João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



                                                  “Mori potius quam fidari.”
MELHOR A DESGRAÇA QUE A DESONRA

A menina Júlia tinha dezesseis anos quando Cartago, a cidade em que ela morava, foi invadida por uma horda de bárbaros guerreiros, conhecidos como vândalos. Isso ocorreu no ano 439 da Era Cristã. Os vândalos arrasaram a cidade e mataram a maioria dos seus habitantes. Os que não morreram foram aprisionados e vendidos como escravos.
Júlia foi um deles. Aprisionada e levada para o mercado de escravos, foi adquirida por um comerciante sírio, que para sua sorte, era cristão como ela. Esse mercador era um bom homem, muito piedoso e firme na fé em Cristo. Tratou a jovem Júlia como se fosse sua filha e a levava em suas muitas viagens pelo claudicante Império Romano, que já nessa época estava sendo rapidamente destruído pelos bárbaros vindos da Europa central e do norte.
O amo de Julia, em suas viagens comerciais pelo Império, aproveitava para levar também a palavra de Cristo aos povos que visitava. Era missionário. Assim, a jovem, que cons-tantemente viajava com ele, tornou-se uma eficiente propagandista da fé e da doutrina cristã.
Nessa época, em virtude da conversão do Imperador Constantino, ocorrida cerca de um século antes, o Cristianismo era a religião oficial do Império Romano. Mas em muitas regiões dominadas por Roma, as populações locais não haviam abandonado suas antigas crenças pagãs, e não raros eram os conflitos entre os missionários cristãos e as autoridades locais, que professavam os antigos credos e as velhas práticas religiosas de seus ancestrais.
Uma dessas regiões era a ilha de Córsega, onde se cultivavam velhas tradições religiosas pagãs que comportavam práticas condenadas pela Igreja de Roma. Algumas dessas cerimônias litúrgicas, praticadas pelos corsos, envolviam orgias sexuais, desenvolvidas em forma de ritos pagãos.
Júlia, em suas pregações na ilha, condenou violentamente essas práticas. Pregando com firmeza e coragem em praça pública, ela concitou os corsos a abandonarem seus ritos pagãos e abraçarem o Cristianismo. Muitos acreditaram nela e os templos onde os rituais eram praticados começaram a ficar vazios.
Pode-se imaginar um cenário desses. Seja qual for a religião, e seja qual for o lugar e o tempo, templos vazios significam menos recursos para a manutenção das pessoas que ministram seus sacramentos e administram seus bens. Interesses contrariados significam conflitos em qualquer lugar e tempo. Assim, não demorou muito para que Júlia fosse aprisionada e levada perante as autoridades locais, as quais, não querendo se envolver numa questão religiosa e provocar a repressão de Roma, que tinha adotado o Cristianismo como religião oficial do Império, a entregaram para que seus próprios delatores a julgassem.
Após um sumário julgamento, feito em segredo e dirigido pelas próprias pessoas que a acusaram, foi dada à jovem donzela a seguinte alternativa: participar do ritual pagão, entregando seu corpo à orgia ritual, ou então a mutilação e a morte.
Júlia preferiu a segunda hipótese. Em consequência, a donzela foi condenada à morte. O rito da execução exigia que ela tivesse os seios cortados e atirados do alto do penhasco onde as cerimônias rituais se realizavam. Assim, a jovem teve os mamilos decepados e atirados penhasco abaixo.
Mas dos seios de Júlia saíram duas gotas de leite, que pingaram sobre o rochedo. E no lugar onde elas caíram, dois olhos de cristalina água brotaram imediatamente, formando uma fonte. A essa fonte, os habitantes da região, até hoje, chamam de “Fonte de Juventa”, ou Fonte da Juventude.

Na tradição católica essa lenda ficou conhecida como a lenda de Santa Júlia de Cartago. Sua igreja, que existe ainda hoje, pode ser vista sobre o rochedo que emoldura a aldeia de Nonza, na Córsega.
Dizem também que quem tiver suficiente sensibilidade, poderá ver, no crepúsculo, uma linda jovem nua, sentada sobre umas das pedras que formam o enorme bloco rochoso onde a igreja foi construída. E de quem ela se agrada, oferece os belos seios, para que o feliz mortal deles beba o leite morno da virgem.
Afirmam também que esse leite miraculoso reverbera ao sol poente como raios refletidos em um lindo rubi; e quem tiver a felicidade de prová-lo, receberá a graça da saúde e da longevidade.
É claro que o pároco da igreja de Nonza, bem como a comunidade católica da cidade não demostram muita simpatia por essas histórias contadas a respeito da sua santa padroeira.
Dizem que são lendas pagãs. A versão da igreja termina com o martírio da jovem e enfatiza a sua fé na defesa da castidade. Não gostam da lenda, mas incentivam os turistas para que bebam da água da fonte, que eles chamam de "leite da virgem". Um copinho custa cerca de cinco euros, pelo câmbio atual.
Bem, eu gostei mais da versão pagã da lenda do que da versão da igreja. Quem a contou para mim foi um antigo habitante da ilha. Dizem que ele é um velho boticário que vive da manipulação de remédios homeopáticos. Mas eu desconfio, pelo que vi na sua estranha botica, que ele é, na verdade um alquimista.
Quanto á história, reproduzi-a da mesma forma que ele me contou.

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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 30/11/2010
Alterado em 08/03/2011


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