O ALEPH
“O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço. Na eternidade, todo tempo ― passado, presente e futuro ― coexiste simultaneamente. No Aleph, a soma total do universo espacial encontra-se em uma diminuta esfera resplandecente de pouco mais de três centímetros.”
Jorge Luis Borges
Quando ainda muito jovem li um conto fantástico do Jorge Luís Borges, chamado Aleph, que muito me impressionou. Falava da possibilidade de o universo inteiro estar contido numa diminuta esfera de três centímetros de diâmetro, que podia ser contemplada em determinados lugares do espaço, como se fosse uma estrela oculta aos olhos da razão e só visível aos olhos do espírito.
Na época não entendi bem o que ele queria dizer com aquilo, mas ficou a impressão. Com algum medo, mas bastante curiosidade, cheguei mesmo a procurar, no escuro do meu quarto, ou nas minhas visões noturnas, algo semelhante a um Aleph, onde eu pudesse ver o universo acontecendo sem precisar sair de casa, sem ter que ligar a televisão ou ler jornais, ou pior ainda, ir à escola para saber o que andava rolando nesse mundo imenso onde eu me sentia apenas um minúsculo grão de poeira.
Pensei que o Aleph de Borges fosse algo assim como uma espécie de Jornal Nacional ubíquo e intemporal que mostrava concomitantemente todas as dimensões do espaço―tempo, numa única tela, num único instante. Por isso, ao contemplá-lo estaria lendo, num átimo de instante, uma biblioteca inteira do saber universal, em todas suas nuances passadas, presentes e futuras. Seria fantástico isso!
Mais tarde fiquei sabendo que Aleph era a primeira letra do alfabeto hebraico. Segundo os cabalistas, foi o primeiro som emitido por Deus, no seu esforço de criação do universo. Aprendi que de acordo com a tradição cabalística, Deus fez o mundo com três elementos da sua Essência: a luz, que é sua energia manifestada em forma de eletricidade, magnetismo e calor, o som, que é a Palavra Sagrada, o Nome Inefável de Deus e o Número, que são as suas infinitas relações manifestadas no mundo físico. Daí o fato de o alfabeto hebraico, sistema de escrita que combina letras (som) e valores (números) ser considerado uma escrita sagrada, ensinada aos homens pelos anjos, a mando do próprio Deus.
Por isso esse alfabeto é cheio de mistérios. Dizem que combinando os sons das suas letras com o valor numérico delas é possível fazer verdadeiros milagres. Há inclusive quem afirme que foi graças a esse conhecimento que Jesus conseguiu ressuscitar Lázaro. A prece que ele fez antes de entrar no sepulcro e dizer as palavras “Lázaro, levanta-te e sai para fora” (o pleonasmo é da Bíblia, não meu), continha, na verdade, fórmulas cabalísticas que produziam palavras de poder. E todos os milagres que ele fez estavam fundamentados nesse mesmo princípio, razão pela qual os seus apóstolos, gente simples que sequer suspeitava da existência de tal sabedoria, não conseguiam entendê-lo.
Adão também foi feito dessa maneira. Dizem os textos sagrados que Deus fez um molde de barro do primeiro homem e bafejou nas narinas dele o sopro da vida. Eu acho que não foi um sopro nas narinas que deu vida a Adão, mas sim uma palavra dita no pé do ouvido. É sabido que certas palavras tem poder, especialmente quando ditas ao pé do ouvido. Uma delas, em especial, que é o Verdadeiro Nome de Deus, é a fonte de todo o poder do Universo. Esse Nome foi a palavra que Ele disse no momento em que rompeu a casca da sua Existência Negativa. Ele disse: Eu Sou....
Houve inclusive cabalistas que tentaram descobrir que Nome era esse que Deus deu a Si mesmo. Pensavam que ele estaria oculto nas letras do alfabeto hebraico e por isso passaram séculos calculando e escrevendo as combinações que se podia fazer com elas.
