Os gnósticos modernos
Atualmente um grupo de cientistas, oriundo principalmente da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, cuida de revitalizar o pensamento gnóstico. Esse grupo, onde pontificam especialmente físicos, astrônomos, psicológos e teólogos, trabalha com os conceitos gnósticos associando-os aos modernos conhecimentos científicos. Assim, os eons passaram a ser holons, grandes subunidades, domínios totalizantes, etc, ; os dramas cósmicos, como o de Sofia, os embates entre luz e trevas são jogos cósmicos, teia de relações, etc, simulados nos computadores. Também os conceitos trabalhados na grande tradição da Cabala são estudados em conexão com as grandes leis naturais que conformam e formatam universo físico e regula a ocorrência dos seus fenômenos. Assim, as séforas da Árvore da Vida são tomadas como analogias das leis naturais, como o magnetismo, a gravidade, a relatividade, a reciprocidade,etc.
Para esses novos gnósticos, Deus não está presente na história dos povos. Essa é uma nova maneira de desenvolver a mesma visão dos antigos filósofos panteístas e principalmente da religião dos Vedas. Para estes, Deus está em todos os seres e objetos mas estes não estão nele. Quer dizer, todas as coisas no universo contém essência divina, mas nada no mundo da matéria deve ser divinizado nem cultuado como divino.
Todavia, ao admitir a existência de um atributo divino nos seres e objetos, implicitamente os novos gnósticos aceitam que a história universal sofre o influxo da Vontade Divina, pois esta está presente na essência dos seres desde sua criação.
É evidente que não tem muito sentido hoje pensar que Deus interfere nas ações humanas na forma pensada pelos antigos hebreus, por exemplo, para quem o proprio Senhor lutava suas batalhas, ás vezes abrindo mares para que seus “eleitos” passassem, enquanto seus perseguidores se afogavam. Pensar assim é particularizar Deus, apossar-se dele como se ele fosse o Senhor de uma única parcela da humanidade e não dela toda. Imaginar um Deus capaz de preferências pessoais é humanizá-lo demais e esse erro os gnósticos jamais cometeriam.
Para a moderna Gnose, a história humana é a crônica das ações do homem em busca da felicidade, ou o que ele pensa ser a felicidade. Essas ações são motivadas pela informação que todos os seres portam em seus núcleos primordiais e que desenvolvem por interação. Daí cada ser se constituir num holom, movimentando-se em grandes subunidades, buscando a realização de um domínio totalizante. E é essa intensa movimentação do ser que cria uma teia de relações, assemelhada a um grande jogo cósmico, que vai formatando o universo. Saber como tudo isso se processa, para poder orientar esse jogo, é a função do espírito humano.
Assume-se, dessa maneira, a Gnose, simplesmente como uma necessidade de saber, sem limitar o conhecimento a um domínio restrito á esperança de salvação, isto é, o domínio da religião. A Gnose passa a ser um questionamento que busca a resposta para a pergunta que sempre ecoou na mente do homem desde o momento em que foi capaz de refletir: o que é o universo, de onde veio, para onde vai e porque?
É por isso que a Maçonaria moderna foi buscar na tradição da Gnose uma grande parte dos temas ritualísticos desenvolvidos em seus graus superiores. E isso não é sem razão. A Gnose é a única disciplina mental que combina, magistralmente, os caminhos da sensibilidade e da razão, na busca do conhecimento. Ela integra, ao mesmo tempo, os métodos da religião e da ciência.
A Gnose busca a revelação, a ciência quer o conhecimento. Ambas são condensações de um fenômeno energético que ocorre nos domínios mais sutis do psiquismo humano. A revelação pode ocorrer no curso de uma prece, de uma prática ritualística ou de um trabalho no laboratório, na oficina ou outro lugar qualquer onde o pensamento guie as mãos; já o conhecimento científico ocorre como soma de descobertas feitas sistemáticamente no decorrer de um processo de observação dos fenômenos. O que torna diferentes esses dois caminhos de evolução psiquica é a metodologia. Enquanto o cientista observa o fenômeno e descreve o que vê, procurando entender por que ele ocorre daquele modo, o gnóstico procura se colocar no interior do próprio fenômeno, como parte dele, para senti-lo, e dessa forma “ver, por dentro” a sua forma de ocorrência.
A ciência “vê” as coisas pelo lado de fora, a Gnose as “sente” pelo lado de dentro. Talvez esteja aí a razão do delírio gnóstico jamais ter sido convenientemente entendido pelos racionalistas, pois nunca foi fácil descrever sentimentos, da mesma forma com que se faz com fenômenos mecânicos. Se duas pessoas que compartilham o mesmo grau cultural e as mesmas referências simbólicas forem convidadas a descrever o processo pelo qual a água de uma chaleira se evapora, é possível que ofereçam uma descrição semelhante, e uma mesma conclusão do porquê isso acontece; porém, se lhes pedirmos que nos descrevam o que sentem em razão desse fenômeno, e os motivos do por que sentem dessa forma, dificilmente encontraremos identidade nas respostas e coincidência nas justificativas.
Na Arte Real estão presentes os dois caminhos. O caminho da espiritualização é aquele proposto pela Gnose. Ele se trilha através da prática iniciática, expressa nos rituais, nos símbolos e alegorias desenvolvidos em cada grau. Nele se aprende pela sensibilidade. O caminho do conhecimento racional é aquele que se condensa na própria proposta da Maçonaria: o aprimoramento do espírito, através do estudo das disciplinas morais que tornam o homem justo em seus julgamentos e perfeito em suas atitudes. Esse conhecimento, que se inscreve no domínio da moral, é obtido pela razão. Razão e sensibilidade podem e devem andar juntos. É a perfeita integração desses elementos que produz a verdadeira sabedoria.
