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A cena que se posta diante dos nossos olhos destaca, em primeiro plano, três homens pendurados em toscas cruzes feitas de troncos de árvore, de cerca de três metros de altura cada uma, duas delas grosseiramente aparadas e firmemente postadas no solo pedregoso de um morro, cuja geografia tem a grotesca aparência de um crânio humano. Esse detalhe, por si só, já constitui uma visão de tal forma impressionante, que nem precisaríamos invocar a utilização que lhe foi dada – praça de execução de condenados – para que se tenha uma idéia de quão macabro e lúgubre é esse local que os romanos escolheram para executar os condenados à morte. Está situado do lado de fora da muralha ocidental da cidade, cerca de cinco ou seis estádios em direção ao norte, o que, em nossas medidas de hoje, significa uma boa pernada de cerca de setecentos e tantos passos adultos por um caminho pedregoso e íngreme, de sorte que os infelizes sentenciados que para lá são levados para morrer acabam chegando ao alto do monte, tão extenuados que mal sentem as dores da cravação na cruz.
Os soldados que montam guarda na torre de vigia da porta chamada Genath – também conhecida como porta de Jafa –, por onde os condenados saem cambaleando, carregando nos ombros lanhados a barra transversal da cruz, acompanhados geralmente de um séqüito de mofadores e carpideiras, assistem ao macabro espetáculo sem sair dos seus postos. Dessa forma, se preciso for, poderão sem muito esforço prestar ajuda aos seus colegas de ofício em caso de necessidade. Esse talvez seja o motivo pelo qual somente uma pequena força armada está presente no local da execução, o que parece ser indício de pouco caso por parte das autoridades em relação a esse evento, sendo esse um tempo de ebulição política, e por isso mesmo muito propenso a motins populares, o que, considerando-se o histórico de pelo menos um dos executados, não é possibilidade que se despreze.
Á primeira vista, o que ali se cumpre é mera rotina e nada parece indicar que algo extraordinário esteja se passando naquele local onde todos os dias algum celerado recebe a paga final pelo incomodo que causou à sociedade. Além disso, a facilidade de acudir os companheiros em caso de necessidade talvez seja a razão de vermos apenas dois soldados no fundo, montados em seus cavalos, armados com suas longas pilas, essas lanças próprias dos legionários de cavalaria, enquanto no chão, agachados aos pés das cruzes, cinco outros, que devem ser de infantaria, matam o tempo jogando uma espécie de jogo, que parece ser dados, cujo prêmio, ao que tudo indica, será os despojos dos executados.
É de praxe, e neste caso não se faz diferente, que os condenados entreguem seus últimos pertences a quem os executou, como paga pelo árduo trabalho que estes últimos tiveram. Essa não é tarefa fácil e nem recebe o devido reconhecimento, seja do Estado, a quem provavelmente os condenados ofenderam, seja do povo, que se viu livre dos larápios que o roubava e do agita-dor que o procurava desencaminhar com idéias novas e diferentes quereres, o que, por si só, já justifica o fato de eles estarem ali pendurados.
Isso quem disse foram os membros do tribunal que os condenou, já que consta dos assentos lavrados pelo escriba que redigiu as peças de acusação e o veredicto final, que dois deles eram ladrões e o outro um pregador itinerante que andou agitan-do o povo da cidade nos últimos dias. Essa informação é necessária para que não se pense que foi este cronista que a tais juízos chegou por sua própria conta, e logo de início atraia para sua crônica o desprezo de quem tudo julga com a precipitação própria dos preconceituosos. Afinal, a opinião já formada a respeito é de assustar. Quem tem juízo tem medo e é bom que tenhamos esses irmãos siameses sempre em guarda como sensores, para impedir que a mão nos acabe trazendo a perdição que a boca já aprendeu a evitar.
Não poucas cabeças andaram rolando no cadafalso por causa de reportagens desse tipo. Muita carne também já queimou literalmente na fogueira por muito menos do que isso, e mesmo nestes dias em que a liberdade de consciência é protegida por lei, a pira da intolerância ainda conserva brasas muito vivas, razão pela qual nenhuma sabedoria demonstra quem abusa demais da língua ou das letras. Assim, a prudência aconselha que sempre se diga de onde veio a informação que está sendo divulgada, o que faremos, na medida do possível, nesta crônica, pois a conseqüência da quebra de um paradigma é peso que uma alma nunca deve carregar sozinha, especialmente quando se pode dividi-lo com alguém mais.
