João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A JOVEM MARIA

Livro: O Filho do Homem
Editora: Sacortecci, Sao Paulo, 2009
Categoria: Roamance histórico.
Resenha capítulo IV.
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Já que falamos em vida, a que a menina Maria leva ali transcorre modorrenta e sempre igual. De dia os afazeres domésticos, de noite o sono reparador das fadigas que eles produzem. Nada de diferente acontece, ou pelo menos nada aconteceu até agora, durante a curta existência da mocinha.
Esta, além das naturais mudanças que a natureza provoca no corpo da criança que passa à adolescência e da adolescente que chega ao termo de mulher – que nelas, mais que nos homens, essas transformações são mais notáveis e significativas –, quase nada sabe do mundo em que vive e do corpo em que sua alma habita. Quanto ao mundo que existe além da sua cabana, diga-se, pouco dele viu, pois só de vez em quando vai à aldeia comprar os víveres de que tem necessidade para a manutenção da vida simples e sossegada que levam; em relação ao corpo, pouca coisa teve tempo de aprender com sua mãe, que morreu antes que os primeiros sinais de maturidade se fizessem presentes em seu corpo de mulher.
De sorte que quem pouco sabe, com muito menos tem que se preocupar. Só uma coisa incomoda a garota: ela sonha e sonha muito. Dormindo, no sono da noite, ou mesmo acordada, na modorra da tarde, quando a faina diária pode ser interrompida para um pequeno descanso, sua mente é visitada por belos e fogosos príncipes e anjos de belas feições, e à vezes, velhos profetas barbudos, irascíveis e nervosos, que falam com vozes tonitruantes e iradas. E amiúde também sonha com grutas escuras e soldados carrancudos, que a perseguem com suas armas como se a quisessem encarcerar ou matar. Freqüentemente – o que a deixa muito assustada –, ela sonha também com demônios. Não esses feiosos monstrengos com rabos, chifres, olhos vermelhos e dentes pontiagudos, que a imaginação de bons e piedosos padres inventa para assustar aqueles que não rezam pelos seus catecismos. Os demônios de Maria, na verdade, são moços de belíssimas estampas, de rostos diáfanos e louros cabelos encaracolados, que ela só sabe serem danados pela cinestesia ruim que provocam nela, na forma de um arrepio que sobe pela coluna cervical até o alto do couro cabeludo, fazendo os pelos do seu corpo ficarem todos eriçados, seguido por uma forte contração no peito. Dessas aventuras noturnas ela acorda toda molhada de suor e com o coração pulando no peito, como querendo achar um caminho para sair pela boca.
Num desses sonhos ela se vê encerrada em uma gruta escura. Demônios rolam sobre a entrada uma pesada pedra redonda, dessas que se usam na terra dos judeus para tapar a porta dos túmulos. Ouve-os dizer que ela é um tesouro que precisa ser guardado a sete chaves para que não caia em mãos perigosas.
Dizem também, e isso ela igualmente escuta, não sabe se com os ouvidos ou com o coração – que este, mais do que uma bomba que distribui e controla o fluxo sanguíneo, é um órgão que tem ouvidos e razões que a própria razão desconhece –, que somente um jovem que venha à meia-noite, num certo dia do ano, que ela não sabe precisar qual, e pronunciar na língua dos romanos a frase “ et homo factus est”, expressão que ela não consegue falar, mas em seu espírito sabe que significa “ e se fez homem”, poderá libertá-la.
De tempos em tempos, que para Maria parece ser de cem em cem anos, um desses danados, bem musculoso, rola a pedra da entrada, deixando aberta a porta da gruta. Depois fica á espreita de um ousado qualquer que tenha coragem de entrar na caverna para tentar salvá-la. Ela vê a luz do sol que começa a invadir o aposento e junto com ela chega alguém; o jovem ( sim, por que é um jovem e não poderia ser diferente, já que se trata de um sonho romântico este), entra na gruta, espreita, tateia, perscruta; mas antes que o aposento fique todo iluminado e ela possa ver o rosto do seu herói; antes que ele a tome nos braços e saia com ela para a luz do dia, o sarcástico cafuçu que montou a armadilha rola novamente a pedra sobre a entrada. Imediatamente, uma impenetrável escuridão desmancha o retângulo luminoso que o sol recortara no chão da caverna e o ousado e imprudente moço que entrou para salvá-la agora está preso como um passarinho numa arapuca. Pelos gritos desesperados do rapaz e pelos rugidos apavorantes dos ferozes malignos que estão escondidos nas sombras da caverna, ela sabe que o seu infeliz herói está sendo trucidado.
