas que, segundo ele, esses monges adotavam intramuros.
 
     O interrogatório foi conduzido por William de Paris na presença de Nogaret, Marigny e o próprio rei Filipe, o Belo.
     – Como preceptor do Templo em Bézier vós iniciastes vários candidatos aos quadros da Ordem do Templo. É verdadeira essa informação? – perguntou William de Nogaret ao traidor.
    – Sim, Eminência, é verdade – respondeu Floyran.
    – Então conheceis bem as práticas realizadas nas cerimônias de iniciação?
    – Sim, Eminência.
     – Podeis relatá-las para nós?
     Esquin de Floyran então relatou que o aspirante a membro da Ordem do Templo, depois de fazer um testamento legando à Ordem todos os seus bens, era levado a uma caverna, ou sala escura, sem janelas, onde ficava durante várias horas meditando sobre o ato que estava realizando. As iniciações eram sempre feitas à noite, mas desde a manhã o candidato já começava a ser preparado. A ele era dito que aquelas horas de escuridão representavam a sua morte para a vida profana e a preparação para a ressurreição na santidade de uma vida dedicada à verdadeira fé. Que se ele não tivesse plena convicção de que realmente queria fazer essa opção, aquele era o momento de desistir, pois após prestado o juramento, não lhe se seria permitido voltar atrás.
     Após esses procedimentos o noviço era levado à capela da pre-ceptoria, onde o preceptor, acompanhado de um séquito de cavaleiros, tomava os seus votos. A cerimônia era realizada no mais estrito segredo, e nenhuma pessoa, que não fosse Cavaleiro Templário devidamente iniciado na Ordem era permitido assistir á recepção. Ela geralmente começava no início da noite e só terminava nas primeiras horas da manhã. E o local onde a cerimônia se realizava era fortemente guadado por cavaleiros armados.
     Filipe ouvia tudo com o queixo entre as mãos e os braços apoiado
no tampo da grande mesa de carvalho, postura que lhe era tradicional. Seus grandes olhos azuis não se afastavam do rosto do traidor. Costumava fazer isso com todas as pessoas com quem falava. Era um olhar frio, penetrante, que parecia vir do rosto de uma estátua. Não obstante a ausência de movimentos oculares, seu rosto emanava uma atração irresistível da qual seus interlocutores não conseguiam escapar. Passava uma sensação de implacabilidade e frieza que costumava gelar o sangue da pessoa a quem seu olhar era dirigido. Funcionava como se fosse uma pinça que extraia de dentro da própria alma do interrogado a informação que estava buscando.
Mas o renegado templário não se mostrou intimidado pela pressão daqueles olhos frios e incisivos. Filipe logo percebeu que aquele indivíduo não estava com medo. Talvez tivesse percebido a importância das informações que estava dando, pois se o próprio rei se dignara a recebê-lo, então devia tratar-se de assunto de muita relevância. Estava preparado para obter um bom preço por elas.   
– Fiquei preso nas masmorras do Templo por cerca de cinco anos, Majestade, e minha memória já não é tão boa. Além disso, se a Irmandade souber que eu estou revelando os seus segredos, a minha vida não valerá uma libra de sal – disse Esquin de Floyran, olhando diretamente para o rei, ao invés de responder à pergunta de William de Paris.
     Filipe entendeu. Balançou levemente a cabeça em sinal de con-cordância. “Eis aí um pilantra esperto”, pensou.
 – Se vós disserdes tudo que sabeis sobre as práticas secretas dos Templários poderemos aquilatar o quanto valem essas informações  ̶ disse Nogaret, que até aquele momento permanecera em silêncio. ̶ Quanto à vossa segurança, ficareis protegido em uma das nossas senescalias até que tenhamos dado um jeito nesses patifes – completou ele.
O traidor olhou para o rei, como se esperasse uma confirmação da promessa de Nogaret. Ele assentiu com um quase imperceptível meneio de cabeça.
     – Bom, vejo que isso interessa muito à Vossas Excelências. Sendo assim, vou fazer um esforço para lembrar-me de tudo – disse o antigo monge templário, mostrando um sorriso amarelo, de poucos e puídos dentes.
     Depois de alguns instantes de estudada postura, na qual simulava estar fazendo um enorme esforço para puxar pela memória, Esquin de Floyran afirmou, com toda a convicção que os Templários, há muito tempo já não tinham mais fé nos preceitos e na doutrina da Santa Madre Igreja. Em consequência, estavam praticando uma religião muito diferente daquela que os bons cristãos professavam.
     ─ Então é verdade que os Templários, ao recepcionar novos cavaleiros, exigem juramentos secretos de obediência a uma doutrina estranha aos cânones da Santa Madre Igreja e praticam atos ofensivos à moral e os bons costumes? O que podeis dizer a respeito desses rituais? ─ perguntou William de Paris.
     ─ É verdade, Eminência. De todos os noviços que recebem o manto branco são exigidos juramentos estranhos contra a santidade dos sacramentos e as crenças cristãs. Os que concordam com essas exigências são recepcionados e recebem o beijo ritual, que o preceptor lhes dá na boca e não na face como seria usual. Depois desse beijo ele é convidado a beijar o umbigo, o ânus e às vezes o pênis do preceptor em sinal de submissão. Os que se recusam a fazê-lo são encerrados em masmorras e de lá só saem quando concordam em se submeter a esse ritual.
     ─ Vós também fostes submetidos a esse ritual obsceno quando da vossa admissão na Ordem? ─ perguntou William de  Paris.
     ─ Sim, Eminência. Todos são. Segundo fui informado, esse ritual é praticado desde que o venerável grão- mestre Gerárd de Ridefort governou a Ordem e os introduziu na cerimônia de recepção.
      ̶  Sei  ̶  disse William de Paris  ̶  dirigindo-se à Nogaret e ao rei. ̶  Esse Gerárd de Ridefort era o grão-mestre da Ordem quando perdemos Jerusalém. Ele foi capturado pelos muçulmanos na batalha de Hatin e depois foi misteriosamente libertado por Saladino. Dizem que ele fez um acordo com o sultão egípcio, no qual prometeu que os Templários entregariam as demais possessões cristãs na Palestina sem lutar.  Segundo dizem, foi ele quem deu ao Templo a sua atual organização. Há quem diga que ele era muito amigo dos sarracenos e que até fez aliança com o Velho da Montanha, o chefe da seita dos Assassinos.  
     ─ E quanto à negação de Cristo e a cusparada na cruz ─ perguntou William de Paris, voltando-se para Esquin de Floyran ─ é verdade que fazem isso em seus rituais?
     ─ Sim, Eminência. No cerimonial de recepção ─ disse o traidor ─ os noviços são constrangidos a negar Cristo por três vezes e a cuspir sobre a cruz. Não lhes é permitido perguntar a razão dessa barbari-dade, mas lhes é dito que se chegarem a subir na hierarquia da Ordem saberão a razão dessa exigência. Os que se negam a fazê-lo são levados para a masmorra e lá ficam até que concordem com a prática.
     ─ A vós, que ocupastes altos cargos dentro da Ordem, certamente a razão dessa barbaridade foi revelada, não? ─ perguntou William de Paris.
     ─ Sim Eminência. Eles dizem que Jesus nunca foi um verdadeiro Deus. Que ele foi um homem comum e por isso não devia ser adorado. Que ele nunca ressuscitou e não nasceu de uma virgem. Assim, o repúdio que eles mostravam, cuspindo sobre a cruz, negando Cristo por três vezes, e às vezes até urinando sobre a cruz, não era a Jesus que eles faziam, pois ele foi um grande mestre e profeta, mas sim, à Igreja que subverteu sua doutrina e engana as pesssoas com mentiras a seu respeito.
     ─ Com base em que eles afirmam essas barbaridades?─ perguntou Nogaret, franzindo a testa, como se alguma memória lhe tivesse sido despertada.
      ─ Em certas provas que eles dizem ter coletado durante a estada na Terra Santa, Excelência ─ respondeu Floyran.   
      ─ E que provas são essas? ─ interveio Filipe, que pela primeira vez deu mostras de ter o seu interesse despertado.
      ─ Não me foi informado exatamente o que seria, Majestade, mas parece que se tratam de documentos escritos e outros objetos trazidos da Terra Santa, que segundo eles, provam que a verdadeira história de Jesus é diferente daquela que é contada nos Santos Evangelhos.
     ─ Alguma vez vistes esses... documentos e objetos? ─ perguntou William de Paris, franzindo a testa.
    ─ Não os documentos originais, Eminência ─ respondeu Floyran ─, mas em alguns dos Capítulos mais avançados são mostradas a réplica de uma cabeça barbada e alguns ossos. E a todos é dado entender que aqueles ossos são do Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas há quem diga também que se tratam dos ossos de São João Batista.
    ─ Que barbaridade! ─ murmurou Filipe, sacudindo negativamente a marmórea cabeçorra.
    ─ Uma bestialidade! ─ completou, por seu turno, Nogaret.
    Em seguida, William de Paris entrou no assunto que parecia incomodá-lo, ou fasciná-lo mais.