Dito isso, vamos dar por assentado que quem os fez marginais e agitadores, e por conseqüência, réus de morte, como restou decidido e aplicado, foram os anciãos do Conselho judaico. Isso foi fartamente noticiado por quem tudo presenciou e depois reportou aos escribas que primeiro noticiaram esses fatos. Nós estamos apenas dando crédito a essas informações e passando-as adiante da mesma forma que as recebemos. Nada aqui é novo. Apenas a visão que expomos apresenta diferentes nuances e algumas possibilidades não exploradas nas reportagens anteriormente divulgadas. O que, a esta distância no tempo e no espaço, e depois da sólida moldura que foi posta nos fatos em questão, diga-se, já constitui rematada ousadia.
Voltando ao quadro que temos diante dos olhos, digamos que a arte de quem posicionou as cruzes na crista do monte mostra que o autor é muito experiente na tarefa de executar essas sentenças. Isso se pode perceber sem muita dificuldade, pois uma vez pendurados os condenados, nenhuma delas arriou com seus pesos. E ali ficaram, e ficarão, por todo o tempo que for necessário, ainda que seja a eternidade – como parece que virá a ser –, a suportar os corpos nelas suspensos. O problema imediato, que deve estar a preocupar as autoridades do país, é que amanhã será o sétimo dia da semana, segundo o calendário judeu, e nessa, em especial, está a se comemorar a maior de suas datas festivas, o Pessach. Essa é a razão pela qual nenhum condenado poderá passar da hora véspera na cruz, pois se assim ocorrer, o Sabbat sagrado será contaminado; e de certo, Jeová, que o insti-tuiu para que todos os filhos de Israel possam descansar dos seus labores, como Ele mesmo descansou depois de ter criado o mundo, não gostará nem um pouco dessa desobediência a um dos seus mais caros preceitos. Assim, bom é que morram logo, para que seus infames corpos sejam imediatamente arriados do madeiro e jogados nas valas comuns que os esperam.
Salvo o condenado que foi crucificado no meio dos outros dois, pois deste, segundo se diz à boca pequena, um importante figurão do Conselho judaico já requisitou o corpo e fez para ele uma bonita sepultura num jardim ali por perto. Por que mereceu tal prerrogativa, conferida apenas a pessoas de relativa importância, não é tempo de revelar, mas cuida-se que foi o próprio Pôncio Pilatos, o prefeito nomeado por Roma para governar a Judéia, a Iduméia e a Samaria, que autorizou a remoção do corpo desse condenado, assim que rendesse o espírito. E o tal figurão, que não se vê em primeiro plano no quadro, por certo deve ter se postado em algum lugar afastado, para evitar ser visto – como aconselha a prudência –, e ali se conserva, esperando pelo desenlace que não tarda a acontecer. Consumado esse, virá ele com alguns serviçais para descer o corpo da cruz e prepará-lo com os óleos da unção, para depois sepultá-lo conforme manda o costume da terra.
Temos informação, embora não confirmada, que essa providência custou ao referido personagem a sua expulsão dos quadros da seita a qual pertencia, a renomada confraria dos fariseus, pois foi justamente essa Irmandade a responsável pela prisão e condenação desse homem; e como sempre acontece nesses casos, saiu ele pelo mundo a fundar uma nova Ordem, com base na doutrina inaugurada por esse condenado, de quem ele era discípulo e parente muito próximo. Suas atividades como missionário e propagador das idéias pregadas pelo condenado são ainda hoje muito lembradas em terras gaulesas e britânicas, onde, dizem, ele concentrou seu magistério depois da morte do seu líder.
Essa, porém, é outra história, da qual falaremos em momento oportuno. Por ora, apenas para que não nos seja imputada a leviandade de estar a prometer pães sem ao menos mostrar que já temos a farinha, diremos que esse personagem não arriscaria nome e posição fazendo o que fez, não tivesse ele, de fato, relações de superior interesse com esse condenado. Que o tenha feito por piedade ou respeito, como se deixou entrever nas crônicas oficiais, é coisa difícil de acreditar, pois tais providências custam muito caro nessa terra e mesmo sendo ele homem de fartos cabedais, de certo a elas não se aventuraria não fossem relevantes motivos a movê-lo.