Segundo os cabalistas são cerca de 10 bilhões as combinações que se podem fazer com as letras dos Nomes de Deus. Uma dessas combinações é o seu Verdadeiro Nome. Quem o conhece tem poder para fazer coisas extraordinárias, inclusive dar a vida a objetos inanimados. Esse teria sido o poder dado a Adão, no Éden, e que ele usou mal, razão pela qual foi expulso de lá e se tornou um mortal comum, sendo inclusive apagado de sua memória o conhecimento desse Nome sagrado. Com base nessa tradição, uma seita judaica, os Hassidins, no século XII, elaborou uma série de combinações entre as letras e os valores do alfabeto hebraico, com a finalidade de descobrir o Verdadeiro Nome de Deus. Com esse conhecimento, eles foram capazes de produzir um homúnculo, uma espécie de ser monstruoso, um Frankenstein mítico, chamado Golém.
Lendas à parte, o fato é que esse sistema de escrita é muito misterioso. Cada letra simboliza uma etapa da construção do universo e contém um cabedal de sabedoria para a vida prática. Assim, o alfabeto hebraico é, na verdade, uma grande enciclopédia do saber, que mostra todo o processo pelo qual Deus constrói o universo e ainda por cima nos ensina a viver melhor.
Borges diz que o Aleph é um signo que condensa o universo inteiro dentro de uma minúscula esfera luminosa que não ultrapassa três centímetros de diâmetro. Toda a vida dele e das demais pessoas do mundo, as que vivem, viveram e ainda vão viver, bem como a totalidade do que já aconteceu, está acontecendo e ainda acontecerá em toda a imensidade cósmica pode ser contemplado dentro dessa esfera, como num filme projetado na velocidade da luz, mas ainda assim possível de ser acompanhado pelos olhos do espírito.
Na época não me dei conta da implicação desse fenômeno porque não tinha nenhuma informação a respeito, mas hoje chego a entendê-lo melhor. Na verdade, tenho a impressão que talvez ele estivesse falando do átomo primordial, chamado de Grande Singularidade pelos cientistas, e de Ovo Cósmico pelos hierofantes e mistagogos das antigas religiões. Pois segundo esses velhos mestres do conhecimento arcano o universo primordial era como uma espécie de ovo, que a divindade responsável pela construção do mundo botou e chocou.
Essa é uma visão interessante. O ovo é uma analogia que aparece em todas as cosmogonias imaginadas pelos povos antigos. Ele é o símbolo que representa o nascimento, o renascimento, a renovação e a criação universal de forma contínua e cíclica. Muitas civilizações antigas acreditavam que o mundo havia nascido de um ovo. Os hindus, por exemplo, diziam que uma gansa de nome Hamsa (o Sopro divino), havia chocado o ovo cósmico na superfície das águas primordiais, o qual foi dividido em duas partes e deu origem ao céu e a terra, sendo o céu a clara e a terra a gema. Essa alegoria serve também para simbolizar a dualidade espírito/matéria, sendo o primeiro a clara e o segundo a gema. A intuição do ovo cósmico aparece igualmente nas tradições chinesas, celtas e egípcias. Na China se diz que antes do surgimento do mundo, um ovo semelhante ao da galinha se abriu e de dentro dele surgiu a terra (Yian) e o céu (Ying). Já para os celtas o ovo cósmico era assimilado a um ovo de serpente. Dentro dele a energia cósmica, representada por uma serpente que morde o próprio rabo estava contida. Ao romper o ovo, essa energia deu origem ao universo físico.
De qualquer modo, a ideia é a de que o universo primitivo era algo redondo, esférico, granular, o que nos faz imaginar que tanto Borges quanto os velhos mestres estavam falando da mesma coisa.
Para os cientistas, no começo do tempo, Deus era uma região no espaço onde a energia estava tão densamente concentrada, que um dia explodiu. Por falta de um nome melhor (os cientistas são pessoas sem imaginação), chamaram Deus de Grande Singularidade e ao seu grito de liberdade, de Big Bang. Assim, místicos e cientistas usam linguagens diferentes para expressar a mesma visão de um evento que a nossa mente não consegue organizar, mas apenas imaginar. E isso é tudo.
O Big Bang foi o início do tempo do universo, mas não o início do universo propria-mente dito, porque antes de explodir ele já existia. Ele era uma Existência Negativa, como diz a Cabala. Admirável fórmula para explicar a existência de algo que ainda não se consegue imaginar.
