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Assim como aquele que ajunta um tesouro, esse é o filho que honra sua mãe; da mesma forma, o que honra o seu pai terá filhos que o honrem também. Honrar ao pai, obedecer à mãe, eis a fórmula para uma vida segura e dilatada. E quando se honra o pai em ações, em palavras, em toda sorte de mandamentos e costumes que dele se recebeu, a sua benção estará sobre o filho por todos os dias da sua vida.
Essa é a lição que todo jovem judeu recebe em suas sinagogas. E assim as virtudes familiais vão passando de pai para filho e as tradições são mantidas intactas. Esse respeito é que garante a longevidade da nação que Moisés fundou para os filhos de Israel.
Caminhemos um pouco mais no tempo. O filho de Maria é agora um jovem a meio caminho para a maturidade, pois nessa terra em que a austeridade dos costumes exige do homem uma definição de rumos na vida mais cedo do que em outras culturas, os folguedos próprios da juventude são abandonados assim que as primeiras barbas lhes aparecem nas faces. A gravidade é assumida pelo olhar na mesma medida em que a força lhes cresce nos braços.
Os cinco anos após a morte de José são consumidos na tentativa de ser um adolescente normal, filho de mãe viúva, que precisa trabalhar para viver. Destarte, assume a carpintaria com Judas, seu meio irmão, e juntos dão prosseguimento ao negócio do pai.
As necessidades da existência invadem a vida dos jovens aldeões e afastam a frivolidade da adolescência, antecipando as responsabilidades da vida adulta sem o necessário estágio da juventude. Por isso os jovens judeus amadurecem muito cedo, e enquanto nas demais partes do império os moços são encontrados a namorar, a folgar, a gastar as fazendas do pai – quando se as têm –, na Judéia, os rapazes dessa idade se apresentam maduros e circunspectos, a maioria já a criar uma prole.
Gostaríamos de historiar a vida desse mocinho nesses anos de adolescência, diríamos, não perdida, por que não somos daqueles que entendem ser prejudicial ao desenvolvimento da personalidade dos jovens a sua entrada precoce no mercado de trabalho, mas sim, bastante sofrida e pesada em razão do fardo da responsabilidade assumida tão cedo.
Todavia, nesse mister, pouca coisa teríamos a dizer de um rapazote que vive em uma aldeia perdida nas montanhas da Galiléia, trabalhando em uma carpintaria e fazendo todos os dias as mesmas coisas que se podem fazer em um contexto desses. Ali-ás, nem os imaginosos cronistas que em tantas peripécias o me-teram quando menino, para o jovem nazareno nem uma simples aventura foram capazes de projetar. E dessa forma, em suas crônicas, tudo se passa como se o filho de Maria tivesse se ausentado do planeta por um longo tempo e só retornasse já adulto para dar cumprimento a sua missão.
Dado que não queremos navegar nas mesmas águas fantasiosas de alguns escribas que o mandaram ao Egito, para estudar com os sacerdotes de Amon-Rá os Mistérios que dizem ser a-queles sacerdotes mestres – o que seria inconcebível para um judeu que tem respeito pelos estatutos da sua religião –, vamos deixá-lo ficar em Nazaré mesmo esses anos da sua adolescência.
E como também não vemos sentido em enviá-lo á Caldéia, à Pérsia, á Índia ou ao Tibete, ou quiçá, para algum mosteiro perdido nos confins do Oriente, para aprender com os mestres dessas sagradas disciplinas os segredos que dizem, ele possuía, somos obrigados a nos dar por satisfeitos em vê-lo passando esses anos de adolescência a lixar tábuas, serrar madeiras, aplainar vigas e a praticar outras tarefas relativas ao seu ofício, na pequena carpintaria que ele e seu meio irmão Judas herdaram do falecido José.
Também não o levaremos para a comunidade de Qunran ou qualquer outro acampamento de essênios, embora muita gente acredite que ele tenha lá vivido e aprendido com aqueles santos dos últimos dias uma boa parte da sua doutrina. No deserto da Judéia e nos rochedos do Mar Morto, onde aqueles anacoretas plantaram suas colônias, com certeza encontraríamos o austero e irascível João Batista, mas não o jovial e tolerante filho da viúva Maria, embora reconheçamos que muito do que ele disse e ensinou tenha muito a ver com a sabedoria cultivada por aqueles fanáticos defensores da pureza religiosa de Israel. Mas essa in-fluência lhe veio por conta do seu ascético professor e não diretamente dos chamados “Irmãos da Luz”.
