CADEIRA VAZIA
Quando Jorge, jovem e bem sucedido advogado entrou naquela galeria, ele não tinha a mínima idéia do que queria comprar. Só estava procurando uma pintura qualquer para en-feitar a parede do seu novo escritório. Mas eram tantas as telas ali expostas que ele ficou perdido. Devia ter perguntado a alguém, sua mulher talvez, ou à secretária, o que ficaria bem naquela parede.
“Mulher sempre tem mais jeito para essas coisas”, ele pensou. Ele não tinha. Lamentava ter um sentido visual tão pobre. Nunca fora capaz de combinar coisa com coisa. Invejava quem tinha aquela habilidade de passar em frente á uma vitrine de loja e dizer imediatamente que tal bolsa, sapato ou blusa era a cara de fulano ou fulano.
Ele não era capaz de combinar nem cor de gravata com cor de terno. Por isso sempre pedira à sua mulher que escolhes-se suas roupas, por que ela sim, tinha um sentido visual apura-díssimo, de tal modo que era capaz de entrar em uma sala e depois lembrar-se de tudo que viu dentro dela nos mínimos detalhes.
Agora em frente daquela profusão de quadros, o que comprar? Ali havia pessoas, paisagens, animais, figuras geométricas, arabescos, riscos e cores misturadas, aquelas garatujas incompreensíveis dos surrealistas, as figuras destorcidas dos cubistas, as estranhas formas gestaltianas dos adeptos do abstracionismo, enfim, tudo que se pode imaginar em termos de arte visual. O que ficaria bem na sua sala? Decididamente ele não sabia.
Ele era péssimo com cores. Pensou no que poderia combinar melhor com o branco daquela parede. Gostava de animais, especialmente de cavalos. Um cavalo em pleno galope, com a crina esvoaçando ao vento, sobre um fundo crepuscular raiado com tons amarelo-laranja, talvez fosse legal. Golfinhos saltando sobre ondas azuis, pássaros multicoloridos num galho ressequido de árvore, gaivotas adejando sobre um mar calmo, campos floridos, borboletas, rios turbulentos, cachoeiras. Havia muitas opções na galeria, qualquer uma delas ficaria bem.
Mas oo olhar para aquele quadro que agora pendia na sua parede, ele não conseguia entender a razão de tê-lo comprado. Por que escolhera justamente aquela pintura entre as milhares de telas que existiam naquela galeria? Não era trabalho de um grande artista, nem tinha perspectivas geométricas interessantes. Sua aparência cromática era pobre e sem qualquer atrativo. Era um quadro que passaria despercebido para qualquer pessoa com um mínino de sensibilidade para boas pinturas. Sua mulher o acharia horrível, um trabalho de péssima qualidade, disso ele tinha certeza. Ela tinha uma vista muito boa para essas coisas. Sua secretária não disse nada, mas pela cara que fez quando o viu pendurando o quadro, nem precisava.
No entanto, o quadro estava ali. Pagara caro por ele, e não atinava com o motivo de ter gasto tanto dinheiro com um troço daquele.
O quadro mostrava uma mulher, vestida com roupas dos fins do século XIX, sentada sobre uma cadeira de alto espaldar, com um gato no colo. Ao seu lado havia outra cadeira, esta vazia, como se tivesse sido posta ali para que outra pessoa pu-desse ser pintada junto com ela, como se fosse um casal, mas na última hora o modelo, ou o pintor, mudara de idéia e a mulher havia sido pintada sozinha.
A única coisa que ele se lembrava era que quando viu aquele quadro sentiu um arrepio no alto da cabeça, que desceu pela espinha dorsal até a sola dos pés. Era como se um eletrodo de baixa tensão tivesse sido ligado no seu couro cabeludo. De-pois seguiu-se uma pequena vertigem, uma perda momentânea de noção espacial e um vago sentimento que se assemelhava a um esvaziamento do Eu, como se a sua energia vital estivesse sendo drenada por um aspirador.
Símbolos. Ele sabia o que um símbolo pode fazer com a mente de uma pessoa. Acessa conteúdos não catalogados pela mente racional. Levanta camadas de informação sepultadas no inconsciente coletivo da humanidade desde que o primeiro ho-mem produziu a sua primeira reflexão. Estabelece conexões com insuspeitadas relações do universo inconcebível e não mapeado pelo conhecimento humano.
