A SERPENTE DE BRONZE- LENDAS DA ARTE REAL
A tradição hebraica
Na tradição do povo hebraico a serpente sempre aparece como símbolo do mal. Na verdade, para aquele povo, toda essa mitologia ligada á serpente tinha uma razão bastante lógica, pois elas representavam um perigo bastante real naquelas regiões, sendo responsáveis por um grande contingente de mortes. O poder da peçonha desses répteis, pouco conhecido na época, era sempre associado a algo mágico.
A Bíblia se refere ao perigo que os hebreus corriam no deserto, sendo constantemente picado por elas. Tanto que solicitaram a Moisés que rogasse a Deus para as afastasse deles. Moisés, por indicação do Senhor lhes fez uma serpente de bronze e todos que fossem picados se curavam simplesmente olhando para ela.
É preciso lembrar que o veneno das serpentes, ao mesmo tempo que mata, também pode curar. Depende de como e de quanto se utiliza. É como a sabedoria. É bem conhecido o ditado popular que diz que “esperteza demais vira bicho e come o dono”.
Há um profundo simbolismo por trás do mito da serpente que “ seduz” a mulher e introduz o pecado no mundo. Ele está ligado tanto á questão sexual quanto ao próprio desenvolvimento da consciência humana.(1)
Certamente essas referências ao episódio bíblico foram introduzidas no ritual da Maçonaria para satisfazer aos elementos judaicos que foram admitidos na Ordem a partir do momento em que ela abandonou a sua face operativa, para se tornar essencialmente especulativa.
A origem do simbolismo da serpente também pode ser proveniente de tradições herdadas aos Templários, que, por sua vez, as receberam de certas seitas gnósticas, praticantes do ofismo. (2)
O ofismo
O Ofismo não é um culto de inspiração demoníaca, como comumente se crê. Esse preconceito foi disseminado pelos teólogos da Igreja Católica como forma de combater os cultos pagãos.
Nas tradições egípcias, gregas e persas, anteriores ao Cristianismo, a serpente era representativa de uma divindade subterrânea, essencialmente favorável aos homens. Já nos referimos as uraeus que ornavam o chapéu do faraó como símbolo do seu poder. Já vimos também que algumas seitas gnósticas tinham a serpente Ouroboros como um símbolo bastante significativo que representava, ora as trevas que envolviam o mundo para que o Principio Criador não pudesse recompor a matéria morta e inocular-lhe a vida, ora o tempo infinito que começava e terminava em si mesmo.
Ela era uma espécie de fluxo energético que podia ser aplicado no sentido do bem e também do mal. Esse fluxo era representado por uma serpente que “morde a própria cauda”, significando que ele não tinha começo nem fim. Já os alquimistas tinham a serpente Ouroboros como emblema da dissolução da matéria da Grande Obra, representando a natureza em seus ciclos de eterna morte e ressurreição, que não começa nem termina em parte alguma, alimentando-se de si mesmo. (3)
Na Maçonaria houve uma adaptação do culto ofista ás tradições hebraicas e ao simbolismo da cruz. Essa foi, sem duvida, uma interação necessária para fazer dessa tradição uma alegoria aceitável tanto a judeus quanto a cristãos, tirando-lhe a conotação luciferina que as variantes gnósticas apresentavam. Dessa forma mascarou-se, ao mesmo tempo, as origens pagãs do tema e suas relações com seitas heréticas, fazendo-se crer que toda a inspiração do simbolismo utilizado se apoiava em motivos cristãos, o que não é verdade.
Entretanto, a nós não parece haver muita diferença entre o fato de Moisés mandar fundir uma serpente de bronze para servir de catalizador de energia cósmica, capaz de curar os feridos por picadas de animais peçonhentos, e a crença dos ofistas que pensavam poder captar essa mesma energia através de práticas de meditação ou exercícios corporais, entre os quais a própria utilização do sexo como forma de realização desse êxtase.