É em Nazaré mesmo que nós o vemos passando a adolescência e os primeiros anos da sua juventude. E o máximo que podemos vislumbrar nesses cinco anos, além da vida simples e dura que ele leva como operário carpinteiro, é o amadurecimento de uma personalidade invulgar, introspectiva e bastante estranha para o tempo e o lugar em que vive.
Pode-se até trazer á baila algum namorico com alguma garota da aldeia, que mal algum fará ao desenrolar da sua saga, porquanto mesmo alguém como ele, destinado a fazer uma tal diferença na história da humanidade, carece de um intermezzo sentimental na vida. Assim, com Débora ou com Sara, duas meninas cujos pais o andaram sondando, ele bem que poderia ter casado. E ao formar família em Nazaré e trabalhar como carpin-teiro, e depois ensinar o ofício aos filhos, como é de tradição entre os judeus, ele poderia ter mudado o curso do seu destino e nada do que aconteceu teria acontecido. Mas se assim fosse, não teríamos uma história para contar. Por isso não lhe daremos uma esposa nesses primeiros dias de juventude, como seria de praxe acontecer entre os judeus, nem o meteremos em quaisquer outras aventuras romanescas, nem que seja para dar cores mais vibrantes à nossa crônica.
Cinco anos se passaram desde que José morreu. O filho de Maria tem agora cerca de dezoito anos e decisões importantes para tomar. Nunca deixou de pensar na morte inglória do pai, pendurado em um madeiro, sem culpa que o condenasse, mas também sem motivo que o orgulhasse. Pois num caso desses não é a morte, em si, que importa, mas o motivo de se ter morrido dessa forma. Que o dissessem os filhos dos combatentes que sofreram igual suplício, mas ostentavam um visível orgulho por serem órfãos de guerra. E só esperavam o momento de repetir o gesto do pai, indo para as montanhas para se juntar à guerrilha e lutar pela pátria e por seu Deus.
O filho de Maria não pensa dessa forma. Não sonha com a glória dos campos de batalha, nem encontra prazer em se ver de espada em punho, decepando cabeças romanas. Morte, fogo, destruição, são as imagens que lhe vem à mente toda vez que pensa no assunto. Ele não quer destruir, ele pensa que seria melhor construir algo novo.
A cruz é um símbolo que o apavora e também o fascina, porquanto ela não deixa de ser uma constante em seus sonhos. Sonha amiúde que carrega uma delas sobre os ombros e que ela pesa tanto quanto um homem. Imagina – porque isso é coisa que nunca viu – como deve ser a morte de um homem num desses instrumentos de suplício. A dor contínua e atroz dos músculos se despedaçando, a pele que resseca como couro curtido pela exposição ao calor, os lábios rachando como a terra castigada pelo sol inclemente, a mente que vai se apagando aos poucos pelo esgotamento das forças que sustentam o corpo. Como alguém consegue suportar tamanha flagelação?
Talvez os sonhos constantes que tem com esse símbolo venham da imaginação do pai pendurado num madeiro. Ela o acompanha como uma visão que lhe preenche a tela da mente assim que fecha os olhos. E seu coração se comprime no peito toda vez que pensa nisso. Logo que chegara a Nazaré, depois de voltar de Jerusalém e saber do terrível acontecimento que viti-mara José, fora com sua mãe e o meio irmão Judas à Séforis, para ver se, de alguma forma, conseguiriam recuperar o corpo do pai para dar-lhe sepultura digna. Sequer uma simples lembrança de José restara no local em que ele fora crucificado, para que ele pudesse ter dele algo mais que a imagem de um homem pendurado numa estaca cruzada, na beira de uma estrada. Se pudes-se ver seu corpo, se pudesse chorar sobre seu cadáver, rasgar as roupas, espargir cinzas sobre a cabeça, na presença do morto, para que ele soubesse que essas últimas homenagens lhe estão sendo prestadas, talvez essa imaginação não lhe viesse com tanta freqüência, porque no enredo que a mente elabora para dar geração aos filmes que projeta, a culpa é o elemento que mais força dá às imagens que são impressas na tela que temos dentro dela.
E ele se culpa por ter estado ausente no momento em que o pai mais precisou dele. Ele se remói por não ter lhe prestado as últimas homenagens, como cabe a um filho zeloso. Ele se condena por não saber onde repousam os restos mortais do pai, pois pensa – como todos os judeus – que quem não honra seus ancestrais com os ritos necessários serão punidos na eternidade pelo pecado do desrespeito.
