João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos




Quanto a José, nosso bom mestre carpinteiro tem um bom trecho de caminho a cumprir ainda nesta história. Iremos agora encontrá-lo em sua carpintaria exercendo o ofício que aprendeu de seu pai. Com a quase metade de século que carrega nos lombos, ele mostra na boca murcha, onde os últimos dentes cariados e negros resistem à inevitável queda, a vida difícil e sem perspectiva que leva, ali naquela aldeia montanhosa da Galiléia.
Sua luta é pela refeição do dia, cada vez mais minguada e difícil de obter, em razão da calamitosa situação que a rebelião de Judas Galileu provocara. As caravanas, com medo dos guerrilheiros e dos salteadores não passavam mais por ali. Buscavam outras rotas para fugir dos constantes ataques dos patriotas em busca de recursos para sustentar a guerrilha, ou dos bandidos que aproveitavam a ocasião para praticar seus crimes. As encomendas de cangas para bois, estrados para acomodar mercadorias nos lombos dos camelos, rodas para carroça, arados, móveis e outros utensílios domésticos, que os clientes da sua carpintaria geralmente encomendavam, rarearam.
A construção civil paralisada, o comércio bloqueado, todas as economias do estado mobilizadas para a repressão à guerrilha, tudo isso provocou uma terrível recessão econômica em toda a Palestina. Tais conjunturas não constituem privilégio das sociedades modernas. Esse é um quadro que pode muito bem ser colocado na parede da mente febril de Nietszche, o filósofo do eterno retorno, pois na sua visão os fatos se repetem infinitamente, tais quais as vicissitudes que enxergamos nesta história. Talvez as coisas sejam realmente assim, uma eterna repetição do mesmo evento, numa infinidade de universos paralelos, que se refletem, uns aos outros, como numa interminável fila de espelhos. Pois assim tem sido a difícil vida do carpinteiro José e sua família nestes anos todos em Nazaré, e dessa forma é que vemos a vida de todos os humildes artífices da região nos tempos anteriores a ele. Na mesma conformação continuou sendo depois dele e não se modificaram muito até agora, nem lá, nem em outros cantos do mundo, onde gente como ele teima em sobreviver.
Apesar disso, porém, seu coração está em paz. Desde o nascimento do menino, nunca mais o fariseu Jacó voltara a procurá-lo, nem recebera qualquer outro sinal de interesse por parte daquela gente. Cuidava que ele nem soubesse para onde teria ido. Nem Maria, cuja atitude tinha sido de pertinaz resistência quando ele quis dar fim aos presentes que o fariseu e seus acompanhantes – em especial aquele jovem que ele pensava ser o pai do menino – haviam dado ao garoto por ocasião do seu nascimento, jamais tocara no assunto novamente, embora ele nunca mais tivesse visto os tais mimos, que ela escondera em local escuso. Ele, por razões de conveniência sentimental, para salvaguardar seus brios de varão, também nunca perguntara o que fora feito dos tais presentes.
Era melhor assim. Com o tempo, José começa a esquecer o assunto e até se surpreende, um dia, ao perceber que sente afeto pelo garoto, tanto quanto pelos próprios filhos naturais. Maria colaborou muito para que isso acontecesse. Apesar da juventude revelou-se excelente esposa, companheira e mãe para os filhos que ele trouxe do seu casamento anterior, e para os que teve com ela. Com vinte e oito anos na data deste registro, o corpo que pariu quatro filhos já perdeu algo do vigor da juventude, exigido que foi nos partos sem acompanhamento pré-natal, nem assistência de obstetra. E nesses anos de muita labuta com a criação das crianças, os cuidados com os enteados, os afazeres da casa e as tarefas em geral, que cabem a uma dona de casa, nesses ermos e tempos em que ainda não se formaram pediatras, nem se construíram os lactários, ou sequer se inventaram as máquinas que fazem o serviço doméstico, ou os institutos de beleza e os cosméticos que recuperam o viço perdido em tão inglória faina, a sua juventude se esvaiu com a rapidez com que o dinheiro escorre pelos dedos dos pródigos.
É verdade que ainda conserva o brilho nos olhos muito negros e na basta cabeleira da mesma cor, embora alguns dos grossos e longos fios que se derramam pelas costas e descem até a cintura já dêem as primeiras mostras de que logo mudarão de matizes. Fora disso, são apenas algumas rugas em volta dos lábios, e alguns quase imperceptíveis sulcos na testa, que mostram o quanto a vida é dura nessa terra e como o calor e o frio inclementes fazem seus habitantes parecerem mais idosos do que realmente são.
Pupilas negras de olhar doce, sorriso de quem purgou as dores e sossegou as cismas, Maria cria os filhos, faz as tarefas rotineiras da casa, vai à sinagoga, onde fica no local convencionado para as mulheres, ouve as leituras das escrituras sagradas, e se medita no que ouve, não dá mostras dessa atividade psíquica nas posturas que assume. No mais, honra seu marido e jamais falou a ninguém do acontecimento ocorrido há quase treze anos atrás, que resultou naquele menino, que com doze anos de idade agora, já tem quase o tamanho do meio-irmão Judas, que está com dezessete. E é tão esperto e curioso que nem ela, nem José, conseguem satisfazê-lo em sua ânsia por respostas.
Diga-se, por ser importante, que Maria vê no menino o retrato do pai, aquele fariseu bem apessoado que um dia apareceu do nada, como um anjo, na porta da casinha onde habitava e pediu água para beber. Na testa alta e nos cabelos negros, lisos e compridos, que nunca viram tesoura; no queixo saliente e nos olhos claros, na postura um tanto empertigada e altaneira, bem diferente dos irmãos e dos adolescentes da aldeia, tudo está a denunciar a sua origem diversa. Aos que já notaram a desemelhança que ele ostenta em relação aos demais membros da famí-lia, e foram deseducados o suficiente para dizê-lo a José ou a Maria, a resposta é sempre a mesma: que ele puxou ao avô. Como ninguém conhece o tal avô, tudo passa por verdadeiro, e nós sabemos que não há nenhuma impropriedade nisso.
Ao olhar para o menino, Maria relembra tudo o que aconteceu, e seu coração se aperta ao pensar no que poderia ter acontecido. Em silêncio agradece ao Deus de Israel pela graça de ter sobrevivido ao evento. A lembrança de Judas Galileu ainda é bem viva em sua mente e em seu corpo, pois a sensação da realização do mais profundo desejo da alma não se apaga com o tempo; apenas é mitigada pelos acontecimentos que sobrevêm, pelas necessidades que precisam ser atendidas, por outros desejos que nascem como rebentos da mesma árvore, que não cessa de gerá-los para fazer com que ela se sinta viva. Mas é graças a essa geração espontânea dos frutos da ânsia por nós mesmos que a vida se nutre e nos dá força para carregá-la pelo tempo que nos é concedido viver. Não fosse essa maravilhosa faculdade do nosso sistema neurológico – essa capacidade inata de transformar em lembranças toleráveis mesmo as mais dolorosas experiências –, certamente não resistiríamos às nossas tragédias pessoais. Mas ainda bem que essa faculdade existe e ela é como um filtro que vai depurando, ao longo do tempo, todos os nossos sentimentos. Um dia descobrimos que tudo aquilo que nos angustiava, ou nos exultava, se transformou em amenas sensações de melancolia, quando não numa vaga saudade. E então nos reconciliamos com o passado e aprendemos a tolerar as nossas dores, como se elas fossem hóspedes incômodas, mas necessárias presenças em nossas vidas.

