CADEIRA DE RODAS
Mariana era a menina mais bonita do bairro. Pelo menos a maioria dos garotos achava que sim, pois não havia um que não dissesse um gracejo quando ela passava, e não se conhecia nenhum que não sonhasse ser o namorado dela.
E o pai dela, o seu Manoel, com certeza sabia disso, pois vigiava a menina com a presteza de um cão de guarda. Não deixava os rapazes do pedaço nem chegar perto. Escorraçava todos que tentavam cair nas graças da garota. Dizia que a filha dele não era para o bico daqueles pobres diabos do bairro, que nem tinham onde cair mortos.
Sua menina era uma princesa, ele dizia, e de sua casa só sairia pelas mãos de um príncipe. Por príncipe seu Manoel entendia um rapaz estudado, rico, que pudesse dar á sua filha uma vida mais confortável do que aquela que ele pudera dar até então.
Por isso, nada de engraçar-se com rapazes das vizinhanças. Ele sabia que num raio de pelo menos dois quilômetros da sua casa, não havia ninguém com cacife suficiente para se encaixar no perfil do noivo que ele queria para a Mariana. Por isso fez das tripas coração, endividando-se e privando-se, ele mesmo e ao resto da família, de algumas comodidades, para pagar para a filha um colégio caro, na esperança que a notória beleza da menina acabasse atraindo um partido que atendesse aos padrões que ele sonhava para a filha.
E o que ele esperava realmente aconteceu. Um dos rapazes mais ricos da cidade, um garoto chamado Henrique, acabou se encantando com a Mariana. Seu Manoel não cabia em si de felicidade e orgulho. Esperava que sua filha logo fosse perten-cer à uma família importante, e que seus netos tivessem um futuro garantido . O nome dessa gente estava em um monte de ruas, praças e monumentos da cidade, e o sonho dele era ver o nome de um neto seu em algumas dessas placas.
Isso era questão de tempo e a única coisa que ele pedia a Deus era para que lhe desse vida e saúde suficiente para ver isso. Nada mais ele queria. Nem dinheiro, nem fama, nem qualquer outra benesse que essa união pudesse trazer.
A única coisa que ele não sabia era que a Mariana, há algum tempo, já andava acalentando os próprios sonhos. E eles não tinham nada a ver com os sonhos do seu Manoel.
O sonho dela se chamava Paulo e morava na mesma rua deles. Já há alguns meses eles andavam driblando a vigilância do seu Manoel e namorando às escondidas. Ela dizia que saia para se encontrar com o Henrique, por que com ele o Seu Manoel fazia gosto, mas na verdade, era com o Paulo que ela ia se embolar num beco escuro do bairro, ao abrigo dos olhares indiscretos e das línguas faladeiras.
Seu Manoel levou algum tempo para desconfiar que alguma coisa não estava muito certa naquele negócio. Afinal, no começo, era o Henrique que sempre aparecia, de carro, para pegar e trazer a Mariana em casa. E era comum ele telefonar, pergun-tando por ela. Seu Manoel atendia com muita educação os telefonemas do garoto, e saudara com notória satisfação o interesse dele pela sua filha. Afinal, alguém como ele, herdeiro de uma família tão importante e abastada podia. Os outros não. Mas já fazia um tempo que o menino não ligava mais. nem aparecia com aquele carro bonito na porta da sua casa para pegar a Mariana.
Não adiantou perguntar. A resposta foi que estava tudo bem entre os dois, apenas que ela preferia que o Henrique não viesse muito à casa dela e também não ficasse telefonando todo dia. A resposta não convenceu o Seu Manoel. De modo que ele logo descobriu o telefone do Henrique e ligou para ele.
─A Mariana não contou para o Senhor? ─ , respondeu, com um jeitão meio magoado, o rapaz. ─ A gente não está se vendo mais. ─ Ela está namorando um rapaz ai da rua onde vocês moram ─, completou ele, com uma ponta de maldade, ou despeito, que ele não soube identificar.
Seu Manoel sentiu que o mundo ruía ao seu redor. Além dos sonhos desfeitos, descobrira que sua filha estava lhe mentindo. Quem sabe quantas coisas mais ela andava escondendo dele?
Ele sempre fora um homem violento. Não era de engolir sapos nem tolerava que o contrariassem. E nessa noite ele não se conteve. Deu uma homérica surra de cinta na menina e trancou-a no quarto dizendo que ela só ia sair de casa agora em companhia dele ou da mãe. No dia seguinte procurou o rapaz e armou o maior fuzuê com ele. Só não deu morte porque os vizinhos conseguiram apartar a briga a tempo.
A mãe da Mariana não concordava muito com o comportamento do marido, mas sempre fora uma mulher submissa e pouco combativa. Deu um pequeno passo à frente para defender a filha, tentando evitar que ele batesse demais na menina, mas recuou dois passos grandes para trás quando viu que a fúria dele podia se voltar contra ela. E assim, logo se juntou ao marido nas admoestações, que para ela eram conselhos. “Quando você tiver mais idade, vai entender que estamos fazendo isso para o seu bem”, disse ela. E ficou nisso.
Mariana chorou vários dias, recusou-se a comer, disse que eles podiam prender o seu corpo, mas não o seu espírito, enfim, tudo que uma mocinha contrariada naquilo que lhe é mais importante costuma dizer e fazer, ela fez e disse. Por fim, depois de alguns dias, trancou-se definitivamente no quarto e não quis falar com ninguém. Não queria mais viver.