Mas assim tudo se combina. Luz, que é energia polarizada; Bang, que é um som, Big, que dá uma ideia de grandeza, ou de número. Luz, som e número, dando início ao maior espetáculo de todos os tempos: o nascimento do universo! E aí temos a velha intuição dos cabalistas, que os padres sérios sempre taxaram de heresia e os filósofos racionalistas de delírio metafísico, cantando um dueto com as descobertas da moderna física atômica.
Oh! Maravilhosa propriedade da mente humana que nos permite construir imaginações tão deliciosas quanto fantásticas! Não há poesia mais bela quanto a linguagem da fantasia tentando construir imagens do desconhecido. Nem verdade mais provável do que aquela que a fantasia dos puros de coração intuem.
***
Depois de muita concentração acabei descobrindo um Aleph no meu próprio quarto. Agora, quando me bate a necessidade de circunspecção, já sei onde buscá-lo. Basta me deitar em decúbito dorsal e fechar os olhos que ele me vem imediatamente. Então eu posso ver o universo inteiro com todas suas relações acontecendo perante meus olhos. Vejo o meu primeiro dia e minha última noite, o primeiro beijo e o primeiro esperma colhido na palma da mão. O peso do prazer, a cor do meu ódio e o cheiro do meu amor. O som da esperança e a textura da dor; a extensão rasa da alegria e a profundidade insondável da tristeza. Todas as mensagens neurolinguísticas que informam meus programas de vida estão ali e eu posso estudá-las, não para mudá-las, pois elas são história e a história não se muda, mas sim, para compreender essas informações e aprender um jeito novo de interpretá-las e conviver com elas.
Posso recuperar o gosto do primeiro beijo; compreender a estrutura do átomo e a desorganização celular que se transforma em câncer. Navegar, sem aparelhos, pelo fundo do mar e viajar, sem equipagens, pelo espaço cósmico. Cavalgar um cometa num passeio pela Via Láctea.
Minha mãe dizia que eu era louco por ficar pensando em coisas parecidas com essas e minha mulher achava bonito eu falar nisso quando nós nos casamos. Gostava dos poemas que eu escrevia com temas desse tipo. Um deles era assim:
“Eu sou feito da mesma essência que as gotas da chuva
E as rosas do meu jardim.
Mas eu não sou chuva e muito menos uma flor.
Eu sou uma síntese que ganhou interioridade.
Certamente eu poderia ser qualquer coisa no universo
Se não tivesse perdido, na complexidade das metamorfoses sofridas,
Toda a irmandade que tenho com a pluralidade primitiva da matéria.
Ao longo da flecha do tempo,
Dividido até a mais ínfima particularidade
Eu encontraria a minha fórmula fundamental.
Mas de que me serviria ser apresentado ao meu eu elementar,
Esse grão inicial de poeira cósmica, infinitesimal e infinito,
Esse ser pluralístico, energético e uno,
Se nele eu não puder ver o meu próprio rosto?
No imenso de mim desaparecem todas as propriedades do meu ser.
No mais ínfimo de mim eu sou todos os seres.
Mas nos dois limites de mim sou além de mim e aquém do que sei de mim.
Cada grão de mim tem sua própria singularidade.
Cada grão de mim é múltiplo e retém as propriedades do todo.
Cada grão de mim é eventual e se torna fato a cada nova relação.
Eu sou um sistema, um totum e um quantum.”
Depois, quando ficamos mais maduros e as contas para pagar começaram a fazer pressão sobre as nossas vidas, ela dizia que era perda de tempo ficar gastando fosfato com essas especulações sem sentido. E no mais das vezes incompreensivel para uma pessoa sensata.
Seria mais produtivo, disse ela, aprender inglês ou fazer um curso de direito. Aceitei o conselho, fiz os dois cursos, passei em um concurso público, dei um jeito de ganhar a vida sem ter que trabalhar como um mouro, mas comprei também um telescópio. Quando chegava da faculdade, á noite, ou depois que voltava da repartição, deixava a aridez da lei para Miguel Reale, as dificuldades da língua inglesa para Shakespeare, as chatices da repartição para o dia seguinte e ia para a varanda ouvir a música das estrelas.
Sim, as estrelas cantam.