Há vezes em que ela fica de vigília esperando o momento do cafute abrir a entrada da gruta. Então ela tenta fugir. Lá vai ela correndo, com uma legião deles nos seus calcanhares, deixando nas rochas as pegadas feitas pelos seus pés nus. Eles ficam gravados nelas juntamente com as marcas das garras deles, que de ordinário eles as têm nos pés e nas mãos, semelhantes às das águias que habitam as montanhas que se podem ver ao longe, malgrado o fato de seus rostos serem belos e diáfanos como o disco lunar nas noites de plenilúnio.
Sonho ou realidade, fantasias ou visões de um mundo arquetípico que existe no inconsciente coletivo do povo de Israel – e do resto da humanidade –, muito tempo depois que ela já tiver deixado este lado da existência, haverá quem jure ter visto as pegadas dela e dos anhangás que a perseguiam estampadas em rochas, em diversos lugares do mundo. Principalmente na França, onde por razões que agora não vem ao caso, parecem gostar mais da Madalena do que dela, Maria Mãe, essas pegadas foram vistas em Méneac, no departamento de Morbihan, na Creuse, no Finistére, nos distritos de Pontaleir e Forez, somente para citar alguns lugares onde a imaginação do bom povo gaulês a viu passar, fugindo da horda danada que a perseguia.
Nesse mesmo sonho ela chega ao alto de uma colina, e alçando-se ao ar, flutua como uma pluma levada pelo vento. A diabada toda se atira atrás dela, mas não consegue alcançá-la porque ela vai ganhando cada vez mais altura; e a cada metro que sobe, sente no coração a liberdade que chega. Mas, de repente, eis que começa a ficar pesada e a cair; e lá embaixo está a turma de tinhosos a esperá-la, excitada e feroz, a gritar e a rosnar, como uma matilha de feras famintas e atiçadas, prontas para devorá-la. Ela jamais soube se caiu e se os arrenegados a pegaram alguma vez, pois sempre acorda antes do fato se consumar, empapada de suor, o peito arfando como um fole de ferreiro e o coração batendo como um tambor de marcar compasso para remadores nas galés. O sonho se repete continuadamente e ela sempre acorda no momento em que a capetada está arranhando os seus calcanhares.

Mentalidades refratárias a qualquer recurso ao misticismo para explicar a estranha lógica que preside os trabalhos do nosso inconsciente, poderiam dizer que esses sonhos repetidos e constantes que Maria tem são produtos que a sua mente juvenil extrai do ambiente em que vive, povoado de animais, pastores, grutas, histórias de reis e princesas, lutas e narrativas de aparições de anjos e visões de profetas. Todas essas coisas estão nos livros que falam das coisas maravilhosas que Jeová faz para espanto do povo que Ele escolheu para o seu favor e não se precisaria ir muito longe para entender por que eles freqüentam os sonhos de uma de suas filhas de forma tão assídua. Isso também é o que se ouve nas sinagogas e nas conversas dos anciãos junto às fogueiras que se acendem à noite, quando se reúnem os pastores, nas praças dos mercados e nas rodinhas que se formam em volta de um velho contador de histórias, o que justifica estar a mente dos judeus tão impregnada desses motivos.
Ela gosta das histórias que se contam sobre os primeiros líderes do seu povo, aqueles que se chamavam juízes. Especialmente daquele Jefté, pastor que era filho de um líder tribal chamado Galaad com uma meretriz. O que ela achava triste na história de Jefté era o voto que ele fez, de entregar em holocausto a Jeová a primeira pessoa que saísse ao seu encontro quando ele voltasse para casa, depois de derrotar os inimigos de Israel. Pois essa pessoa foi a sua única filha, uma menina virgem, como ela, que ainda não conhecera varão, e que Jefté teve que sacrificar em cumprimento do voto imprudente que fizera. Daí aquele costume milenar que as virgens de Israel cumpriam todo ano, de se ajuntarem em grupos e saírem pelos campos, a chorar pela filha de Jefté. Maria tem participado desse ritual pelo menos uns cinco anos já, desde que o Conselho dos Anciãos a considerara com idade suficiente para tal. Para ela, essa tradição sempre foi uma coisa diferente, uma quebra na monotonia daquela vida modorrenta que levava. Por isso ela esperava com ansiedade o evento anual, época em que podia se reunir com as jovens da aldeia, e no intervalo dos rituais trocarem as confidências próprias das meninas dessa idade, sem o olhar reprovador dos mais velhos.