Voltando ao assunto que aqui se cuida, veremos que nas barras verticais das cruzes foram encaixadas, em mal cortadas cavilhas, as traves horizontais. Isso indica terem sido as mesmas feitas às pressas, a golpes de machado ou formão, e não se sabe por que cargas d’água, somente a que está no meio das outras duas parece ter sido cuidadosamente lavrada e aplainada por quem dessa ocupação – lidar com madeiras – tem alguma arte. A coincidência merece o devido registro, porquanto o condenado que dela pende é um carpinteiro que chegou da Galiléia recentemente e acabou sendo preso e condenado à morte pelas autoridades, acusado de atividades subversivas, asseveram uns, ou blasfêmia e ofensa capital contra as leis religiosas do país, dizem outros; o que, de qualquer modo, se considerarmos o con-texto no qual as coisas aconteceram, é tudo a mesma coisa.
Seja como for, é bem provável que ambas as assertivas estejam corretas, pois é justamente no alto desta cruz, por cima da cabeça do condenado, que se vê uma tabuleta com uma inscrição, declinando o nome do infeliz e o crime pelo qual ele foi posto nela para morrer. Mandou-a fazer e pregar ali o chefe de prefeitura romano, não tanto para identificá-lo e denunciar o seu crime, mas muito mais para acicatar os anciãos do Conselho judaico, que o pressionaram e acabaram por obrigá-lo a fazer o que não queria, ou seja, condenar esse homem à morte.
Isso é certo, porquanto todos os que escreveram sobre o assunto foram unânimes em informar que ele não encontrou no condenado crime algum que merecesse tal sorte. E passou pela sua cabeça libertá-lo, depois de severo castigo, que seria aplicado somente para contentar os anciãos. E isso foi o que ele fez, esperando que á vista do corpo mutilado, sangrando por todos os poros, a fúria dos anciãos se aplacasse. Mas estes, feitos chacais sedentos de sangue, fizeram tamanho escândalo e proferiram contra ele tantas ameaças, inclusive de denunciá-lo ao Imperador, acusando-o de reconhecer outros reis além dele, que o cuidadoso funcionário, no fim, bastante contrariado, mas nem um pouco convencido, assentiu que o homem fosse crucificado.
Mas não antes de lavar as mãos e dizer aos exaltados cidadãos que exigiam a sua morte que ele estava inocente do sangue daquele justo. Isso ele fez e também foi registrado. Certo que tal ato não irá livrá-lo do ódio e do vitupério que contra ele serão assacados pelas próximas gerações de seguidores desse condenado, nem o livrará dos inevitáveis horrores que por ele esperam no mundo do além túmulo. Isso é o que dizem aqueles que acreditam que tudo que fazemos de injusto neste mundo, ainda que compelidos por força maior, como no caso em questão, nos será cobrado nessa outra etapa da vida, que foi criada justamente para purgarmos os erros que cometemos nesta. Há quem diga também que essa idéia nada mais é do que uma curiosa forma de vingança que foi urdida por quem não tinha força nos braços nem poder político para cobrar de outra maneira o agravo feito a sua fé, no caso, os perseguidos seguidores desse condenado, que por mais de trezentos anos tiveram que professar seu credo na clandestinidade. Todavia, ainda que a crítica possa ser procedente, o fato é que há mesmo quem já tenha vis-to, com todas as tintas da sua imaginação, o constrangido praefectus romano pagando a sua pena no inferno, com centenas de diabos a atormentá-lo, na mesma medida em que ele consentiu que seus soldados fizessem com esse condenado. E para dar foros de testemunho á sua visão, o poeta que a teve transformou-a num magnífico e inspirador poema, que é hoje um dos maiores clássicos da nossa literatura.
Mas quanto ao polêmico procurador romano, justo é reconhecer-lhe essa circunstância; não foi ele quem proferiu contra o dito condenado a sentença de morte. Ele apenas a homologou, já que outra coisa não lhe seria politicamente correto fazer. Política à parte, as iniciais que o lupino prefeito mandou gravar na tabuleta que encima a cabeça do condenado dão conta que ali está cravado um homem que se disse rei dos judeus e pertencia à seita dos nazarenos. Em aramaico, latim e grego, para que a coisa ficasse bem assentada, a inscrição não deixa dúvida sobre a querela que o levou à cruz. Conta-se que ele se deu por rei e santo, o que, por si só, já é uma clara indicação dos motivos de sua condenação. Afinal é sabido que reis, no império que os romanos construíram, quando não morrem na defesa de seus títulos, terminam suas vidas na humilhação do exílio ou no horror do cadafalso. E quanto aos santos, somente ao Deus do país, por sua livre escolha, cabe consagrar.
