NOITE DE SÁBADO
“ Anda uma estrela pelo céu
sozinha,arrastando um véu
de viúva.
─ é a chuva!
Rola um soluço leve no ar,
bem longo no seu rolar,
bem lento,
─ é o vento!
Guilherme de Almeida
I - NA RUA, DEPOIS DA CHUVA
O que pode acontecer a um coração sem compromissos numa noite de sábado? Tudo. Justamente por que se está aberto a todas as experiências, um coração descompromissado, numa noite de sábado, é um perigo em potencial. Vinicius sabia disso, tanto que, para ele, Deus criou o homem justamente no sábado. Acrescento que esse ato foi realizado bem à tardinha, no crepúsculo do dia, quando a deusa do tempo estava justamente trocando de roupa, despindo a sua túnica de luz para vestir o seu balandrau de trevas.
Sim. Pois não é possível que Deus tenha criado o homem durante o dia. Se assim fosse, ele não seria essa medida entre luz e trevas, esse intervalo entre dia e noite, esse crepúsculo errante que oscila entre luz e sombra. É mais provável que Deus tenha feito apenas o corpo do homem durante o dia, pois enquanto reina a luz o homem é todo ação e reação, empreendimento e resultado, pergunta e resposta. É uma máquina com um programa de executar.
Mas quando o sol se põe o seu espírito desperta. Aquela parte que é mitigada durante o dia assume o comando. É nesses momentos que a aventura humana se justifica.
Estava eu a sentir tais coisas num sábados desses, em que a chuva intermitente, caindo durante todo o dia, não havia dado tréguas. Nariz colado no vidro da janela, eu via a torrente cair e lavar a terra como se alguém, lá no alto, estivesse manipulando um imenso lava a jato.
“ Nada mais triste que um sábado chuvoso
Visto por traz de uma vidraça
Embaçada por suspiros.
Essa chuva fria de pingos finíssimos
São como lágrimas choradas
Por um tempo que parece perdido.
Mais uma semana que se vai
E o meu amor desempregado
É um prisioneiro sem esperança
Que já não espera mais indulto.”
No coração toda a solidão do mundo. Mas no coração de um solitário observador da vida, posto em uma janela qualquer em meio ao nada, justamente pelo vazio que ele encerra, cabem todas as coisas que se quiser por nele. Da minha janela com vidraças embaçadas por suspiros a minha casa, sozinha e abandonada na noite, parecia aquela cidade do Rio de Janeiro que um dia o Drummond descreveu em um dos seus momentos de lobo solitário.
“ Nesta cidade do Rio,
De dois milhões de habitantes,
Estou sozinho no quarto,
Estou sozinho no universo.”
A minha casa vazia, onde todo mundo, menos eu, havia saído porque tinha alguma coisa para cuidar, parecia aquele Castelo de If, solitária e soturna fortaleza-prisão onde a imaginação de Alexandre Dumas colocou o seu herói Edmundo Dantes para sofrer todas as angústias e ódios do mundo (pois não há nada que alimente tanto o ódio quanto a mágoa de ser traído pelos amigos, separado à força da mulher amada e condenado injustamente por algo que não fez). E eu estava ali, sozinho, triste e amargurado, não porque alguém tivesse feito comigo a mesma coisa que fizeram com aquele que depois se tornou o Conde de Monte Cristo e se vingou de todo mundo, mas sim porque eu era um garoto de vinte e poucos anos, sem amigos, sem dinheiro e sem namorada, e pior ainda, sem um lugar para ir numa noite de sábado. Tudo isso me parecia ser uma situação pior do que aquela criada por Dumas para o seu personagem. Então eu pensava.
“ Neste quarto povoado de formas informes
Que falam ao meu ouvido
Mas não se apresentam aos meus olhos
Há uma que tem um discurso específico.
Ela me diz para ganhar o mundo
Ela me manda correr para as ruas.
“Procure alguém que te escute,” diz-me ela,
Ainda que seja somente o vento."
Então eu saia. Saia à noite, depois da chuva e andava pelas ruas molhadas. Andava a esmo, andava a toa, olhando as casas e as janelas envidraçadas, procurando o bafo de um suspiro, ou um clarão de olhos dentro da noite, onde eu pudesse ver uma correspondência dos meus pensamentos e dizer, “ boa-noite amigo, eu também estou sozinho, eu também me sinto encarcerado dentro de um peito que não me deixa ver ver a luz do sol. Por isso é que eu saio só nos dias de chuva. Podemos ser amigos, podemos conversar amenidades, trocar filosofias, falar um pouco dos outros e de nós mesmos? Eis o que digo de mim mesmo.”
" O que não tenho é a ilusão da adolescência.
Passei dos vinte e esperança só não basta.
Reclamo um pouco de certeza e se ela falta
É necessário que eu me engane de outra forma.
Lamento ter nascido ocidental.
Quando eu paro muitos braços me empurram
Não para a frente, mas para os lados,
E de passagem um pontapé de cada um.
Já lamentei não ser chinês.
Tudo vem no tempo certo, dizem.
Mas se paciência é conformismo (isto não dizem),
Esta angústia que eu sinto é desejável.