È assim que Maria relembra os acontecimentos que marcaram sua vida para sempre. Não fosse o clamor da carne, o frêmito da paixão, a recordação do prazer que experimentara naquele momento, ainda que com ele viesse também a lembrança da dor, e até o medo que se juntara a ela depois, lembrar-se-ia de Judas Galileu como se ele fosse um anjo que a visitara em uma tarde e trouxera a semente de um filho, tal como a virgem da profecia, que um dia deveria dar à luz ao Messias de Israel. Ela conhece essas promessas, ainda que às mulheres da terra não sejam ensinadas tais coisas, pois as lições nas sinagogas são dadas em separado, para as meninas em uma parte da escola, para os meninos em outra parte, e os ensinamentos não são os mesmos. Mas quanto à virgem que deveria parir o Messias, não há donzela em Israel que não sonhe com o privilégio. A única coisa que não cabe bem nessa história – pelo menos para a agora jovem senhora –, é como isso será feito. Pois afirma-se que isso acontecerá através de mulher intocada, e para conceber, mesmo na sua ingenuidade, ela sabe que a natureza fez as mulheres necessitadas da semente de um homem. Outras formas de concep-ção ela não conhece e ainda que a profecia da virgem fosse de domínio público, Maria sabe pouco a esse respeito, que de ordinário não é permitido às mulheres compartilhar das conversas nas sinagogas, onde se discute o significado dessa e de outras metáforas usadas pelas escrituras sagradas do seu povo, para esconder do vulgo a verdade das coisas e os verdadeiros desígnios de Jeová. Não soubesse o quão carnal tinha sido a concepção do seu filho, não tivesse sentido a virilidade do jovem fariseu rasgando o seu corpo, e não tivesse visto as tintas do sangue virginal a manchar os panos da enxerga sobre as quais o conúbio se deu, poderia pensar que nela se cumprira a profecia. Pois o moço aparecera do nada, era belo como um anjo e a coisa toda acontecera numa atmosfera de encantamento e mistério que ela mesma, até agora, já adulta e matrona de uma família de seis filhos, quatro próprios e dois de criação, não entendera bem como se envolvera nessa história.
Porque permitira que aquele desconhecido violasse a flor do seu corpo, e como tudo agora lhe parecia até normal e mais que isso, como algo que teria que acontecer? Seria, quem sabe, o destino, se o destino não se chamasse acaso, contexto, desejo, reclamos da carne, exigência hormonal, etc. – que tantos nomes podemos dar aos motivos das nossas paixões, e quanto mais desassisados são, mais títulos para esses motivos podemos encontrar –, o autor daquele sucesso? E mais pensava, menos entendia e muito mais sentia, pois sentir e compreender são como energias que se contrastam nos circuitos da nossa mente como números positivos e negativos de sinais equivalentes.
Assim é que aos poucos e não sem muitas dúvidas, Maria começa a acostumar-se á idéia de que tudo aquilo não havia acontecido somente por efeitos dos sonhos de uma donzela e dos hormônios em ebulição, que num momento de significativa coincidência encontrou parceiro em igual condição e disposição, mas por razões outras que excediam seu entendimento. Se aconteceu, não foi por acaso que aconteceu. Nada ocorre sem um propósito a justificar o acontecimento.




João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/05/2011
Alterado em 17/05/2011


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