O Aleph de Borges é menos misterioso do que o dos cientistas. O Aleph dos cientistas só pode ser visto com aparelhagens muito sofisticadas na intimidade dos laboratórios mais avançados de física nuclear ou de astronomia. Borges dizia que esse signo mágico podia ser visto em toda sua inteireza no porão de um velho prédio da rua Garay, na Buenos Aires dos anos quarenta.
Hoje eu sei que Alephs são grãos de energia luminosa que guardam a primitiva composição do universo. São partes que mantém as propriedades do todo. Toda a matéria universal é feita de Alephs. Há muitos deles espalhados pelo espaço cósmico. Para vê-los é preciso adotar uma adequada postura no ato de olhar e um certo estado de espírito para crer no que está vendo.
Isso não são fantasias de escritor não. São realidades físicas semi virtuais. Os iniciados em física atômica e os experts em informática sabem do que estou falando.
Os sensitivos também. Há pessoas que veem espíritos. Não são todas as pessoas que têm essa capacidade. Para isso é preciso ser médium. Médiuns são indivíduos que desenvolvem um tipo de sensibilidade especial. Minha mãe, por exemplo, era médium. Conversava com espíritos e tinha visões. Eu nunca acreditei nas coisas que ela dizia ou que afirmava ver. Ela era analfabeta e pessoas sem instrução não podem ser sábias, eu pensava. Mas ela morreu com setenta e oito anos e só entrou num hospital para morrer. Nós a levamos para um hospital porque lá seria mais fácil obter o atestado de óbito do que se a deixássemos morrer em casa. Em muitos casos é isso mesmo que fazemos todos os dias. Nos recusamos a receber a morte em nossa casa e levamos os nossos entes queridos para morrer num hospital, longe das pessoas que eles amam. É cruel, mas é a forma mais fácil para se lidar com isso.
A minha mãe tratou-se a vida inteira com os remédios que conhecia. Nossa casa parecia um botica de alquimista. Lembro-me que lá havia uns remédios com nomes estranhos. Bryonnia, Aconittun, Allium Sativum, Beladonna, Phósporus, Arnica, hortelã, chifre de boi queimado, ervas e uma raiz esquisita chamada carapiá, que mais parecia um tufo de pelos pubianos. Nada de drogas sintetizadas em laboratório.
Minha mãe era iletrada e ingênua. Mas conseguiu criar sozinha os quatro filhos que lhe sobraram dos oito que teve, pois o meu pai morreu quando eu tinha sete anos e o meu irmão mais velho, quinze. Nunca passamos fome nem tivemos que pedir nada para ninguém. Hoje eu penso que se tivesse que fazer o que ela fez me faltaria sabedoria e coragem para tanto.
Borges dizia que o universo é como um caleidoscópio. Você olha para ele de certa maneira e ele se decompõe em milhares de cores e formas. A nossa mente também é assim. Você olha para ela e ela se multiplica em infinitas relações chamadas pensamentos. Nós os chamamos de memórias, raciocínios, fantasias, etc. Mas na verdade, o que eles são é uma profusão de cores, cheiros, sons, sensações táteis e gustativas.
Cada uma com seu valor emocional. Quanto custa, na moeda emoção (que não tem paridade com nenhuma outra moeda), a lembrança do seu primeiro beijo? A dor da perda de um ente querido? A memória das melhores férias da sua vida? A mágoa de uma separação que você gostaria de ter evitado? A primeira palavra do seu filho?
Perdi minha primeira esposa para um câncer. Lutamos muito, eu e ela, para evitar que ela fosse embora antes de chegar o primeiro neto. Uma vida pela outra nos parecia uma troca justa. Não deu. Paguei antes para receber depois. Minha filha mais velha casou-se muito jovem, foi viver a vida dela. Odiei a opção que ela fez, achei que estava jogando a vida fora. Depois vi que estava enganado. A minha raiva calou-se, o meu diálogo interno passou a ser orquestrado pela emoção que senti ao ouvir a voz do primeiro neto.