Mas o que poderia haver de simbólico para ele, naquele quadro? O que significava? Ele esquadrinhou a tela inteira e não viu nada de singular. A mulher não era nem bonita. Tinha uns olhos sem brilho e uma boca de lábios finos e cruéis, fechados numa expressão que denotava rancor, ou no mínimo, um profundo desagrado. Os olhos mortiços, no entanto, dava ao rosto anguloso que terminava num queixo quase pontiagudo, uma estranha expressão de transcendência.
Tinha a impressão que os olhos dela o perseguiam por toda a parte. Postou-se em vários ângulos do escritório para ver se havia algum ponto naquela geografia onde os olhos dela não o focassem, mas não encontrou nenhum. Por algum motivo ele se lembrou da Monalisa. O olhar da mulher que serviu de modelo para Leonardo da Vinci também era enigmático. “Deve ser o estilo. Afinal, foi o fato de ninguém ter podido recuperar qualquer informação segura sobre a mulher que serviu de mo-delo para essa obra famosa de Leonardo da Vinci é que lhe deu tanta fama,” pensou ele.
É claro que o pintor do quadro que ele comprara não tinha nada de Da Vinci. Ao contrário, qualquer perito em arte diria que o artista que fizera aquele quadro era um pintor medí-ocre que não conseguiria vender seus trabalhos nem numa feira livre. Mas decididamente havia naquele quadro algo que o a-traia. E isso nada tinha a ver com a qualidade da pintura, nem com o seu modelo, a pessoa do artista ou qualquer outro motivo que faz o mercado de arte se interessar por um trabalho.
Ele exercia uma atração poderosa sobre ele e o sentimento que ele lhe provocava era bem real. Sempre que olhava para ele experimentava aquele arrepio no alto do couro cabeludo, que se espalhava pelo corpo inteiro e terminava nas solas dos pés. Depois vinha uma pequena vertigem, uma perda de temperatura, um sentimento de esvaziamento do Eu, que lhe prostrava e o deixava frágil como a uma pessoa de quem foi vertida todo o sangue. Depois vinha uma voragem, que era como sua mente tivesse sido arrebatada e colocada numa canoa que fora apanhada numa violenta corredeira.
A primeira vez que experimentara essas sensações foi na própria galeria onde ele o comprou. Tão logo botou os olhos no quadro ele o atraiu como uma cobra faz com sua presa. Não conseguia tirar os olhos dele. Teve um sentimento que não soube definir, algo assim como uma sensação de pertencialidade com aquele ambiente pintado na tela, semelhante a aquelas impressões que as pessoas têm de já ter passado por um lugar que nunca visitaram antes.
Mas a galeria era um local público e ele logo se recompôs. Cortou o fluxo das conexões mentais que começaram a ser feitas numa velocidade alucinante, e não permitiu que elas o levassem mais longe. Voltara a si mesmo, recuperara o domínio do tempo e espaço em que estava, mas ficara com aquela sensação de esvaziamento neurológico que nos acompanha quando voltamos de um transe induzido. A gente sabe onde está, mas a consciência do que somos e do que fazemos demora um pouco mais para se estabilizar.
Agora, sentado na mesa do seu escritório, sozinho, ele se deixara carregar um pouco mais longe por aquela voragem. De frente para o quadro, olhando para ele fixamente, se pergun-tando o que o atraia nele, veio primeiro o arrepio, depois a ver-tigem, seguido pelo sentimento de esvaziamento, e então ele sentiu-se apanhado pelo torvelinho das águas turbulentas de um rio que serpenteava por um cânion estreito, de paredes altas a perder de vista. E ele se deixou carregar pela voragem, mas ainda desta vez teve medo e, no momento em que sentiu que a última e tênue linha que ainda o ligava à sua própria consciência espaço-temporal ia se romper, ele interrompeu o fluxo das relações que a sua mente começava a estabelecer com um mundo desconhecido, caótico, feito de luzes e sombras simultâneas, cores, sons e sensações distorcidas, doloridas umas, prazerosas outras.
