Homens em um local, mulheres em outro; judeus da terra reunidos em grupos aqui e ali, falando em aramaico ou hebreu; judeus da diáspora que, além das línguas maternas, falam também grego, latim, siríaco e outros idiomas, pois em todas as partes do império se encontram os filhos de Israel. E se alguns deles se esqueceram da língua materna, o laço sagrado que os une, a religião, esse eles nunca desatam, seja por medidas de tempo ou por impedimentos de espaço.
O Templo de Jerusalém é o grande catalisador dos anseios d’alma dos filhos de Israel. Para ele convergem todos os que professam a religião de Moisés, sejam eles israelitas de sangue ou gentios convertidos à crença judaica. Mas somente aos filhos do sangue de Abraão se concede entrada no interior do majestoso Templo que Herodes, o Grande, construiu sobre a rocha do Domo, para honrar o Deus dos judeus e ficar de bem com seu povo.
Esse Templo, segundo se diz, é muito maior e mais suntuoso do que aquele que Salomão construiu mil anos atrás e supera em tamanho e luxo a reconstrução que dele fizera o rabino Zorobabel, cerca de quinhentos anos depois, quando da repatriação da Babilônia. E agora, mais do que nunca, ele continua a ser o centro da alma judaica, o mais caro símbolo da nação, o orgulho e a vida dessa gente que venera esse local como nenhum outro sobre a terra, nem mesmo as suas próprias casas.
Embora fosse mestiço e tenha sido criado na cultura helênica, o falecido Herodes também tinha sangue judeu, e a construção de um grande Templo para honrar o Deus dos seus súditos não foi mais que uma obrigação que ele cumpriu. Isso ele fez por conta do reino que lhe caiu no colo, como pagamento pela ajuda que deu a Marco Antonio e Cleópatra do Egito na tarefa de pacificar a região, ajudando os romanos a confirmar seu domínio nessa sempre conturbada parte do mundo. Em resposta a essa ajuda, Otávio Augusto, depois de bater o casal Marco Antonio e Cleópatra em batalha e tornar-se imperador de todos os romanos o confirmou no trono da Judéia, e de quebra ainda lhe deu para governar todo o restante território da Palestina. Então, sob a proteção e os olhares fiscalizadores de Roma, Herodes tornou-se rei de todos os habitantes da Palestina.
Essa era a política de Roma. Conquistava os territórios com força armada, mas evitava governá-los diretamente. Sempre preferia alianças com os potentados da própria terra, fabricando títeres que lhes fornecessem riqueza em forma de impostos e mantivessem a paz nos territórios conquistados. Herodes se prestou bem a esse papel. Judeu helenizado que era, preferia muito mais a liberdade de consciência e de atitudes que lhe proporcionava a religião do Olimpo e a franca libertinagem que a cultura greco-latina lhe permitia, do que os rígidos ordenamentos da Torá, a austera disciplina exigida dos judeus. Entre Zeus e Jeová, entre Olímpia e Jerusalém, certamente o astuto monarca asmoneu haveria de servir melhor ao rei do Olimpo do que ao Senhor de Israel e teria preferido sacrificar no santuário grego ao invés de fazê-lo no altar do Santo dos Santos.
Mas os seus súditos eram israelitas zelosos e tradicionais e a grande maioria se guiava pelos austeros ordenamentos que lhes dera Moisés, a mando de Jeová. Dessa forma Herodes sabia muito bem o quanto esse povo era suscetível nessas coisas de religião. Então, como uma forma de comprar a consciência dos judeus ele se propôs a construir aquela magnífica obra que todo aquele que vai a Jerusalém, nestes tempos dos quais nos ocupamos, contempla, extasiado, sobre a grande Rocha do Domo.
Destarte, Herodes reconstruiu o Templo de Jeová, que havia sido destruído pelos soldados de Pompeu, na época da ocupação romana da Palestina, pouco antes dele se tornar rei. Isso lhe granjeou muito apoio político, principalmente entre a classe sacerdotal, especialmente os saduceus, a quem ele dispensou proteção e benemerências. Mas que não se pense que o povo judeu, como um todo, caiu nesse engodo com facilidade. Aceitou sim, de boa mente, a reconstrução do seu Templo e até saudou o governo de Herodes com certa tolerância. Afinal, ele trouxe estabilidade econômica, ainda que apenas para algumas classes, e a segurança necessária para que os negócios prosperassem, mas o seu reinado não foi exatamente uma era de paz e tranqüilidade, nem a convivência com os seus nervosos súditos foi sempre tranqüila e isenta de sobressaltos.