Ele estima os preceitos que dizem: “filho, ampara a velhice do teu pai, e não lhe dê pesares na vida; quando faltarem-lhe as forças, suporta-o e não o desprezes por poderes mais que ele, pois a caridade que tiveres com teu pai não ficará posta em es-quecimento.” Sábias palavras que o Pregador escrevera, mas como cumprir tais preceitos quando já não se tem um pai a quem possa inspirar orgulho e cuja velhice possa, um dia, amparar? O que fazer agora? Trabalhar, o resto da vida na carpintaria, como ele, e esperar que Jeová conduza o seu destino pelas mesmas sendas, de trabalho duro, refeições frugais, cansaço e aflições diárias, compensadas somente pela esperança futura de uma vida de galardão nos céus, como é prometido pelos eclesiásticos em seus sermões, aos sábados, na sinagoga?
Na sinagoga o professor ensina que sábio é aquele que mais se humilha perante o Senhor. Quanto mais humilde, mais graça se alcança perante Ele. Os jovens são aconselhados também a não procurar saber coisas que estão além dos seus limites de entendimento, a não especular sobre o que está acima da sua capacidade intelectual e a refrear a curiosidade sobre as razões das obras de Jeová.
¬ – Não é necessário ver com teus olhos o que está escondi-do, nem te apliques a esquadrinhar com muita atenção a coisas escusadas, e não examines com curiosidade as diversas obras de Deus –, diz o professor. E o povo se mantém na ignorância, mesmo sendo avisado que existem muito mais coisas no mundo do que aquelas que lhe são mostradas. Mas se estas devem ficar ocultas, se as mentes das pessoas não devem ser satisfeitas na sua procura por respostas, por que aguçar-lhes a curiosidade com a suposição do mistério?
E mais: não seria uma rematada crueldade o fato de Jeová ter dado às pessoas o gosto pela especulação, a ponto delas ficarem se interrogando sobre tais assuntos, e depois lhes negar a sua revelação? Se os caminhos de Deus são inescrutáveis, então qual a razão para Ele ter dado ao homem uma mente e nela colocado o desejo de saber, de se antecipar aos acontecimentos, de imaginar o que virá na próxima volta do caminho? Essas são perguntas que ele faz insistentemente e não recebe resposta que o satisfaça.
Basta ao homem o mal e o bem de cada dia, pois por mais que pense não pode ele sequer acrescentar um côvado à sua altu-ra nem fazer branca ou preta a cor dos seus cabelos. Essa é outra máxima que ele ouve constantemente nas sinagogas. Que o ho-mem cumpra suas obrigações diárias para com a sua família, sua pátria, seu Deus e consigo mesmo. Se o faz, já faz o suficiente e não precisa consumir seu espírito em especulações de outra ordem. Dessa forma se coloca o homem em seu devido lugar, um lugar subalterno, servil, um pouco superior aos animais, mas bem inferior aos anjos, cuja convivência ele não pode reivindicar, mas em cuja existência tem que acreditar.
Certamente, o que pensa o filho da viúva Maria a respeito disso tudo deve ter escandalizado os cronistas considerados oficiais, pois desses pensamentos nada reportaram. Honni soit qui mal y pense, diriam eles, pois de certo desgraçados seriam todos que pensassem mal dessas e de outras preciosidades que a mente de certas pessoas fabricam para tentar convencer as outras que suas razões são superiores a todas as demais. Mas se eles ouvis-sem o filho de Maria a expressar tais pensamentos, de certo não os entenderiam porquanto eles em nada combinam com o ho-mem que descreveram em suas crônicas. Afinal, não se quebram paradigmas se amoldando aos pressupostos que os fundamentam, pois o rompimento de padrões só pode ser feito por quem não se conforma aos modelos que lhe são impostos. E foi exatamente isso que ele fez: quebrou padrões e paradigmas.
Um das mais belas lições que José lhe ensinara era aquela que dizia que os anjos não são feitos com asas frágeis e leves, mas sim com mãos fortes e robustas. Pois não é com asas que se sobe aos céus e sim com as mãos. As obras das mãos – José sempre lhe dissera isso –, quando a elas se dá um espírito, são tão meritórias quanto a mais fina lavra do intelecto. Por isso, os artesãos mais sensíveis, desde remotas eras sempre sacralizaram os seus ofícios e fizeram deles uma forma de ascese espiritual.