    ─ Dissestes que nas iniciações templárias os noviços são forçados a dar beijos obscenos nas partes íntimas dos Irmãos veteranos, isso é verdade?
    ─ Sim, Eminência, essa é a pura verdade.
    ─ E qual a razão dessa obscenidade?
    ─ Eles dizem que esses beijos são rituais e têm uma finalidade
sagrada que só os iniciados dos Capítulos mais adiantados podem conhecer.
    ─ Que tipo de sacralidade pode conter o ato de beijar o rabo de alguém? ─ interveio Nogaret, com sarcasmo.
─ Eles afirmam que isso é necessário para transmitir ao iniciado o “espirito da ressurreição”, Excelência.
     ─ Como assim? Que tipo de espírito é esse? ─ perguntou William de Paris, que já entrevia nessas informações a confirmação de que os Templários estavam contaminados por algum tipo de heresia, que ele, aliás, já conhecia bem. Essa informação poderia ser a chave que o rei estava procurando para abrir as portas da fortaleza templária e demoli-la por dentro. Ele olhou para o rei e percebeu que Filipe também estava seguindo o mesmo raciocínio. Um leve sorriso pairava nos lábios do monarca. Por isso o inquisidor-mor insistiu com o traidor para que ele descesse aos detalhes.
     ─ Eles dizem que esse ritual era originalmente praticado por Jesus e seus discípulos. Que na verdade, a ressurreição de que falava Jesus era uma ressurreição espiritual, que se referia às pessoas que aceitassem a sua doutrina. Por isso ele dizia que quem estava morto reviveria. Segundo os altos dignitários do Templo, Jesus costumava aplicar aos convertidos que faziam parte do seu grupo apostólico, um ritual que simulava a morte e a ressurreição. Esse ritual era praticado dentro de uma caverna onde o iniciando ficava enclausurado durante três dias, para experimentar as trevas da morte. Ao fim desse enclausuramento ele “recebia a luz”. E então ele recepcionado com um beijo nos lábios. Depois  ̶  completou o traidor, com uma certa hesitação, como se estivesse inseguro sobre o que ia falar  ̶  Jesus o conhecia carnalmente. Esse seria, segundo dizem, o ritual que é descrito no episódio da ressurreição de Lázaro, que os autores dos Evangelhos também adulteraram.
     ─ Meu Deus! E como justificam tais barbaridades? ─ perguntou
Nogaret.
     ─ Não sei ao certo, Excelência, pois essas informações só os altos dignitários da Ordem detém. Alguns dizem que os Irmãos que fundaram a Ordem encontraram documentos que provam essas coisas ─ respondeu Floyran.