Na terra dos judeus, política e religião tanto podem elevar um homem aos píncaros da glória quanto fazê-lo baixar aos mais íntimos círculos do inferno. Isso nos faz pensar que bastante fundamento tem a informação que levou a digna autoridade a escrever a dita tabuleta, por que, se rei for o condenado, morre ele por força de injunções políticas; se apenas santo é, morre por conta de questões religiosas, porquanto se sabe que os oráculos da vontade divina são pessoas que já nascem revestidas de especial comenda e são consagradas desde o ventre materno ao ser-viço do Deus do país. E este condenado, em especial, segundo dizem, arrogou-se no direito de reivindicar filiação direta com a Majestade Divina, o que fazia dele o seu herdeiro universal, em contraste e contradição com as reivindicações do Sumo Sacerdote.
Isso é coisa que os anciãos do Conselho judaico não podiam mesmo tolerar. Sabemos quão ciosos de suas prerrogativas são os senhores que vestem os paramentos sacerdotais e não queremos tirar-lhes as razões, principalmente neste caso, em que a própria lei do país já dispôs, com meridiana clareza, que somente o Sumo Sacerdote pode manter relação direta com o Deus local, não podendo essa comenda ser objeto de delegação em hipótese nenhuma. Esse é um direito milenar, que se observa desde os dias de Moisés, e ainda que os tempos sejam outros, continua sendo regra de estrita observância que deve ser mantida a qualquer custo. Afinal, há em todo ordenamento legal, ou religioso, cláusulas pétreas que não podem ser removidas, sob pena de cancelamento do próprio ordenamento; e no caso dos judeus a hierarquia sacerdotal é a coluna mestra sob a qual se apóia todo o seu edifício religioso e político.
Nada há de estranho nisso, porquanto essa é uma virtude que se observa em toda religião e reflete em qualquer legislação que se apóia nos preceitos legados por um Deus, ao invés das regras deduzidas em razão do convívio social. E nesse caso, como em qualquer outro que envolva questões de autoridade, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Afinal, ainda que seja difícil saber qual é a vontade dos deuses, já que, ordinariamente eles não vêm a terra para nos dizer o que têm em mente, não há mal nenhum em pensar que a vontade divina tudo justifica, pois mesmo nas democracias, onde, por suposto, o desejo do povo justifica a lei, é comum dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Isso mostra que, em qualquer caso, não basta a simples lógica do bem estar social para dar suporte ao ordenamento jurídico. Sempre há uma vontade divina na base dos mandos e des-mandos que se cometem na vida pública e tudo fica mais justificável quando se pode dizer que é Deus quem quer que assim seja.
Destarte, nenhuma crítica se pode fazer aos bons senhores que ostentam essa investidura, seja ela concedida por unilateral escolha de quem tem autoridade para fazê-la, no caso, o próprio Deus, ou por mérito de conquista, o que às vezes acontece; ou ainda por usurpação – que geralmente é o caso –, mas não é isso que importa discutir aqui, já que este não é o objetivo da nossa crônica. De qualquer forma, fica aqui o registro, para que não se pense que são apenas os sacerdotes judeus que se arrogam nesse direito e de repente se passe a tê-los em mau conceito. Bastante difamados já foram depois que os fatos que aqui se cuida aconteceram. Não precisam agora que se lhes lancem mais culpas sobre os ombros, embora neste caso eles mesmos tenham assumido plena responsabilidade pela condenação desse homem ao afirmar ao prefeito romano que seria de somenos importância que a responsabilidade pela sua morte lhes fosse imputada. Essa é notícia confirmada por todos quantos já escreveram sobre esses fatos e o registro que aqui se faz só corrobora tais informações: “ caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos”, disseram eles, e nenhum vaticínio foi tão acertado quanto esse, pois até hoje ele está sendo cumprido.