E ele então se viu de novo em seu escritório, transpirando como se estivesse em uma sauna, com o coração batendo como se tivesse terminado uma prova de cem metros rasos e com as pernas tremendo como se estivesse acabado de enfren-tar uma ameaça real contra a própria vida.
O que vinha a ser aquilo? Que âncora misteriosa conteria aquele quadro para eliciar estados internos com conteúdos tão bizarros e desconcertantes, capaz de torná-lo tão frágil quanto uma criança recém nascida? E era só com ele que isso acontecia. Com sua secretária a pintura não despertava qualquer sentimento; ela a olhara e achara feia. Só isso. Sua mulher, se a visse, a acharia horrível. Disso ele tinha certeza. Conhecia bem o gosto dela. Os clientes sequer a notavam..
Não sabia se gostava daquilo ou não. O quadro o assustava, mas ele não conseguia se livrar dele. Era como uma droga. Sabia que lhe fazia mal, que representava perigo para a sua razão, mas não tinha forças para lutar contra aquela atração que ele exercia sobre ele. Várias vezes se levantara da cadeira e chegou a abrir a porta com a intenção de pedir à secretária para tirá-lo dali e dar um fim nele, mas logo em seguida sentava-se de novo, com a testa molhada de suor, a pressão arterial alterada, um sentimento de angústia a provocar uma febre que não podia ser detectada por termômetros, por que se tratava de uma mudança interna de temperatura, algo que se iniciava em sua mente e depois se espalhava pelo seu corpo, prostrando-o como se o fluxo energético que o mantinha vivo estivesse, pouco a pouco, sendo drenado.
Sentia-se muito mais fraco quando voltava desses transes. Depois de três ou quatro vezes, sentiu-se tão enfraquecido que pensou ter contraído uma virose das brabas. Foi a um clíni-co geral e fez todos os exames que ele pediu. Não havia nada com seu organismo. Fisicamente ele estava muito bem. Era um homem jovem e forte. Sempre tivera boa saúde, seus hábitos eram regulares, não fumava, não abusava do consumo de álcool, praticava esportes, tinha uma vida sadia, portanto, não havia nada de errado em seu organismo que precisasse ser tratado quimicamente. Assim, médico com o qual ele se consultou, seu amigo de muitos anos, recomendou que ele procurasse um neurologista, se possível com formação psiquiátrica, pois seus problemas, sem dúvida estavam nessa área. De repente, um tumor no cérebro ou qualquer outra anomalia no sistema neurológico poderia estar causando aquele estado, ou então o estresse do dia a dia.
Foi ao neurologista indicado e fez todos os exames necessários. Nada foi detectado em seu sistema nervoso ou na região cerebral que indicasse a presença de qualquer anomalia. Mas o médico, no decorrer da consulta, lhe perguntou se algu-ma coisa diferente lhe acontecera naquela semana, algo fora da rotina, que pudesse alterar seu equilíbrio neurológico.
Sim, claro. O quadro. As sensações estranhas que ele lhe provocava. Mas ele não quis dizer ao médico que sua saúde poderia estar sendo prejudicada por um quadro e nem saberia historiar as coisas que sentia quando olhava para ele. Eram sentimentos tão estranhos, tão bizarros, tão desconcertantes, que a sua capacidade de linguagem não saberia descrevê-los. Prejudicaria o diagnóstico. Depois, sentir-se-ia envergonhado em dizer que estava assim por causa de um quadro do qual ele não conseguia se livrar. Era ridícula aquela situação.
Mas agora tinha certeza. Tudo começara depois que botara os olhos naquela pintura. Concluiu que precisava se livrar dela de qualquer jeito. Telefonou para o escritório. Claro. Seria fácil. Porque não pensara nisso antes? Bastava pedir para a secretária dar um fim nela. Se ele não estivesse presente, não seria presa daqueles sentimentos desencontrados e avassaladores que sempre o acometiam quando pensava em tomar essa atitude.
Era já tarde, quando saiu do consultório do médico. A secretária já tinha ido embora. “Tenho que fazer isso eu mesmo”, pensou, e não poderia deixar para amanhã.
“É ridículo ser dominado por um quadro”, argumentou para si mesmo, enquanto o elevador subia até o oitavo andar, onde ficava o seu escritório.