Mas o Paulo é que não se conformava com isso. E por mais que os pais dela a vigiassem e proibissem que eles se encontrassem, ele logo achou um jeito de se comunicar com ela. Como ele fez isso ninguém ficou sabendo. Mas o fato é que eles acabaram tomando a inevitável decisão de fugir juntos.
E foi assim que numa noite, depois de se certificar que os pais estavam dormindo, Mariana pegou as suas coisas, botou numa mala e se mandou de casa. Paulo estava esperando por ela na esquina. Sumiram na noite e ninguém mais os viu.
Cinco anos se passaram. Mariana e Paulo se casaram e tinham dois filhos. Nesse tempo todo não haviam se comunicado com suas famílias, temendo represália do Seu Manoel. Um dia bateu remorso em Mariana e ela resolveu visitar os pais para lhes mostrar os netos. Quem sabe, á vista dos meninos, e vendo que ela estava muito feliz no seu casamento, que sua vida financeira também estava indo muito bem, pensou ela, os seus pais a perdoariam e tudo voltaria ao normal. A bem da verdade, Mariana era uma menina de bons sentimentos e aquela situação a incomodava muito.
Paulo não se opôs e eles então encetaram a viagem da cidade onde eles moravam até a residência dos pais dela. Mas Paulo não esquecera a briga que tivera com o sogro e não sabendo de que forma ele os receberia, propôs a Mariana que ele se apresentasse primeiro ao seu Manoel e indagasse da disposição dele em recebê-la. Seria mais fácil se o enfrentasse sozinho do que junto com ela e os dois meninos, além do que, uma cena de violência na frente das crianças não faria nenhum bem a eles.
Mariana acedeu e ficou esperando no carro, em frente à casa, junto com as crianças, enquanto Paulo batia na porta da casa do sogro. Sua primeira surpresa foi ver que quem lhe abria a porta era um velho doente e alquebrado, que em nada lembrava o homem violento e intolerante com quem trocara socos cinco anos atrás. E mais espantado ainda foi ver a postura de alegria que se estampou no rosto dele quando o viu, e o reconheceu como sendo aquele rapaz com quem brigara por causa da sua filha.
─ Graças a Deus você finalmente apareceu, rapaz ─ disse ele, com um sorriso de alívio e felicidade.
─ Fico contente em ver que o Senhor não guardou mágoa da gente ─, disse Paulo. ─Se soubéssemos disso, a gente tinha vindo antes.
─ Quem tem que me perdoar é você ─, respondeu Seu Manoel com lágrimas nos olhos. ─ Eu fui uma besta ─, disse ele. ─ Pensando fazer o bem para minha filha, eu só lhe fiz mal ─, completou ele, sem poder conter o choro.
─ Está tudo bem agora ─ disse Paulo, tentando consolar o velho, que não parava de chorar.
─ Eu espero que fique─, respondeu Seu Manoel ─, enxugando as lágrimas com as costas das mãos. ─Tomara que a Mariana se recupere agora, pois desde que você sumiu, ela caiu de cama e não se levantou mais. Virou um trapo de gente, que até banho a mãe tem que dar na cama. Só sai dela em cadeira de rodas.
─ Como? De quem o senhor está falando? ─ Paulo perguntou, espantado.
─ Da Mariana. De quem mais a gente poderia estar falando?
─Não é possível. A Mariana está comigo já faz uns cinco anos. Nós nos casamos e temos dois filhos.
─Rapaz, você está louco ─ disse Seu Manoel, abrindo os olhos de espanto. ─ A minha filha nunca saiu da minha casa. E está de cama, como eu lhe disse, já faz uns cinco anos.
─Não, não, quem está está louco é o Senhor ─ disse Paulo. ─ E eu vou provar. Espera que eu vou até o carro.
E saiu feito um furacão para ir buscar Mariana e os meninos no carro.
─Acho que seu pai enlouqueceu de vez ─ disse ele para a esposa. ─ Espero que vendo você e os meninos ele possa melhorar.
E assim ele praticamente arrastou a mulher e os filhos até a porta da casa do sogro. Enquanto isso, o sogro tirara a Mariana da cama e a pusera na cadeira de rodas. Estava esperando na sala. “Vamos ver quem está louco aqui”, disse ele para si mesmo.
─ Vamos entrar nós dois primeiro, para que seu pai a veja ─ disse Paulo à Mariana. ─ Depois a gente mostra os meninos. Mariana concordou.
Quando a porta se abriu, as duas Marianas se olharam, e os lábios de ambos se abriram num grande sorriso, como de duas irmãs que não se viam há muito tempo. Então elas correram uma para os braços da outra e fundiram-se num longo e apertado abraço. Diante dos olhos aterrorizados do Seu Manoel e de Paulo, em questão de segundos, estava ali uma única mulher. Ambos se sentiam como se tivessem sido atingidos por uma corrente elétrica. As vozes presas na garganta tentando emitir o grito que não saia, os rostos pálido de terror, os olhos esbugalhados do sogro e do genro viajavam, ora para o rosto sorridente e feliz da moça em pé no meio da sala, ora para a cadeira de rodas vazia que ainda balançava como se alguém acabasse de se levantar dela. Quando os dois meninos entraram na sala, sua mãe estava ao telefone chamando uma ambulância para levar para o hospital os dois homens que haviam desmaiado.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 13/06/2011
Alterado em 14/06/2011