As outras duas cruzes ( de onde pendem dois corpos que importância nenhuma parece ter no quadro, já que nenhuma inscrição dá conta de quem sejam, nem que crimes cometeram) são toscos troncos de árvores, aos quais foram encaixadas, de forma bem descuidada, as barras horizontais. E estas, parecem que ali foram postas somente para acomodar os braços dos condenados, um dos quais, o que está à direita, não se sabe por que forças ou direitos de moribundo, abraça a trave horizontal da cruz como estivesse se acomodando em um travesseiro e ali se quedasse no melhor dos sonos. Imagem que lhe cai bem, diga-se, já que o sono que experimenta, o da morte, é o que existe de mais completo entre os descansos que a tarefa de viver nos proporciona. O outro, à esquerda, aparenta estar contemplado da mesma sorte, porquanto sua postura é de quem também está dormindo sobre a trave vertical, com a cabeça descansando sobre o ombro direito e o braço esquerdo esticado sobre a trave horizontal; posição que indica que este também se despediu das humanas lidas sem mais resistências do que reclamar, quem sabe, da sorte madrasta que o levou a terminar a vida daquela forma tão degradante. Mais tarde alguém viria a recensear-lhes os nomes e Dimas, ou Dumachus, disseram que se chamava o condenado crucificado à direita e Titus o da esquerda. Isso não nos custa acreditar, ainda que esses nomes não tenham sido re-gistrados em nenhuma ata de tribunal, nem tenham sido marcados nas cruzes, como foi feito com o condenado pregado na cruz do meio, sobre suas cabeças, os seus nomes e os crimes pelos quais eles foram supliciados. Registre-se ainda o fato de ostenta-rem nomes latinos dois condenados que são, obviamente, judeus, mas neste, como em todo o caso, existem contradições incontornáveis que não devem ser demasiadamente expostas para não comprometer o objetivo da informação. Se não o fez quem primeiro a registrou, não o faremos também nós, que estamos apenas repassando-a.
Descontando essas incongruências (que não são da lavra deste cronista, mas de quem, muito antes dele fez uso por demais licencioso da imaginação, ou então possuía informações que ninguém mais compartilhava), demos por certo que são eles, o bom e o mau ladrão, que ali estão suspensos. Essas também são informações que foram recuperadas muito tempo depois que esses fatos ocorreram, pois naquele momento ninguém se deu ao trabalho de indagar nomes e profissão dos tais condenados, providência essa que certamente foi considerada de nenhum interesse para a História e que também pouco colaboraria para enriquecer a jurisprudência forense. Assim, mesmo que se quisesse hoje encetar uma pesquisa a esse respeito ela estaria fadada ao fracasso por falta de registros confiáveis. Agora, pessoas de má conduta devem realmente ser, porque passados tantos séculos desde que esses fatos ocorreram ninguém, até hoje, se dignou a tentar lavar-lhes a honra, como já aconteceu com tantos injustiçados da justiça, que às vezes têm a sorte de encontrar um tardio advogado, com habilidades de historiador, para redimir-lhes a memória. Fica-se, portanto, com a informação de que morrem como ladrões esses dois condenados; e cuida-se que suas sentenças não tenham sido contestadas de nenhuma forma, como aconteceu com o condenado da cruz do meio que, segundo se conta, teve alguns defensores no tribunal que o condenou, embora a maioria dos repórteres que andaram escrevendo sobre o fato tenha silenciado sobre esse detalhe. Mas sendo esse julgamento processado perante um magistrado latino, forçoso é que algum advogado dativo, ainda que somente para dar foros de legalidade à sentença ali proferida, tivesse sido nomeado para defendê-lo.
Agora, sabemos que sentenças dessa ordem, quando são proferidas, não contra quem pratica crimes comuns, mas contra quem comete delitos de opinião, são sempre contraditórias. Ainda que na morte se venham a equiparar uns e outros, cuidam os vivos de fazer distinções entre eles; e se acontece de ocorrer viradas, dessas que fazem com que os executores se tornem candidatos à execução, aquele que morreu como criminoso pode muito bem passar a ser visto como herói. Tais são as vicissitudes dessa arte chamada Política. Quem a cultiva deve cercar-se dos devidos cuidados e ficar preparado para essas inversões de papéis.