Nessas ocasiões, as garotas se reúnem na praça da aldeia e saem juntas, em cortejo, assistidas a uma distância prudente pelos pais e pelos anciãos do povoado. Ficam acampadas em um local adrede preparado, no campo, por quatro dias. Ali choram e carpem, à maneira dos judeus, espargindo cinzas sobre as cabeças, lamentando a triste sorte da filha de Jefté. Só uma coisa, nessa história, Maria não entende muito bem: porque a menina pedira ao pai que a deixasse chorar pelos anos da sua virgindade durante dois meses, antes de ser sacrificada? Será que a garota sentia mais o fato de morrer virgem do que ter que entregar a própria vida por causa do insensato juramento feito pelo pai? Era bem possível que sim, pois ela sabia, como Maria também sabe, que na cultura do seu povo importava mais gerar uma descendência do que morrer virgem. Por isso, tão logo sentiu, pela primeira vez, a umidade quente e pegajosa do sangue que lhe descia pelas coxas, manchando os panos que lhe cobria as vergonhas, a filha de Joaquim soube imediatamente que se tornara mulher. E dali para frente, o que se esperava dela era exatamente o que se espera de toda mulher sadia na terra dos judeus: a maternidade.
No mais, Maria é como todas as mocinhas da região, que mal saídas da puberdade já começaram a despertar interesse nos rapazes que andam por esses ermos onde ela mora. Poucos, aliás, pois onde ela vive, nas cercanias da aldeia de Belém, não é de passar muita gente. Joaquim, como qualquer pai de família nesse país, sabe do perigo que é ficar mantendo donzela sozinha em casa, razão pela qual foi buscar marido para Débora, sua irmã mais velha, em Emaús, aldeia montanhosa que fica na estrada que liga Jerusalém ao porto de Jafa, junto a uma família aparentada com Ana, sua falecida esposa. Quanto a Maria, alguns pedidos já foram feitos a Joaquim, que de ordinário os havia recusado até agora, pois não é bom costume casar a filha mais nova, enquanto à mais velha não for dado marido. Mas agora que Débora está devidamente encaminhada, ele pensa em fazer o mesmo com a filha caçula, pois não é certo que uma mulher permaneça solteira depois que a natureza lhe deu maturidade ao ventre e uberdade aos seios.
Depois, não é bom que uma mulher fique sem um homem para protegê-la. E a ele logo lhe faltarão forças para isso, pois a idade já lhe pesa nos ombros e se anuncia nos braços e nos lombos doloridos que lhe sobram no final da tarde. Se pudesse, faria como aquele astuto Labão, um de seus antepassados, que deu suas duas filhas ao mesmo noivo, poupando trabalho e despesas com festividades, ao mesmo tempo em que ganhava um sacudido genro para trabalhar para ele durante quatorze longos anos. Certo é que Jacó, o genro que Labão ganhou pelo escambo que fez com suas filhas, Lia primeiro, Raquel depois, levou não só as duas mulheres, mas também uma boa parte do rebanho de Labão. É bem possível que essa manobra, que fez a fortuna do solerte neto de Abraão, de quebra também deu origem à lendária esperteza que se atribui aos judeus em casos de dinheiro. Pois que esse Jacó, de uma tacada só, adquiriu matrizes para a geração da prolífica família que resultou no povo que recebeu esse nome e para a criação do enorme rebanho que lhe deu fortuna. Dele é que nasceu essa nação que Jeová escolheu, entre as milhares que se formaram na face da terra, para celebrar esse pacto que ela tão ciosamente vem guardando através dos séculos.
Se Israel ainda fosse uma tribo de pastores nômades, ao invés de uma grande nação que já não se conta mais pelo número dos clãs que dividem a terra, Joaquim de certo toparia arranjo semelhante. Com ele proveria, ao mesmo tempo, um amparo para as filhas e um ajudante para o duro trabalho de pastorear seus animais por esses íngremes terrenos. Pena é que ao comum dos mortais, neste país de rígidos costumes e estranhas crenças, já não seja permitido a um homem casar com mais de uma mulher de cada vez, como foi costume em outros tempos e como fazem ainda os primos árabes. E também esses estrangeiros, que desde os tempos de Alexandre, o Grande, tomaram conta do país. Os judeus os vêem como criaturas ímpias e debochadas, que desdenham dos bons e sagrados preceitos ditados por Jeová, especialmente aquele que manda que um homem tenha uma esposa só, da mesma forma que só se pode adorar a um único Deus e ter uma única palavra.