A minha filha caçula foi viver na Austrália. Longe demais para que a gente possa se ver pelo menos uma vez por ano. Nós nos comunicamos quase todo dia pelo skype. Mas a informação neurolinguística virtual não tem a mesma densidade emocional que a cinestesia do toque, do cheiro e da visão produz. A emoção de um abraço não pode ser compensada nem pela mais perfeita informação virtual.
Assim, de uma hora para outra toda uma vida montada com processualística regularidade e planejadíssima esperança foi torpedeada por um maldito câncer. Ou pelo menos eu achava que ele era o culpado. Não acho mais. O Aleph me mostrou que não. Ele me ensinou que o mundo é feito de partículas energéticas que se cruzam e se combinam. A vida também. Ela é feita de relações, que por mais indesejáveis que sejam, no mais das vezes não conseguimos evitar. Isso também já não me incomoda mais. Hoje eu sei que não há culpa no universo físico porque não existem intenções. Só informações que se cruzam e se transformam em outras informações.
O Aleph é uma realidade física que pode ser vista a olho nu, bastando para isso se colocar num certo ângulo de visão e adotar uma atitude de fervorosa credulidade.
Certamente, quem for à Buenos Aires hoje para tentar repetir a experiência de Borges não o conseguirá, pois segundo o próprio autor, o imóvel onde ele aparecia foi demolido nos anos quarenta, mas eu acho mesmo que aquele Aleph não estará lá porque Borges já morreu e o levou com ele para a dimensão onde se encontra hoje esse “quanta energético”, que um dia foi Jorge Luís Borges, maravilhoso contador de histórias extraordinárias, tão verossímeis quanto os contos escritos pelos cientistas.
Pois o Aleph nada mais é que a nossa própria alma. Quantas coisas você vê quando olha para dentro de si mesmo? Todas as suas lembranças, que é o seu passado, todos os seus desejos, que é o seu presente, e todos os seus sonhos, que é o seu futuro, não estão condensado ali? No meu, eu vejo o queixo anguloso da Walkíria, minha primeira namorada. Vejo um trem de subúrbio na antiga Central do Brasil. Uma caixa de engraxate, gibis do Fantasma, do Mandrake, do Roy Rogers, do Bolinha e dos Sobrinhos do Capitão. Uma bola de meia, um par de Alpargatas Roda. Um salão na Rua Senador Dantas. Meu primeiro emprego de carteira assi-nada. Minha mãe me dando café amargo no meu primeiro porre. Sinto o gosto e o cheiro dele. Vejo o Bellini erguendo a Taça Jules Rimet em Estocolmo. Danço na Fonte Luminosa. Cheiro de verniz na mão. O discurso do presidente Castelo Branco inaugurando uma fábrica em Mogi das Cruzes, um rapazinho jogando uma garrafa de gasolina na parede do prédio do Makenzie e depois correndo para não apanhar da polícia montada a cavalo. Festivais de música no antigo teatro Paramount. Vejo diplomas, alunos, um casamento, uma criança nascendo, um fusquinha verde, com o motor vazando óleo, um churrasco na praia, uma cama de hospital, neve nos Alpes e a areia quente do deserto da Síria; as Pirâmides do Egito e as ruínas de Machu Pichu; um teatro na Broadway com o Fantasma da Ópera. Vejo o John Wayne seguindo Rastros de Ódio e Alan Ladd ─ o bruto que também amava ─ liquidando fazendeiros maus que molestavam pobres colonos sem terra. Todas as cores do Almodovar e as visões do Kurusawa. O mar de Dylan Thomas, os sinos de Hemingway, os Ookies de Steinbeck plantando Vinhas da Ira e os cangaceiros de Graciliano interagindo com Deus e o Diabo na terra do Sol. O Glauber Rocha filmando tudo. Capitu com seus olhos de ressaca. Iracema vertendo o sangue dos seus seios como o pelicano da lenda. Uma ambulância, homens de branco, gente morrendo de tifo, de varíola, de AIDS. Vejo também telas de computador e letras misturadas, como frutas num liquidificador; livros empilhados, contas para pagar, uma formiga que passa equilibrando nas pinças uma folha de grama três vezes maior que ela. Minha mãe lavando e passando uma pilha enorme de roupas. Um e-mail que não abri cobrando uma resposta que não dei.Um pouco mais de crença e coragem poderia me levar às minhas vidas passadas. Existe gente que jura de pés juntos que já fez isso. Eu não cheguei nem perto.