Hesitou ao girar a chave na fechadura da porta do escritório. Sua testa já começava a transpirar de novo. Sentia medo e ansiedade ao mesmo tempo. “Tenho que fazer isso”, insistiu consigo mesmo. “É ridículo ter medo de um quadro”, repetiu para si mesmo.
Quando acendeu as luzes da sala e olhou para a pintura logo percebeu que alguma coisa mudara nele. Na cadeira vazia havia alguma coisa que a ocultava quase que totalmente. Parecia uma sombra, uma formação meio fantasmagórica que se assemelhava à uma figura humana, porém não tão nítida que pudesse ser identificada como tal.
“Isso não estava aí antes”, murmurou para si mesmo. E então se aproximou mais para ver se conseguia identificar a estranha figura que, de longe, se parecia com uma forma hu-mana, sentada na cadeira anteriormente vazia.
Foi então que ele viu o nome assinado no canto do quadro. Nunca se preocupara em procurar saber o nome do pintor. Sabia que os pintores costumam assinar os seus quadros. Mas a assinatura, naquela tela, era quase imperceptível. Um pequenino rabisco de tinta no lado esquerdo inferior do quadro. Quase não dava para ler. Intrigado, pegou uma pequena lanterna que ele guardava na gaveta da escrivaninha e aproximou-se mais do quadro, até quase encostar o nariz nele.
Quando leu o nome do pintor seu coração se contraiu como se uma mão de ferro o tivesse esmagando. A dor foi instantânea e lancinante. Sentiu cheiro de tinta e solventes. Então veio de novo a vertigem, o esvaziamento e a voragem. Sua mente derramou-se pela corredeira como uma canoa sem controle nem direção. Atravessou rios e montanhas. Pântanos e desertos, nuvens e florestas. Embrenhou-se por vales e charne-cas, subiu ao mais alto dos picos e desceu ao mais profundo dos abismos do oceano. Sóis explodiram em sua mente e galáxias fugidias como fogos de artifício levaram embora sua mente para um vazio cósmico sem medida nem duração. Sentiu-se atirado numa cachoeira cuja queda lhe pareceu que jamais ter-minaria. Seu último grito parou no pomo de Adão saliente; sua última sensibilidade estampou-se na face retorcida e hirta, a última imagem ficou gravada nos olhos desmesuradamente abertos, que pareciam ter visto coisas simplesmente aterradoras.
Sua secretária encontrou-o no chão, pela manhã, morto.
Um enfarto agudo, diagnosticou o médico que fora chamado para vê-lo. Era o mesmo médico, seu amigo, com quem ele havia se consultado alguns dias atrás. As feições retorcidas, o pomo de Adão intumescido e os olhos esbugalhados indica-vam que o colapso fora, realmente, violento.
Ao fechar os olhos do amigo morto, o médico viu neles o reflexo do quadro. Não tinha prestado atenção nele até aquele momento. Olhou-o de relance e sentiu uma estranha sensação de desgosto, quase repulsa. No quadro, uma mulher de rosto anguloso e queixo saliente, vestida à moda antiga, estava sentada numa cadeira de espaldar alto, com um gato no colo. Tinha um enigmático sorriso nos lábios e um estranho brilho nos olhos. Ao seu lado, em outra cadeira do mesmo tipo, um ho-mem, também vestido à moda antiga, estava sentado, segurando uma pequena lanterna. Tinha uma face lívida e olhos desmesuradamente abertos, como se tivesse presenciado algo muito assustador.
─ Cá entre nós, o seu patrão tinha um péssimo gosto para pinturas ─ disse o médico para a secretária.
Ela não respondeu. Lívida como um cadáver, estava o-lhando fixamente para o quadro. Tinha certeza que aquela cadeira estava vazia quando o quadro foi pendurado ali. Mas agora havia um homem sentado nela. Embora vestido com roupas de época e com aquela expressão de horror nos olhos esbugalhados, não havia dúvida. Aquele homem era mesmo o seu patrão. E o nome do pintor daquele quadro também era o dele.
Nos olhos aterrorizados e nos lábios trêmulos do homem sentado na cadeira anteriormente vazia ela percebeu um agonizante pedido de socorro. O médico mal teve tempo de ampará-la. Ela havia desmaiado.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 01/04/2011
Alterado em 04/04/2011