É que, para os filhos de Israel, monoteísmo e monogamia são valores inseparáveis. E a união conjugal está sujeita às mesmas obrigações que a relação do homem com a Divindade deve observar. Uma única mulher para toda a vida, um único Deus para toda a eternidade, eis os bons ordenamentos que a gente da terra deve seguir e ai daqueles que os violarem.

Assim é que as coisas são nesse lugar e tempo e Joaquim faz o que pode para amoldar-se ao que a lei e os costumes exigem dele. Não podendo usar a estratégia de Labão, nem assente que pode agir como um gentio, o bom pastor procura marido para a jovem Maria entre os homens desimpedidos da sua família. Acaba por encontrá-lo em um primo afastado, de nome José, carpinteiro por profissão, que tem oficina em Belém. Esse é homem já quarentão, viúvo ademais, com dois filhos já casados e mais dois ainda para criar, uma menina de dez anos chamada Lídia e um menino de cinco, de nome Judas. Feita a proposta, o carpinteiro argumentou, a princípio, sobre a dificuldade de tomar por esposa menina tão nova, quase da idade da própria filha. Isso poderia lhe trazer incômodos, não naquele momento, porém mais tarde, quando lhe faltasse virilidade para cumprir os deveres conjugais e a garota estivesse na flor da idade. Desses arranjos é que o Diabo gosta para fazer perder homens e mulheres, respondeu ele, pois o corpo humano, sendo o que é, tem necessidades que precisam ser atendidas e se não os encontra à mão, força é que tais serviços sejam procurados em outro canto. Homem velho, mulher nova, lá vem cornos ou então cova, ditado antigo é esse, que já nesse tempo comprovava ser fidedigno, e José não quer se arriscar a uns ou outra.
Mas Joaquim lhe faz ver as vantagens de semelhante união, particularmente com o argumento de que logo teria que dar marido para Lídia e ele não teria ninguém para cuidar dele e do menino Judas. Arrazoado que começou a tornar-se aceitável para o bom carpinteiro quando ele viu de perto a jovem Maria. Achou-a bonita, em seu vigor juvenil, o vulto esguio, o passo firme e os modos tímidos da donzela que pela primeira vez se vê confrontada com o destino comum das mulheres da terra, o de tomar marido o mais cedo possível, tão logo o primeiro sangue anuncie a passagem da menina para a mulher. Esse é o sinal, que como a floração nas espécies vegetais anuncia que já estão aptas para produzir frutos, nas mulheres quer dizer que seus corpos já estão prontos para cumprir a finalidade para a qual foram criados. Consciente está a menina da sina que a espera, e ela que já conta como subida honra a possibilidade de gerar belos e robustos filhos para serem contados nos números do povo de Jeová, ao saber que fora dada em casamento a José, assentiu de boa mente ao acordado. De resto, outra coisa, mesmo se quisesse não poderia fazer, pois como se sabe, pelos estatutos da terra a mulher não tem vontade própria nesses casos. No mais, o que se tornou público desse arranjo é que ao tomar tento que acabava de se tornar noiva de um carpinteiro viúvo, com mais do que o dobro da idade dela, Maria só pode dizer aquelas palavras que alguém disse que ela pronunciou, e isso é bem certo que tenha feito, porque a chamada confirmação de fontes o assegura – só não se concerta em que momento tenha sido –, que diziam: “ eis aqui a tua serva, Senhor: faça-se em mim segundo a Tua Vontade”.
Pois se Ele lhe dava esposo e por certo que com ele logo lhe viria filho, forçoso é que se reconheça que essa seria a Sua Vontade. Só não sabemos dizer se o Senhor a quem ela se referia era o Senhor Deus de Israel, Ancião dos Dias e Monarca do Universo, ou simplesmente seu pai Joaquim, o que de resto também pouco importa, pois tanto a Um quanto a outro ela jamais cogitaria desobedecer.


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/10/2010
Alterado em 02/10/2010


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