Como se chegou à constatação de que eram ladrões os condenados da direita e esquerda, também é informação já perdida. O fato é que é dessa notícia ficou a crença de que o indivíduo da esquerda era tão mau, que nem com o bafo da morte a esquentar-lhe a nuca se arrependeu da vida torta que levou; e o da direita, pelo menos nessa hora extrema, conta-se que demonstrou ser capaz de algum remorso. Tanto que se arrependeu dos crimes que praticou e reconheceu a qualificação atribuída ao condenado do meio. Não sabemos se a que lhe imputaram os romanos, de rei dos judeus, ou a de que o acusaram os anciãos do Conselho, de reivindicar a condição de filho legítimo e direto do Deus do país. Mas o fato é que isso lhe valeu um bilhete de entrada no paraíso para aquela mesma tarde, logo depois que entregasse o turvo espírito. Isso também é verdade, porque não foram poucos os que ouviram a promessa que o carpinteiro lhe fez, de que o citado ladrão, nessa mesma tarde, estaria com ele nesse balneário de delícias que foi criado especialmente para premiar com uma eterna vida de prazeres as almas que fazem bem o seu trabalho na terra, e também aquelas que a tempo se arrependem de seus pecados, como no caso desse bom ladrão. Descontada a possível injustiça que poderia estar embutida nesse último critério de julgamento – já que ele equipara os sempre virtuosos com aqueles que chegam á ultima hora à senda da virtude –, demos por certo que tal diálogo tenha realmente se passado, ainda que seja difícil acreditar que alguém, no estertor da agonia, pudesse ainda estar a cuidar de tais sutilezas.
Com exceção das palmas das mãos e dos dorsos dos pés, por onde lhes foram enfiados rombudos cravos para prendê-los no madeiro, em outras partes do corpo não sangram esses dois e nem aparentam ter sofrido a tradicional mutilação que se aplica aos condenados dessa sorte, que é o flagelo com vara ou flagus, esse chicote feito de tiras de couro com bolinhas de aço nas pontas, que tanto estrago causa nas carnes dos desgraçados submetidos a esse suplício. Essa é razão pela qual os dois infelizes, parece, irão demorar muito para morrer. Daí por que, entediado com o mofino trabalho, que é diário e já não lhe causa a menor excitação, o centurião que comandava a operação mandou que lhes fossem esmigalhadas as pernas com um martelo para que a morte sobreviesse com mais rapidez. Geralmente é o que acontece quando o peso do corpo desaba sobre as pernas quebradas do condenado. Sem poder sustentar a moribunda carcaça, o po-bre diabo fica impedido de respirar e a morte vai consumindo a vida dele com a presteza que uma hiena faminta devora a sua presa. Por isso lá estão os dois corpos, arriados como tendas das quais se cortaram as cordas, e a postura que apresentam nesse momento extremo não é coisa bonita de se ver.
Já ao condenado do meio não foi preciso aplicar tal expediente, o que faz supor que rendeu seu espírito mais cedo do que se esperava. Assim, escapou ele de mais essa mutilação, que numa primeira análise pode até parecer cruel, mas do ponto de vista de quem a aplica não deixa de ser um ato de piedade, praticado no cumprimento de um dever legal. É que essa medida, além de abreviar o sofrimento do condenado, também atende aos sábios preceitos prescritos pela lei da terra, que proíbem que uma carcaça fique exposta de um dia para o outro, principalmente numa época, que segundo já se disse, é de festa.
Aliás, não são poucos os que defendem a utilidade dessa medida, que além de atender a humanos reclamos de dignidade, evitando a exposição prolongada da miséria humana, ainda serve a profiláticos cuidados sanitários. Isso, para os judeus, mais do que para qualquer outro povo, é assunto de especial relevância, porquanto nessas questões de profilaxia e vigilância sanitária são eles os pioneiros entre os povos da terra. De muito longe no tempo já as praticam, e não é a toa que fazem parte do seu ordenamento legal medidas dessa ordem e outras, que se referem de forma especial aos defuntos, proibindo de forma taxativa que eles permaneçam entre os vivos mais que o tempo necessário para as devidas exéquias. Assim, a sociedade dos judeus, que já tem suas salvaguardas contra os leprosos, os sarnentos, os portadores de doenças sexuais e outras imundícies detestáveis, também se previne contra o espírito que já não tem uma carne para hospedá-lo, pois que, depois de liberto do corpo, sabe-se lá o que se torna essa etérea parte da nossa substância.