Até porque o desconfiado monarca asmoneu não era de brincadeira. Oposição não tolerava nem dos próprios parentes. Milhares de cabeças rolaram durante o seu longo reinado. Mandava decapitar seus adversários, fossem eles irmãos, sobrinhos, esposas e até filhos, ao menor sinal de conspiração. Manteve-se no poder por cerca de quarenta anos, pelo terror, pela corrupção, pelo suborno, pela intriga – e por que não reconhecer também? – por uma grande habilidade política e uma comprovada capacidade administrativa. Durante seu governo as terras palestinas conheceram um dos seus mais prósperos períodos de desenvolvimento econômico e cultural. O comércio e a indústria foram incentivados, grandes obras foram construídas, Jerusalém se tornou um importante centro político e cultural. Isso, aliado á uma relativa liberdade política –, já que Roma não intervinha diretamente nos negócios do reino –, fazia parecer a algumas classes da sociedade judaica que os anos áureos de Davi e Salomão, estavam de volta. Daí alguns judeus – da seita dos saduceus principalmente – chegarem a considerar Herodes como o verdadeiro Messias que havia de vir; e por conseqüência também, o epíteto que lhe deram: “O Grande”.
Não obstante, teve que enfrentar muitas rebeliões por causa da impiedade e do desrespeito com que, no princípio do seu governo, principalmente, tratou a religião dos seus súditos judeus. Uma delas aconteceu quando ele pretendeu colocar nos pórticos do Templo de Jerusalém umas efígies de águia, todas fundidas em fino ouro, para agradar seus aliados romanos. A revolta dos judeus foi imediata e feroz. Armados de martelos, pás e picaretas, eles tomaram de assalto o Templo, enfrentaram as tropas que Herodes mandou contra eles e botaram abaixo as tais estátuas. Muitos foram mortos naquele dia e as masmorras ficaram lotadas com os rebeldes que os soldados conseguiram prender. Mas com essa rebelião Herodes viu que não seria fácil escamotear o sentimento do povo judeu e assim, durante o resto do seu reinado procurou tratar com cuidado os assuntos relacionados com a religião. Destarte, conservou o quanto pode a tradição e no seu governo o grande Templo de Jerusalém se manteve como santuário inviolado da fé judaica.
Jerusalém era a cidade santuário dos judeus, mas estes agora não habitavam somente nas terras da Judéia e nos territórios mais próximos da Palestina, mas praticamente, por todos os cantos do império romano se encontravam espalhados os filhos de Israel. E muito maior era a população judaica estrangeira do que a dos naturais do país. Nos dias de festa, especialmente para as comemorações do Pessach, a Páscoa judaica, eles vinham todos à Jerusalém, da mesma forma como os muçulmanos vão à Meca, para a comemoração da Hégira; e com eles acorria uma multidão de estrangeiros, de todas as raças, atraída pela curiosidade ou pela oportunidade, pois tais festividades, ontem como hoje, a par do apelo espiritual que as motiva, sempre são oportunidades para bons negócios.
Fora do imponente edifício, os estrangeiros, os comerciantes e os turistas curiosos se aboletam na imensa praça que fica em frente ao grande pórtico principal, chamada Átrio dos Gentios, pois aos não israelitas, de sangue primeiro e de crença depois, é somente até ali que lhes é permitido chegar. Aos estrangeiros é vedado o ingresso no interior do templo, e no Altar Mor, o Santo dos Santos, somente o Sumo Sacerdote pode adentrar.
O Átrio dos Gentios, nessas ocasiões, transforma-se em uma enorme feira, onde se pode encontrar de tudo. Há barracas de cambistas para fazer operações cambiais, já que a oferta no Templo deve ser feita na moeda local; há bancas que vendem todo tipo de mercadorias, desde tecidos finos às mais diversas especiarias. Ali podem ser encontrados artigos de cutelaria, obras de cobre e bronze de artística lavra, cerâmicas de belíssimo artesanato, tapetes, lâmpadas para azeite, incensos, filactérios – essas belas caixinhas de couro, trabalhadas por hábeis artesãos, que contém artigos da Torá para serem cozidos nas barras dos vestidos – ; há lembranças benzidas pelos sacerdotes, água colhida das fontes milagrosas, souvenirs de todos os tipos, menos com representação de figuras humanas ou de animais, que estas a lei de Jeová proíbe.