Ambas as interpretações estão no domínio do esoterismo. Não vemos porque se deva aceitar a utilização da magia quanto se trata de um fato bíblico e não aceitá-lo quando se trata de outras fontes. O próprio Moisés, ao que parece, era um mago que dominava com muita competência a arte da magia, fosse ela proveniente da intervenção divina ou mera prestidigitação. Suas demonstrações perante o faraó e perante seu próprio povo são uma prova disso. Veja-se principalmente o episódio em que o seu cajado se transforma numa serpente que “engole” as duas congêneres produzidas pelos magos do Faraó.(4)
Energia cósmica
Assim, o simbolismo da serpente não tem conotação obrigatória com temas luciferinos. Seu significado esotérico tanto pode estar ligado a temas religiosos quanto à questões filosóficas de cunho metafísico. Na Maçonaria a função desse símbolo é a mesma que ele tem nas práticas iniciáticas dos iogues. Trata-se de representar o fluxo constante da energia que os irmãos em Loja despertam e que flui em espiral, elevando o psiquismo dos iniciados ás alturas cósmicas, ligando-os á noofera, de onde provém todas as inspirações. (5)
Como na prática da kundaliniioga, a energia percorre os dois planos cósmicos nos quais a vida se processa. No plano microcósmico, domínio do ínfimo, onde reside o espírito, que é energia enrolada sobre si mesma no mais alto grau de potenciação, a kundalini desperta e viaja pelo interior do corpo humano, percorrendo os centros (chacras) de distribuição, de onde se espalha por todos os elementos do corpo. E fora dele, através de todas as ligações físicas ou simplesmente mentais que o individuo estiver mantendo naquele momento.
No plano macrocósmico, que é o domínio do imenso, ela se manifesta como matéria (maya) e movimento, formatando o mundo das realidades visíveis e sensíveis. Esse simbolismo, portanto, nada mais é que a formulação esotérica da noção de sinergia, palavra utilizada pelos físicos e psicólogos para representar o processo pelo qual se unificam as emanações energéticas emitidas pelas diversas fontes em interação. (6)
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Notas:
(1) Esse tema foi desenvolvido no estudo denominado O Homem Primordial, publicado neste site.
(2) Na verdade, a chamada “serpente de bronze” é uma alegoria que representa o cetro real usado por Moisés, na condição de príncipe egípcio que era. Os reis egípcios usavam um cetro folheado em bronze, em forma de serpente. Dizia-se que esse cetro possuía propriedades mágicas, capaz de promover o rejuvenescimento das pessoas, da mesma forma que a serpentes “rejuvenescem” trocando de pele. Nos rituais de sagração dos reis egípcios, os chamados festivais sed, era costume a realização de rituais em que a “lepra”, sinal de degeneração, era curada pelo toque do cajado mágico, promovendo a regeneração da pessoa afetada. Uma dessas cenas de regeneração pelo cajado mágico do faraó foi reproduzida na tumba de Kheruef , a camareira da rainha Tiye, esposa de Amenhotep III, pai de Akhenaton. Moisés utiliza as duas alegorias, tanto a da lepra que é curada, quanto a da serpente de bronze, para mostrar aos hebreus o poder da sua doutrina regeneradora. Na Maçonaria dos graus superiores, o Cajado de Abraão e a Serpente de Bronze se fundiram para formar a alegoria do Tau. Eles simbolizam, tanto o poder clerical ( o poder do Sumo-Sacerdote, conferido a Abrão), quanto o poder de cura. Não é, pois, sem razão que esse símbolo é também o emblema da Medicina.
(3) O simbolismo da Serpente de Bronze começa com o episódio bíblico do Cajado de Aarão. Moisés pediu a Aarão e a cada um dos doze líderes das tribos de Israel que trouxessem ao Tabernáculo uma vara de vime e nela escrevessem o nome de cada um deles. Isso foi feito para que o Grande Arquiteto do Universo escolhesse um deles para ser o líder de todos, dizendo: “a vara de quem pela manhã estiver florida, esse será o líder e não mais suscitareis discórdias entre vós.”
E sucedeu que a vara que floresceu foi a de Aarão e isso confirmou a sua escolha como Sumo Sacerdote. E a Vara de Aarão, que é a Vara da Confimação, também é uma alegoria que se liga á tradição da espada flamígera da Maçonaria, pois é com ela que se confirmam todos os direitos adquiridos pelos Irmãos dentro das Lojas. Cf. Números, XXI, 6,9.
(4) Êxodo, 6:2 a 20
(5) Noosfera é o termo usado por Teilhard de Chardin para designar a totalidade das reflexões humanas, que aureola a terra como se fosse uma camada da atmosfera.
(6) René Guenon, A Grande Tríade, Ed. Pensamento, S.Paulo, 2005
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/11/2009
Alterado em 17/11/2009