E se eu morrer sem ver quarenta?
Até é possível que por lá me satisfaça.
Mas enquanto espero idade e sabedoria
Preciso de algo que mate a fome do momento.
Passei dos vinte e sei tanta coisa!
Falo com árvores, flerto com vaga-lumes,
Respondo ao vento na linguagem que ele entende.
Só não alcanço os passos trôpegos de um homem!”
Naquele sábado havia chovido o dia inteiro. Pelos dois lados da rua desciam duas torrentes rápidas arrastando tudo que encontravam pela frente. Latas, garrafas de plástico, lixo de todo tipo, resíduos das nossas ilusões descartadas, que entravam voluptuosamente pelas bocas de lobo rua abaixo.
Foi uma chuva vivificante. Quando parou, as ruas molhadas, limpas, pareciam caminhos jamais pisados. O cheiro da terra molhada despertava em meu corpo estranhas cinestesias.
Nessas ocasiões, as ruas silenciosas e vazias da cidade pareciam páginas em branco nas quais se podia desenhar, escrever ou modelar o objeto que se quisesse, pois que elas estavam ali, brancas, novas, barro bruto esperando pela mão do artista, para dele saírem os sonhos, os desejos, as fantasias, as volúpias todas que um espírito sem amarras e uma mente sem censura podem conceber. Muitas vezes eu mesmo fiz dessas ruas molhadas e solitárias rios caudalosos onde meus barquinhos de papel, carregados com meus sonhos e anseios, navegavam rumo a um mar onde todas as ilhas me pertenciam e todas as minhas fantasias eram possíveis e realizáveis. E então lá ia eu, pelas ruas da cidade, como o Quixote lutando por Dulcinéia ou o Cid batalhando pela Espanha a lutar contra ratos imensos, que às vezes saiam correndo de dentro de um terreno baldio para me desafiar. Eu jogava uma pedra neles e eles fugiam para o mato. Vitorioso, lá ia eu em busca do meu próprio reino, que nunca surgia no horizonte, ora porque a estrela que eu seguia desaparecia atrás das nuvens, ou então porque um paralelepípido aparecia em meu caminho, como um iceberb, chocando-se contra o meu sonho, que então se esvanecia, como um Titanic afundando e desaparecendo na noite fria.
AVENIDA BRASIL
E um salto do sapato se despregava. Eu então praguejava e me via de novo na rua limpa, lavada e erma, vazia de corpos e de vozes, como se depois do cataclismo diluviano eu fosse o único so-brevivente, presenciando um novo começo. E ali estava eu, única testemunha desse novo despertar, como se estivesse recebendo a pomba de Noé na palma da mão ― voe, voe, minha bela, e diga a ele que já pode abrir a arca e soltar toda a fauna que ele segregou dentro dessas arcas frias e soturnas!
Mas eu era parte daquele mundo velho que deveria ter rodado para dentro dos bueiros, porque eu também era lixo da civilização e sobra de homem, e nesta altura também deveria estar no mar para virar alga e coral, peixe e sal....
....E me dei conta que estava descendo a Avenida Brasil. Rua esparsa, pensamento esparso. Incoerente busca de unidade por meio da dispersão. Viajando e voltando instantaneamente, ora com as mãos nos bolsos e os olhos no céu, ora apressado como se não houvesse tanto tempo.
“Amarrado à minha origem,
Roupa comprada à crediário,
Sigo apressado pela rua cinzenta.
―Prenúncio de chuva imediata
Ou presságio de descoberta?
Nenhuma perspectiva de novidade
Me aflora à mente consciente
E eu temo o mergulho fundo
Por medo da lama que ele solta.
Tenho esperança ainda viva
De encontrar um lenitivo
Ou uma forma qualquer de riso.
Não o riso bobo da piada
Riso fácil, dissimulado,
Produzido pela graça desgraçada
De uma vida que só parece engraçada
Porque não tem mesmo qualquer motivo.
Tanto dinheiro que não ganhei
Mas gastei por antecipação.
Lindas fartas e pernetas idéias
Que nunca vão além de si.
Amor pressentido e não sentido.
Tantos anos de problemas colocados
Sem nenhuma percepção de resultado.
E uma vontade de vontades
Tão reais quanto impossíveis
Tratadas como verdades
Que não admitem ser discutidas.
No entanto, pressinto que em algum da noite
Neste dia, depois da chuva,
Existe uma árvore cheia de frutos.
Comidos, me farão entender
A razão de ter escrito estes versos.
Tomara encontre eu um Deus nervoso.
“É neste exílio que eu ponho toda a esperança.”
A chuva parara, já era domingo. Dali a pouco a igreja e a praça estariam cheias de gente sem metafísica, que não gosta de passear sózinha nas noites chuvosas de um sábado sem compromisso. Elas fazem bem. A noite foi feita para compensar as fadigas do dia. É bem mais seguro sonhar na cama.
O frio parecia mais intenso agora. Respirei fundo. Lentamente subi a Rua José Bonifácio. Fui em busca de uma cama quentinha.
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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/04/2010
Alterado em 03/01/2012