Um passarinho bica três vezes a vidraça. É um aviso. Mudo de tempo. Vou ao futuro. Vejo meus sonhos. Estou de novo em Jerusalém, vejo os lugares onde ainda não fui. Passeio de barco pelo Pantanal de Mato Grosso. Embarco no Expresso do Oriente em Veneza e vou até Istambul, passando por Serajevo, Bratislava, Bucarest, Tirana, os cumes nevados dos Montes Carpatos. O Castelo do Conde Drácula no alto das montanhas da Valáquia, o Bósforo, a cúpula da Santa Sofia. Vejo um laboratório de alquimista em Praga, danço uma valsa em Viena, vestido de casaca e cabeleira empoada; uma casa de chá em Tóquio, as muralhas da China e o Taj Mahal. Atravesso São Paulo num aero trem, construído em cima do Tietê limpinho e sem aquele cheiro de cloaca.
O Aleph de Borges é uma esfera de cerca de três centímetros de diâmetro, o meu tem o tamanho da minha capacidade de linguagem, pois ela é que conforma a minha imaginação.
Paulo Coelho viu no Aleph as suas vidas passadas. Cada um vê, não talvez o que quer, mas o que precisa. Eu talvez não tenha vidas passadas, pois ainda acho que uma já é demais.
Borges dizia que o que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o universo, porque a eternidade não é uma linha reta que se estende de um irrecuperável instante que ocorre antes de nós, até outro ponto, na nossa frente, que também nunca atingiremos. A eternidade, nessa imaginação, é um ponto único de extrema densidade, onde tudo ― tudo mesmo, presente, passado, futuro ― coexiste simultaneamente.
E só existe um lugar onde esse processo pode ocorrer: dentro da nossa mente.Ela é uma máquina, um acelerador de particulas poderso, onde elas colidem normalmente e formatam um inconcebível universo.
O Aleph é um como um holograma do universo. Uma parte que conserva as propriedades do todo. Como a nossa mente, que é a sede da nossa alma, também é uma fração do universo, mas dentro dela a realidade inteira está contida. Não é preciso se encerrar no porão de um prédio soturno numa rua qualquer de uma cidade específica, para podermos vê-lo. Basta, em alguns casos, fechar os olhos e deixar a mente vagar à toa, sem querer dirigi-la, como tentamos fazer o dia inteiro.
O Aleph de Borges é um conto cabalístico, extraordinário, mas também é uma bela história de amor. É o relato do amor dele por Beatriz Viterbo e da dor pela sua perda. Parece que quando sofremos perdas emocionais irrecuperáveis (e todas essas perdas são do tipo irrecuperável), a nossa alma se fragmenta e um pedacinho dela se separa de nós. Então ele fica boiando no espaço, girando, como se fosse um minúsculo planeta, com tudo que fomos, somos e seremos, expostos dentro dele.
O meu Aleph é a minha história, o seu é a sua. Cada célula do nosso corpo, cada gota do nosso sangue, das nossas lágrimas e do nosso suor carrega a totalidade da nossa experiência presente, passada e futura. É o nosso DNA. Nele está inscrita toda a vida do universo. Nós somos os nossos sentimentos, os nossos valores, as nossas visões do mundo, os nossos sonhos e esperanças.
Um universo de infinitas relações. E no meio delas somos um ponto para onde todas as linhas convergem e de onde todas as linhas bifurcam. O inconcebível universo sou eu e é você.
As cores, os sons e as cinestesias passam pela tela da minha mente na velocidade da luz. Meus olhos internos já não conseguem acompanhar o desfile vertiginoso das imagens que se formam diante dele. Fugidias como a areia que escorre entre os dedos, elas se perdem na eternidade, como cometas no infinito cósmico. Sonolento, à beira da inconsciência, não consigo mais capturar as visões que se sucedem. Mas consigo ouvir, com todas as letras, as palavras do pregador: “unde exeunt flumina revertuntur, ut iterum fluant”.*
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* Tudo é de ti, tudo vem de ti, tudo a ti reverterá.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 12/11/2010
Alterado em 05/07/2011