DYLAN THOMAS- A POESIA DOS SENTIDOS
Onde outrora fluíam as águas de teu rosto
Para as minhas hélices aflora o teu áspero aspecto,
E os mortos entreabrem os olhos;
Onde outrora os tritões, através do teu gelo,
Erguem os cabelos, o árido vento navega
Através do sal, das raízes e das ovas de peixe.
Onde outrora os teus verdes nós submergiram as emendas
Na cordoalha trazida pelas marés, eis que chega
O verde ceifeiro,
Com suas tesouras azeitadas e suas negligentes lâminas suspensas
Para cortar os braços de mar em sua origem
E esparramar os úmidos frutos pelo chão.
Invisíveis, tuas marés rumorosas
Irrompem nos leitos nupciais das algas;
Do amor perderam as algas sua frescura;
Ali, ao redor de tuas pedras, flutuam
As sombras das crianças que, do fundo dos seus abismos,
Gritam à beira de um mar de golfinhos.
Frias como um túmulo, tuas pálpebras coloridas
Jamais se fecharão enquanto a magia deslizar
Sabiamente sobre a Terra e o céu;
Surgirão corais em teu leito,
E serpentes nascerão de tuas marés,
Até que morram todas as crenças no mar.
Conseguiu entender esse poema? Se entendeu você é um gênio ou tem um excepcional repertório linguístico e um extraordinário conhecimento de simbologia e uma esmerada preparação em ciências da mente.
Esse poema é de Dylan Thomas, uma das máximas expressões da poesia produzida em língua inglesa nos anos trinta e quarenta. Não é, como se pode pensar em princípio, um poema surrealista, como estava em moda nas primeiras décadas do século XX. A poesia de Dylan Thomas tem traços de surrealismo, mas ele não é exatamente surrealista. O surrealismo joga os anzóis dentro do inconsciente e não se preocupa com o que pesca. Trabalha com o caos sem se dar ao trabalho de organizá-lo. Por isso as obras surrealistas parecem logicamente incompreensíveis.
Aliás, elas não são feitas para serem entendidas, mas sentidas. Dizem os cultores dessa escola que não é o surrealismo que é caótico, mas sim os nossos sistemas de linguagem que são insuficientes para organizar o material que existe no nosso inconsciente. Talvez isso seja verdade. O mapa não é o território, já dizia Alfred Korzibsky ( 1933-1994), grande linguista que afirmava que o mundo que temos dentro da nossa mente é muito maior que a capacidade de linguagem que desenvolvemos para representá-lo.
Voltando a Dylan Thomas, se você não conseguiu entender a poesia dele (e isso não é nenhum demérito, pouca gente entende), faça um exercício: leia-a de novo, mas desta vez em voz alta. Depois compare o que você sente quando a lê em voz alta e quando a lê em silêncio. Duvido que sinta a mesma coisa. Pois é isso mesmo, a poesia de Dylan Thomas, como a poesia de William Blake, Rimbauld ou André Breton não foram escritas para serem entendidas, mas sentidas. São o que eu chamo de poesia imagética. Não quer dizer que não tenha sentido. Tem, mas o sentido raramente pode ser expresso em linguagem organizada. Nós sentimos, nós fazemos a imagem do que está sendo comunicado, mas não podemos descrever esse estado interno por falta de palavras que sejam capazes de defini-los.
Sente-se mais ou menos a mesma coisa ouvindo algumas canções de Bob Dylan, por exemplo. Quem afirmar que pode entender perfeitamente as letras das canções dele está mentindo. O universo de Bob Dylan é tão desconexo quanto o de Dylan Thomas. Aliás, não foi por acaso que o cantor Robert Allen Zimmerman adotou o nome de Bob Dylan. Ele quis homenagear a sua grande influência poética.
É fácil gostar da poesia de Dylan Thomas. É só não procurar logicilizá-la. É uma poesia feita para a língua, para os ouvidos e para a pele, que se arrepia toda quando ela é declamada por alguém que sabe declamar. Aliás, foi essa circunstância que levou o grande poeta galês a experimentar um sucesso pouco comum para quem se dedica à poesia. São raros os poetas que alcançam tamanho reconhecimento ainda em vida. Dylan tinha um programa na BBC de Londres onde declamava suas obras e trabalhos de outros poetas. Segundo dizem, ele tinha uma voz belíssima e seus programas alcançavam larga audiência nos dois lados do Atlântico. Mais do que os livros que publicou foram suas audiências radiofônicas que o tornaram famoso no mundo inteiro e fizeram dele uma das maiores influências para as gerações dos anos cinquenta e sessenta. Era o ídolo da geração Beat e não havia sarau de poesia naqueles conturbados anos que não apresentasse poesia dele.
A vida de Dylan Thomas não foi muito diferente de outros artistas da sua geração e da sua índole. Fez parte de uma geração que queria viver intensamente, mesmo que fosse pelo menor tempo possível. Como Noel Rosa, Oscar Wilde, Rimbaud e outras grandes sensibilidades que trocaram o tempo pela intensidade, ele teve uma existência curta. Sua vida, como disse seu principal biografo, Constantine Fitzgibbon, foi um mar voraz, indomável como as ondas de sua terra natal, o País de Gales.
Aliás, desde criança ele sempre foi atraído pelo mar. Em sua cabeça talvez houvesse essa analogia. A imensidade do oceano, que não parecia ter limite, era a melhor metáfora do conteúdo inconsciente da mente humana: um oceano sem limite, onde todas as respostas podem ser buscadas, mas que saem sempre de uma forma desorganizada, caótica. O que importa são imagens que são formadas. Elas são a verdadeira realidade, não o que pensamos delas. E como dizia Vinicius, a vida vem em ondas, como o mar.
Da mesma forma que escrevia ele vivia. Alcóolatra inveterado desde a adolescência, não tinha regramento para coisa alguma. Parecia viver sem tempo, sem compromissos, sem comprometimentos, sem qualquer vinculação com coisas e pessoas a não ser com aquilo que fazia no momento. Não obstante casou-se e teve três filhos. Sua esposa, Caitlin Macnamara, também era poeta e não muito diferente dele. Como Dylan ela tomava todas e não mostrava qualquer responsabilidade para com as obrigações da vida. Em consequência, a vida matrimonial dos dois não foi muito fácil. Constantemente sem dinheiro, acossados pelas dívidas, eles se separaram algumas vezes e se reconciliaram outras tantas, mas o gosto dos dois pelo álcool e pela vida boêmia nunca permitiu que eles tivessem uma vida normal
Dylan Thomas morreu em 9 de novembro de 1953. Sua causa mortis foi declarada como “insulto cerebral”, uma expressão paliativa para mascarar a verdadeira causa, que foi a overdose alcoólica. Porém, o que menos importa é, como disse um poeta anônimo, como morrem os astros. Sem eles não haveria a gravidade que geram os sistemas planetários; sem os sistemas planetários não haveria ambiente para que a vida florescesse; sem a vida nada disso que eu disse teria qualquer sentido.(...)
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Resumo da palestra por nós ministrada na AAMART- Associação Amigos da Arte, em 3 de dezembro de 2010.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/12/2010
Alterado em 27/12/2010