Enfim, tudo ali é comercializado livremente, como se mercado fosse aquela praça, e talvez nenhum dos mercados de Jerusalém, nem o da cidade baixa ou o da cidade alta, sejam tão ricamente providos de mercadorias como essa feira que se im-provisa no Átrio dos Gentios por ocasião da festa do Pessash.
O que abunda, entretanto, são as barracas que vendem animais para o sacrifício. São centenas. Vendem-se carneiros, cabritos, bodes, pombos, enfim, todo tipo de animal ou ave aceita por Jeová no altar dos sacrifícios pode ser adquirido ali a pre-ços variados, conforme a cara e a bolsa do freguês, ou o tamanho do pecado que ele tem para purgar, ou ainda, do benefício que espera obter do austero Deus dos judeus.
Todos os filhos de Israel, nessa ocasião, devem fazer uma oferta de sangue a Jeová. Quem não pode dispor de um carneiro, ou um cabrito, nas condições exigidas pela lei, deve, pelo menos, sacrificar um par de pombos, como oferenda pela Passagem do Senhor, pois é isso que se festeja no Pessash. Essa palavra, que significa passagem, relembra a última noite vivida pelos antepassados hebreus no cativeiro do Egito. Por que foi à meia-noite do dia anterior em que os israelitas seriam libertados daquela servidão que Abbadon, o Anjo Exterminador, a mando de Jeová, desceu em fúria sobre o país dos faraós e feriu de morte os primogênitos daquele povo, como vingança pela escravidão a que submetiam os seus escolhidos. E desde aquela noite memorável, os filhos de Israel nunca deixaram de comemorar esse que foi o mais marcante de todos os acontecimentos de sua história.
No décimo dia do primeiro mês – o mês de Nisan – o cordeiro pascal deve ser sacrificado. E depois suas carnes assadas e compartilhadas entre os membros da família, ou vizinhos, numa cerimônia de mística significação. As comemorações e as oferendas duram sete dias, no decorrer dos quais a nenhum judeu é permitido executar qualquer trabalho, exceto os que se referem ao preparo da alimentação e à realização dos rituais.
O cordeiro pascal deve ser macho e sem nenhuma mancha na pele. Isso, pelo menos, é o que se exigia quando a tradição foi instituída. Mas, nos dias de que aqui se tratam muita coisa já mudou. Afinal, mais de um milênio já se passou e nem as mais venerandas tradições se mantém inalteradas por tanto tempo. Assim, de quem não pode oferecer um cordeiro de pele imaculada, pois tais prendas são muito caras, o Deus de Israel recebe como igual preço o sangue de determinados animais, tais como um par de rolas, ou pombas, ou ainda cabritos ou bodes, obser-vadas certas condições. Afinal de contas, mesmo sendo Jeová tão austero e zeloso nessas coisas de sacrifício, Ele sabe que seu povo é pobre, de alguma forma precisa viver, e o comércio ainda é a maneira mais prática de se ganhar a vida. Talvez por isso Ele permita esse tráfico profano de vítimas para o sacrifício. Assim, não há nada a estranhar que a tradição tenha sido subvertida, pois quando a necessidade da sobrevivência se sobrepõe á espiritualidade do sacramento, a primeira tem que ser atendida com prioridade. Não importa que a mística contida no símbolo acabe se confundindo com barbarismo e perca o verdadeiro significado. Por isso as barracas que vendem cordeiros, bodes, cabritos e pombos para as oferendas, que constituem a maior parte desse comércio que se armou em frente ao Templo, em nada revela o caráter sacrossanto desse local. É apenas uma feira, onde a vida dos pobres animais é vendida por preços que variam de acordo com a cara do freguês, para servir de moeda para comprar o beneplácito da Divindade. O sangue dessas infelizes bestas – se a elas é que deve ser dado esse predicado e não aos que delas se servem como moeda de troca para comprar o perdão para os seus pecados –, vertido nos altares do sacrifício, derrama-se pelas calhas abertas em suas bases, escorre por valetas cavadas nas ruas e atravessa os muros da cidade, inundando os campos, fertilizando o solo e abençoando as plantações. Os agricultores mais prósperos compram-no como adubo para seus hortos e dizem ser esse o mais eficiente dos fertilizantes. Por isso são muitos os hacéldamas existentes nas cercanias de Jerusalém, que assim são chamados não só as plantações dessa forma adubadas, mas também os cemitérios destinados ao sepultamento dos estrangeiros que falecem em Jerusalém.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 18/05/2011
Alterado em 18/05/2011