O psiquismo humano, que é sua verdadeira “alma”, é um agente do comportamento cósmico. É nessa qualidade que ela deve participar do movimento do mundo e não como seu mero observador. A alma do estudioso, pela participação, torna-se sua razão, e nessa condição ela realmente ‘vê” o que acontece no interior das coisas, e essa visão é o verdadeiro “ saber”.
Esse método de conhecer o mundo, que é o método gnóstico, psicológico, no dizer de Ouspensky, é um método que integra razão e sensibilidade, ou se quisermos colocar isso de uma maneira mais sutil, é uma forma que mistura o esotérico e exotérico, fundindo os dois domínios num único e grande território de realidades possíveis de serem abarcadas pelo espírito humano. Se é verdade que espírito e matéria são uma realidade só, que ambos constituem uma unidade que se constrói mutuamente por interação de suas informações nucleares, então essa visão não é mero delírio metafísico.
Afinal de contas, toda religião tem como objetivo ligar a esfera do humano á esfera do divino. Por isso todas elas procuram desenvolver uma visão do mundo, um conhecimento interior que ilumina a alma do crente e o leva a algum tipo de iluminação. Nenhuma confissão religiosa, mesmo aquelas não deístas, como o Confucionismo, o Taoísmo, o Budismo etc., que trabalham esses caminhos através do exercício mental ou pela sensibilidade, dispensam esse objetivo final, que é a iluminação salvadora.
Não se deve confundir gnóstico com mágico, como o fez a Igreja medieval. Embora muitos gnósticos fossem adeptos do pensamento mágico, o gnosticismo se define pelo exercício do livre-pensamento, a recusa de qualquer dogma, o conhecimento deduzido das grandes leis da natureza, ainda que esse conhecimento seja interpretado de maneira religiosa. A Gnose cultua o saber pelo saber sem temores ou crenças sobrenaturais. Aliás, para os gnósticos modernos, o próprio sobrenatural é apenas uma superação de leis naturais.
Evidentemente, sua conotação como pensamento mágico é uma conseqüência natural da própria cultura na qual ela se desenvolveu, cultura essa mais voltada para a ciência do divino do que para as realidades da vida profana. O que os modernos gnósticos fazem é exatamente isso: mostrar a Gnose sobre um novo enfoque, agora que a inteligência humana conseguiu se livrar de seus velhos temores sobrenaturais e pode comprovar, pelos avanços da pesquisa cientifica, que a natureza é, em si mesma, um verdadeiro repertório de milagres.
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NOTAS
1.Teilhard de Chardim-Mundo, Homem e Deus, pg.29
2.Nem o Taoísmo, cujas concepções muito se aproximam do panteísmo filosófico, escapou da idéia de que o homem decaiu de um estado superior e precisou substituir essa queda pela aquisição de uma “ ciência”, que na verdade, é um outro tipo de conhecimento, por nós definido como tecnologia. Veja-se, a propósito, estes sugestivos versos do Tão-Te King: “Quando o grande Tao se perdeu/ Brotaram (vontades) de humanidade e justiça/ Quando o conhecimento e o talento surgiram/ Grandes foram as decepções. Quando as relações familiares entraram em desarmonia/Surgiram os bons pais e os filhos leais/. Quando as nações mergulharam em desespero e desordem/Surgiram os ministros leais. O inspirado autor dessses versos ( Lao-Tse), evoca aí um tempo em que as virtudes humanas não precisavam ser cultivadas, pois elas eram implicitas na própria estrutura do homem. Ela as tinha e não precisava saber disso. Era como sua própria pele, suas próprias entranhas, seu próprio cérebro. Eram virtudes naturais que não precisavam ser exercitadas. O universo não precisava de “homens bons”, nem precisava de definições sobre o que era justo ou injusto, bom ou mau, certo ou errado. Foi quando o homem quis saber como tudo isso funcionava, quando indagou o porquê, quando quis entender, enfim, o processo pelo qual as coisas se faziam ( atributo do Criador), que ele cometeu o grande pecado. Chuang- Tzu, o mais importante discípulo de Lao-Tse explica bem essa questão: “ Ao fazer uma roda, diz ele, se trabalhar muito lentamente, você não conseguirá fazê-la firme; se trabalhar muito rápido os raios não se encaixarão. Deve haver coordenação de mente e mãos. As palavras não conseguem explicar, mais existe aí uma arte misteriosa. Não posso ensiná-la a meu filho nem ele pode aprende-la de mim. Por consequinte, embora eu esteja com setenta anos, ainda estou construindo rodas.(...) Tão , O Curso do Rio- Alan Watts, pg. 148 . O que fica patente no desenvolvimento desse tema é que todo o processo de elevação espiritual, seja ele fundamentado da forma que for, é sempre uma idéia de reconquista de alguma coisa que já tínhamos, e que, por alguma razão, perdemos. Desse ponto de vista podemos até justificar as visões de certos filósofos, como Nietzche, por exemplo, de que vivemos um eterno retorno. De certa forma, a idéia da Maçonaria do Rito Escocês, fundamentada numa eterna reconstrução do caráter humano, simbolizada nas sucessivas destruições e reconstruções do Templo de Salomão, também se insere no mesmo domínio simbólico.
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DO LIVRO CONHECENDO A ARTE REAL- ED MADRAS, 2007
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/05/2011
Alterado em 19/05/2011