Mas deixemos de lado os dois ladrões, porquanto é o homem que foi pregado na cruz do centro que deve merecer a nossa atenção. Se não fosse pelo detalhe do madeiro em que ele está cravado, de lavra profissional, como já foi dito, como a distingui-lo dos outros dois que estão pendurados à sua direita e esquerda, é de considerar que a sua postura se apresenta diversa-mente oposta à deles. Não se mostra retorcido e abandonado como os dois que pendem ao seu lado, mas conserva o esqueleto ereto e firme, como se o seu corpo, mesmo depois de morto, não tivesse perdido o viço que nos faz parecer, de acordo com a visão de um renomado filósofo, um caniço pensante.
Claro que esse detalhe pode ser explicado pelo fato de não lhe terem quebrado as pernas, como foi feito com os outros, mas por razões outras, menos anatômicas e mais transcendentes, queremos acreditar que essa postura esteja sendo mantida. Somente a sua cabeça pende para a frente, caída sobre o ombro direito, enquanto os braços, esticados em forma de Vê, parecem querer se amoldar à cruz em que foi posto para morrer. Praticamente desnudo, como os seus companheiros de infortúnio, apenas uma sumária tanga lhe cobre as vergonhas, detalhe que a-creditamos nós, deve ser acrescentado para atender a humanos reclamos de pudor, pois de sobejo se sabe que os condenados dessa sorte sobem ao madeiro para sair da vida da mesma forma que nela entraram, ou seja, completamente nus.
Diferentemente dos dois outros, entretanto, este mostra marcas de muitas mutilações, o que se percebe claramente nas costas lanhadas a azorrague e no nariz quebrado a punhadas, além das inúmeras equimoses que se observa no rosto e no resto do corpo, a mostrar que foi castigado de todas as formas que a crueldade humana foi capaz de inventar até aquele momento. O pobre homem é uma ferida só, uma massa quase informe de carne sangrenta, e ainda por cima tem um dos flancos perfurado por lança. Essa incisão provavelmente lhe foi feita em razão da decepção do legionário incumbido de quebrar-lhes as pernas, o qual se viu privado desse prazer ao ver que o condenado já estava praticamente morto e daí sapecou-lhe mais essa mutilação por conta da outra que a morte lhe havia roubado. Nada há de estranho nisso porquanto se sabe que os romanos não dão ponto sem nó e odeiam perder viagem. Se já encontram a ovelha tosquiada quando a capturam, cuidam eles de fazer com ela um bom assado para não sair sem lucro. Essa praticidade é que fez deles os senhores do mundo e eles sabem que no dia em que a perderem, o seu império começará a ruir.
Na cabeça pendida do condenado pouca coisa se pode ver do que já foi um humano rosto, já que este, além do nariz quebrado, ainda mostra lábios e olhos de tal forma intumescidos, por conta das tantas pancadas que levou e talvez também em conseqüência das inúmeras quedas que sofreu no trajeto entre o tribunal e o alto desse monte. Nela se pode ver que foi posta uma espécie de tiara, feita de cipó espinhoso, tecida a guisa de coroa. Veio-lhe ela de certo por conta da mofa dos soldados romanos, que estes, cujos espíritos ainda estão na pré-civilidade, não perdem oportunidade para uma boa chacota, especialmente quando se trata de espicaçar um yaudi. Destarte, foi somente para zombar dos judeus, a quem conferem tanto desprezo, de tal forma que só se poderia admitir mesmo um rei como aquele, que os soldados puseram-lhe sobre as costas um manto escarlate e aquela coroa de espinhos e depois saíram com ele em picaresco cortejo pelas ruas da cidade, a zombar, a cuspir e a bater no mofino candidato a soberano. A improvisada coroa feriu-lhe a testa e o couro cabeludo de tal forma, que a cabeça assim coroada parece um lagar fendido em vários pontos, por onde filetes de um rubro vinho vertem. O sangue, escorrido e coagulado pelas faces, como borrões de tinta jogados a esmo sobre as negras barbas do condenado, confere à caput mortuum do infeliz uma visão aterradora e fascinante ao mesmo tempo, de tal modo que as pessoas que assistem à execução não conseguem dela afastar os olhares, horrorizados alguns, hipnotizados outros.
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DO LIVRO O FILHO DO HOMEM- SCORTECCI, EDITORA, SÃO PAULO, 201O
CANDITATO AO PRÊMIO JABUTI
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 23/05/2010
Alterado em 24/05/2010