João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


MEDO DE AVIÃO

Se há alguma coisa que me assusta mais do que fazer tratamento de canal dentário é viajar de avião. O problema de tratar canal dentário é uma questão de imagem sonora. A gente fica com aquele barulho do motorzinho na cabeça e a dor já começa a ser sentida antes mesmo de sentarmos na cadeira. É claro que hoje existem técnicas modernas que eliminam todos esses antigos constrangimentos que sentíamos num tratamento de canal, mas quem já passou por antigas experiências nesse sentido nunca esquece o barulho do tal motorzinho. É uma âncora poderosa.
É a mesma coisa com o avião. Em meu trabalho tenho que viajar muito e usar esse meio de transporte regularmente. Não me consolam as estatísticas que mostram que o avião é o meio de transporte mais seguro que há. Que menos de 0,0001 dos aparelhos que levantam vôo apresentam qualquer problema. O que fica, em minha cabeça, são os grandes acidentes que acontecem.
Viajo muito de avião, mas a maioria das lembranças que tenho dessas viagens é o constrangimento que geralmente sinto. É como se eu estivesse viajando num rabecão, com destino á minha última morada. A toda hora corro para o banheiro. As aeromoças me perguntam se estou passando mal. Com um riso amarelo sempre digo que é o estômago. Não é. Sãos os intestinos.
Viagens longas, especialmente, são um tormento. No ano passado viajei para a Austrália. Fui lá para visitar uma filha que está morando em Sidney e aproveitar para divulgar um dos meus livros que estava sendo distribuído na comunidade brasileira daquela cidade. Sidney tem uma comunidade brasileira muito grande. Passei mais de vinte horas no avião.Uma boa parte delas no banheiro. Estava esperando a hora que alguém viesse me cobrar aluguel por isso.
Quando estou num avião não consigo dormir. Parece-me que se o fizesse acordaria para a morte. Acordar para a morte é um pleonasmo metalinguístico do mesmo tipo que sair para fora, entrar para dentro, subir para cima, etc. Nossos vícios de linguagem são praticados de forma tão inconsciente quanto os de comportamento.
Sabemos que está errado mas fazemos assim mesmo.

Voltando ao avião, o fato é quando subo as escadas de um deles e sento-me na poltrona, penso que o Karyl Chessman deve ter sentido a mesma coisa quando foi instalado em sua cadeira na penitenciária de San Kentin para tomar o seu hot squat. Fico tentando adivinhar quando o piloto vai anunciar que alguma coisa está errada e ele terá que efetuar um pouso de emergência. Conto os minutos, olho para o rosto das comissárias, sempre sérias, sempre impenetráveis, e procuro adivinhar naquelas posturas impassíveis, se algo vai mal.
Ai começo a recensear a minha vida. Que pecados imperdoáveis terei cometido? Que dirão de mim os meus amigos? Serei considerado um bom pai e um bom marido? Meu saldo no banco será suficiente para cobrir as despesas do meu funeral? Minha mulher terá dificuldades para receber o meu seguro?
Imagino-me estirado em uma maca, com o peito dilacerado e a cabeça esmagada. Bombeiros, policiais, paramédicos, gente fardada e uniformizada, de todos os lados, mexem nos meus bolsos, reviram meus papéis, folheiam meus documentos, pegam o dinheiro que retirei do caixa eletrônico antes de embarcar. Depois limpinho, barbeado, vestido com um terno preto, camisa branca imaculadamente passada e engomada, gravata vermelha e sapatos cuidadosamente engraxados, como se estivesse indo para um encontro com o presidente, eis-me deitado, imóvel dentro de um caixão, cercado de flores por todos os lados. Contemplo minha derradeira imobilidade como se estivesse me vendo num espelho. Tenho vontade de piscar um olho, mas refuto imediatamente o gesto por causa da reboliço que causaria no salão, onde um monte de gente, com caras sérias e olhares estudadamente contristados, olham alternadamente para mim e para minha viúva, e para as guirlandas e coroas que enfeitam todas as paredes do salão. Pelo número delas eu vejo quando eu era querido, ou pelo menos, conhecido. Não é grande coisa.