      ̶   E onde estariam tais documento?  ̶  perguntou William de Paris. Sua face mostrava visivelmente uma preocupação que ele não conseguia esconder.
     ̶  Não me foi dado saber, Eminência. Creio que somente os mestres comandantes do Templo têm essa informação.
     ─ Quanta depravação ─ murmurou Filipe, balançando a cabeça.   
    ─ E quanto à pratica de sodomia. É verdade que tais coisas ocorrem dentro do Templo? ─ insistiu William de Paris, voltando-se para Esquin de Floyran.
    ─ De todos os cavaleiros e sargentos é exigido o voto de castidade ─ respondeu o renegado. ─ Mas aos cavaleiros que recebem a ini-ciação é dito que se eles não tiverem forças suficientes para resistir aos impulsos da carne, eles têm a licença para se aliviarem com seus Irmãos. Que isso não é pecado, pois a proibição do regulamento só se refere ao uso de mulheres. E que isso não é imoral porque o próprio Jesus, conforme o que já dissemos, também fora adepto dessas práticas.
    ─ Meu Deus! Que blasfêmia. Como justificam tais monstruosidades? ─ perguntou Filipe.
    ─ Com uma passagem do Evangelho de São Marcos, Majestade ─ respondeu Floyran. ̶  porque em um de seus trechos, segundo dizem, eles falam de práticas sodomitas realizadas por Jesus quando ele iniciava seus seguidores nos mistérios do Reino dos Céus. 
   ─ Meu Deus, isso é pior do que eu pensava ─ murmurou Filipe, olhando para Nogaret.
    ─ Sobre que versículo de São Marcos vós referis? ─ inquiriu Nogaret, sem esperar que William de Paris retomasse o interrogatório.
    ─ A um versículo que descreve a prisão de Jesus no Horto de Getsemâni. Ali se fala de um jovem, envolto em um lençol, que fugiu nu depois que um dos soldados do Sinédrio tentou segurá-lo. Segundo afirmam, naquele momento estava-se realizando um desses rituais. Os copistas do Evangelho canônico omitiram a passagem que falava do ritual, mas esqueceram de apagar o episódio do jovem nu.

    ─ Sim, essa passagem realmente consta do Evangelho de São Marcos, mas daí se dizer que havia fornicação e sodomia nas práticas realizadas por Nosso Senhor... - murmurou William de Paris.
   ─ É um pecado sem perdão ─ disse o rei.
   ─ Que não pode ser ignorado ─ concluiu Nogaret.
   ─ Praticastes, alguma vez, conjunção carnal com vossos Irmãos? ─ perguntou William de Paris, retomando o interrogatório.
    ─ Nunca! ─ afirmou o renegado templário.
    ─ Mas recomendastes isso a todo noviço que recepcionastes em vossa preceptoria?
     ─ Não, Eminência. Eu deplorava tais comportamentos e me recusava a recomendá-los aos noviços. Por isso fui expulso da Ordem e amarguei cinco anos nas masmorras do Templo.

(Do livro Templários,os Santos Malditos), no prelo)

 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 14/06/2018
Alterado em 14/06/2018


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