“ O Senhor fez o homem do barro da terra, da mesma forma que um oleiro faz os vasos para guardar a água da purificação”, dizia José. Assim, não havia nenhuma diferença entre a forma como Jeová trabalhava para dar formato às suas obras e aquelas segundo a qual o artesão dava origem às suas. Por isso, pensava o filho de Maria, na inteligência da mente que cria e na habilidade da mão que formata, talvez estivesse a única justifi-cativa para o postulado que afirma que o homem foi feito à ima-gem e semelhança de Deus. Pois a única semelhança que podia ser invocada entre Deus e os homens era a capacidade de criar obras próprias, capacidade que só ao homem foi concedida, en-tre todas as espécies criadas por Ele. Esse talvez fosse esse o elo que os ligava, o verdadeiro elemento de parentesco entre Criador e criatura.
Todavia, mesmo reconhecendo o caráter sacrossanto do trabalho das mãos e até concordando com a crença de José, de que o trabalho honesto e feito com dignidade santifica tanto ou mais que a obra do espírito, com certeza a vida simples de um homem do campo, ou de um artífice urbano, não é o quer da vida o filho de Maria. Não nasceu para isso – não sabe para o que nasceu –, mas de certo não foi para conformar-se a uma existência de aldeão e sair da vida com pouco ou menos, em termos de sabedoria e vivência, do que entrou.
Ele ainda não sabe o que concluir de tudo isso, mas certamente não terminará sua vida carpinteiro como o pai. Cinco anos já está a trabalhar nisso e até se tornou exímio nessa profis-são. O trabalho não o desgosta, até porque encontra certo prazer em operar na carpintaria. Mas seu espírito alça vôo enquanto as mãos deslizam sobre a madeira, e dessa forma, a quantidade de trabalho e a qualidade que dele se exige declinam na mesma proporção em que o seu espírito se dispersa.
É que a mente é como água que se deita em um recipiente. Em principio ela se conforma aos contornos do vaso onde foi vertida, mas depois vai se evaporando aos poucos, em contato com o calor do ambiente. E quando se a procura, eis que pouco dela restou no vaso. Se a encerramos em recipiente fechado, de forma que a ela não se permita a evaporação, corre-se o perigo de a encontrarmos contaminada, apodrecida, em virtude do longo tempo de estagnação.
Assim também são os pensamentos e os desejos humanos. Se fechados em si mesmos, incubados por muito tempo, esses produtos psíquicos que não se convertem em ações fazem apodrecer a própria essência que os gera. Loucura, demência, alie-nação, eis o resultado da maturação excessiva desses frutos, aos quais não se deu saída para o mercado.
É o que acontece com o filho de Maria. Depois que vira Jerusalém e participara dos grupos de estudos no Templo, ele sabia que jamais seu espírito se conformaria ao ambiente de Nazaré e que um dia teria que sair dali, para ver, ouvir e sentir o que o mundo continha além dos estreitos contornos da aldeia. Nos últimos cinco anos que lá viveu, após a morte de José, sua mente, como água que jorra constantemente de uma fonte, mas não tem meios de vazão, evaporou-se aos poucos daquele local. Tornou-se fluída em anseios que não mais poderiam ser satisfeitos naquele pobre povoado, perdido no meio das colinas da baixa Galiléia. Esses anseios de alma logo são percebidos pela fa-mília, principalmente por seu meio-irmão Judas, que vive reclamando do pouco envolvimento que ele tem com os trabalhos na carpintaria; e por Maria, que lhe nota o alheamento que aumenta a cada dia. Também pelo eclesiástico na sinagoga, que se perturba com as perguntas cada vez mais incomuns que ele faz, e pelo povo da aldeia em geral, ao ver que ele evita a companhia e os folguedos dos jovens da sua idade. E principalmente por estes últimos, ao verificar que ele prefere ler a se divertir com eles, e nas raras ocasiões em que conversam, fala de coisas que não lhes interessa, talvez porque não as consigam entender.
Com efeito, a lei, a religião, as regras postas pela tradição e pelos costumes, a história do país, os feitos dos heróis e o significado oculto que está por trás da estranha saga do povo de Israel constitui o grande interesse do adolescente. Ele prefere andar pelos campos, sentar-se sobre as penhas que se levantam sobre o verde das colinas que se perdem no horizonte, e ficar a sonhar com os feitos miraculosos desses juízes e reis que são descritos nos livros sagrados. Constantemente fica ele a matutar no que dizem os profetas com seus oráculos e exortações. Seu herói é aquele Eliseu, que além de valente guerreiro era também profeta e fazia muitos milagres. Gostaria de saber como ele fizera para multiplicar o azeite na lâmpada da viúva, como curara do excesso de sal as águas de Jericó, como fizera flutuar ferros nas águas do mar e até ressuscitara um menino morto.