Sempre que preciso pegar um avião passo antes pelo meu escritório. Despeço-me de todos como se não fosse voltar a vê-los. Ninguém estranha mais esse meu mórbido comportamento. Nas mãos que aperto, nos olhos que perscruto, nos lábios que me sorriem com sarcasmo ou com ironia, só vejo a dissimulação das pessoas que pensam que sou um debochado ou um louco. Ou então a piedade de quem sabe que eu estou indo irremediavelmente para a morte.
Antigamente as refeições nas aeronaves costumavam ser boas. Eu gostava mais do que hoje. Pelo menos disfarçava o medo comendo bem. Comia-se boa comida e bebia-se bom vinho. Eu costumava pensar que era a última refeição do condenado. “Peça o quiser. O senhor tem direito,” parecia-me ouvir a aeromoça dizendo, com aquele sorriso sarcástico. “ Me dê um pára-quedas e abra a porta de emergência”, eu tinha a vontade de dizer. E havia aquela música ambiente. Musica calma, orquestrada, que sempre me trazia à mente aquele filme do Milos Forman, "Amadeus", com a imagem de Mozart, derretendo-se em febre, ditando para o Salieri a partitura do seu Requiém.
Tento relaxar buscando na face dos outros passageiros algum sinal de que tudo é só uma bobagem da minha cabeça. Não vou morrer. Mas até o cara de óculos que parece ler, calmamente, o seu jornal, e a moça bonita que folheia a sua revista como se estivesse no salão de espera de um cabeleireiro, me dão a impressão que praticam seus atos inúteis sabendo que tudo que fazem são apenas manobras dilatórias, feitas para enganar o medo.
Fecho os olhos por um instante. Vejo-me correndo para pegar o metrô na Praça da Sé. Um ônibus passa derramando gente por todas as suas saídas. Um sujeito bigodudo, com cara de português, está num dos cantos da praça tocando um realejo. Espanto-me pelo fato de existir alguém que ainda toque realejo. Um periquito tira um cartãozinho para uma moça. “Casar-te-ás em breve e terás três filhos”, diz o cartão. Que será que o periquito tiraria para mim? Vais morrer hoje, talvez? Não posso evitar que o meu cérebro produza tais pensamentos. Um menino engraxa os sapatos de um cara sentado na cadeira, folheando uma revista pornográfica. Escuto ao longe um solo de piano em ré menor. É Mozart. E eu nunca aprendi a tocar piano. Ando apressado pela rua, misturado a uma multidão sem rosto. Empurro os que caminham lentamente. Tenho pressa. Sou empurrado por gente que é mais rápida que eu. Não olho as vitrinas, não pergunto preços, não paro para um café. Tenho pressa. Marcas famosas piscam e repiscam num painel luminoso. Tenho pressa.
Avião é para quem está realmente com pressa. É como o telefone, a internet e o e-mail. Queria dormir um pouco, mas tenho que fazer um monte de coisas antes de morrer. Preciso escrever uma carta, mas logo me dou conta de quanto isso se tornou antiquado. Ninguém escreve mais cartas hoje em dia. É mais fácil mandar um correio eletrônico, um torpedo, twitar, sei lá. Preciso telefonar para minha mulher dizendo que não irei almoçar. Tenho que passar no correio, comprar um jornal, desmarcar a consulta com o gastro. Não é o estômago que me constrange, são os intestinos. Tenho pressa. Vou morrer. “ Você tem comprimidos para dor de cabeça?”, pergunto para a aeromoça.
A voz do comandante anuncia que dentro de alguns minutos estaremos aterrisando no aeroporto de ...Gozado. Não existe o verbo aterrizar no dicionário... Fomos os brasileiros que o inventamos. Os portugueses dizem aterrar mesmo. E aterrar é cobrir com terra. Não adianta, vou morrer. 

"Apertem os cintos e não fumem. Mantenham os assentos em posição vertical", diz a vóz que já parece vir do além. Abro o postigo da janelinha. As casas passam velozes lá fora. O frio na barriga. O baque das rodas do trem de pouso anunciando, da forma mais sensível possível, que estamos de novo no chão. Enxugo o suor da testa e com o lenço na boca procuro evitar que o coração escape por ela. O avião vai explodir.

Todo mundo já saiu. Eu sou o último. Preciso de tempo para recuperar a respiração e a normalidade dos batimentos cardíacos. Ao olhar para o mundo lá fora me lembro que ainda há pouco eu sentia que estava viajando em um rabecão. Agora parece que estou saindo do útero da minha mãe. Ao pisar no chão do aeroporto e respirar a golfada do ar quente que vem das turbinas do avião, a minha impressão é a de que acabo de reencarnar.

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 13/05/2011
Alterado em 22/06/2011


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