Por que artes de mágica conseguira o profeta fazer tais maravilhas é coisa que muito lhe ocupa a cabeça. Talvez por conta daquela ciência que, segundo dizem, só era conhecida por alguns poucos iniciados, cuja sabedoria consiste na combinação de números e letras do alfabeto hebraico e resultam em palavras de força, eis de onde devia provir o poder de Eliseu. E se o Deus de Israel deu tal potência aos homens, então tudo é possível a quem Nele acredita de verdade. Mas essa sabedoria, em nenhum dos livros que ele dispõe para ler, nem com o professor da aldeia, vai conseguir obter. Precisa de um mestre, uma escola, onde ela possa lhe ser ensinada.
Às vezes foge do trabalho na carpintaria para interrogar o eclesiástico, quando alguma questão lhe fica martelando na cabeça. Não é uma atitude muito comum a ida de um não aluno à sinagoga fora dos sábados e dos horários reservado às aulas ma-tinais, e o rabino, mais de uma vez já o admoestou, inclusive reclamando com Maria, o que lhe valeu uma boa reprimenda por parte dela. Mas as respostas que obtém não o satisfazem, razão pela qual, logo passam a ser freqüentes as suas ausências ao trabalho, e quem quiser encontrá-lo terá que buscá-lo nos cam-pos, onde vive a conversar com os camponeses, a aprender com eles a sabedoria da terra, a linguagem dos animais e dos passarinhos e o poder curativo das plantas. Iremos também encontrá-lo, amiúde, meditando, cismando e alimentando um intenso diálogo interno, o qual se percebe estar ocorrendo dentro da sua cabeça pelos movimentos dos lábios, que ele faz como se estivesse conversando com um invisível companheiro.
É patente ainda, que mais que trabalhar na carpintaria ele prefere andar pelas vinhas e lagares próximos à aldeia, a observar os vinhateiros em suas fainas, os agricultores e pastores a labutar em seus trigais e pastos. Disso muito há nas cercanias de Nazaré, porque da agricultura, do pastoreio e da indústria artesanal vive a maioria dos seus habitantes. Nós o encontraremos também a conversar com os felás, esses pobres trabalhadores de jornada, que de seu só tem a roupa miserável que vestem e a esperança no coração, de que um dia, Jeová os venha tirar da servidão em que vivem, trabalhando em terra alheia e colhendo somente as sobras que a lei lhes concede. Em conseqüência, nós o veremos a indagar sobre suas vidas, a perguntar sobre suas crenças e esperanças. E ao perceber que tão pouco desejam, tão pequenas são as suas necessidades, passa a pedir ao Deus que lhe anima o coração e abrasa sua alma, que os desejos deles se realizem, e até sonha em ser o herói por quem tais coisas sejam feitas.
Sonhos de rapazola, pois quem jamais não os teve? Quem nunca se viu liderando um imenso cortejo de soldados marchan-do, garbosos, ao tonitruante ratibum dos tambores, e multidões em uníssono a saudá-los com retumbantes brados de alegria e regozijo pelo triunfo do seu herói? Quem jamais não sonhou com o respeito dos seus pares e o reconhecimento público dos seus méritos? Que prazer ele não sente quando fala das façanhas dos grandes de Israel, escritas nos livros sagrados! Quanto talvez não sonhe também em ver seu nome entre eles inscrito?
Os discursos dos profetas, ele os repete em calorosas orações para as árvores e para as pedras, quando não encontra, entre os trabalhadores do campo, ouvidos dispostos a escutá-lo. “ O temor do Senhor é o principio da sabedoria. Os insensatos desprezam a sabedoria e a doutrina. A sabedoria ensina em pú-blico, nas praças levanta a sua voz. Faz ouvir a sua voz nas portas das cidades, dizendo: até quando crianças, amareis a vossa infância? Até quando os insensatos cobiçarão as coisas que lhe são nocivas e os imprudentes odiarão a sabedoria? Vou espalhar sobre vós o meu espírito, vou ensinar-lhes minha doutrina. E eu vos chamo e não me quereis ouvir, eu estendo a minha mão e não tem quem a tome, eu dou os meus conselhos e não há quem faça caso deles. Também eu zombarei da vossa ruína e me rirei das vossas dores quando vos assaltar a calamidade repentina e a morte vos colher como um temporal”, fica ele a recitar, como se um grande auditório e não um renque de árvores, uma multidão de pedras e talvez um ou outro esquilo perplexo e alguns pássaros menos assustadiços estivessem a ouvi-lo.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 29/05/2011
Alterado em 29/05/2011