Depois de dois noivados desfeitos e um casamento fracassado, Concília desiludiu-se do amor e resolveu que nunca mais iria se envolver com ninguém. Ela tinha, na ocasião, vinte e quatro anos e uma filha de cinco.
O problema era sempre a infidelidade. Nenhum dos namorados, noivos e finalmente marido, que ela tivera, conseguira ser fiel a ela. Parecia um Karma ruim aquele. Ser sempre traída.
O caso do marido fora o pior deles. Ele a traíra com a própria sogra, ou seja, a mãe dela. Foi um caso rumoroso na época, mas segundo as más línguas do lugar ─ não há lugar que não as tenha ─ isso iria acontecer mais cedo ou mais tarde, pois a mãe da Concília, mulher desquitada e muito liberal, era mais bonita que ela, e também muito fogosa.
Mas a Concília também era jovem e bonita. E gostava muito de homens. Não conseguia ficar sozinha por muito tempo. Daí se tornou uma namoradeira de carteirinha, como se dizia na cidade. Namorava pelo simples prazer de namorar. Um dia pegava um, outro dia pegava outro e assim ela ia vivendo. Todo mundo a chamava de galinha, e só não ganhou fama de puta, por que ela ficava com os caras de graça, por puro prazer, sem pedir nada em troca. Diziam até que foi inspirado nela que Chico Buarque fez aquela música chamada Folhetim.
Mas ela nunca deu bola para esse tipo de conversa. Claro que era tudo maledicências e fofoca das pessoas, mas o fato é que foi por causa dessa fama que ela perdeu a guarda da filha. Por conta dessas aventuras amorosas, o pai da menina, que a havia passado para traz com a própria sogra, não aceitava que a mãe levasse aquele tipo de vida, que, segundo ele, poderia trazer más influências para a criança. E foi com esse argumento que o advogado dele conseguiu convencer o juiz a dar a guarda da menina para o pai..
Mas o pior disso tudo é que o cara, tão logo levou a menina para casa, sumiu com ela no mundo e Concília não a viu mais. Seus amigos e conhecidos disseram que ele foi trabalhar em outro estado, mas a despeito de todas as investigações que fez, ela não conseguiu descobrir para onde ele foi com sua filha. Nem a polícia conseguiu dar jeito no caso. Concília desconfiava que os policiais fizeram corpo mole, pois achavam que o pai da menina tinha razão. Afinal, na tropa não faltava quem tivesse saído com ela, assim, tinham conhecimento de causa para não ficarem fazendo muita força para resolver o caso dela.
Mas o tempo, que costuma trazer remédio para a maioria das nossas dores morais, um dia também trouxe para a Concília um lenitivo para aliviar as dela. Com trinta e cinco anos ela apaixonou-se de novo. O nome do rapaz era Armando. Parecia que desta vez as coisas iam ser diferentes. Três anos de uma vida conjugal perfeita, convenceram-na de que Armando era diferente dos outros homens, pois ele parecia viver só para ela, mostrava uma fidelidade a toda prova, além de ser cavalheiro, elegante, romântico e extremamente carinhoso com ela.
Depois de cinco anos de uma relação perfeita, Armando aceitou uma oferta para trabalhar como representante comercial de uma grande empresa multinacional. Nesse novo emprego ele precisava viajar muito, inclusive para outros estados a serviço da companhia. Concília não se importava muito com isso, pois sempre que ele voltava, parecia que ele vinha melhor que antes. Vinha mais carinhoso, mais atencioso, mais galante, e ela gostava muito disso.
Nada perturbava a vida dela, a não ser a saudade da filha que não via ha mais de quinze anos.
Mas uma noite ela acordou com o som do telefone tocando. Armando estava em casa e foi ele quem atendeu. Ela percebeu a mudança de fisionomia dele ao atender o telefone. Deu para ouvir que era voz de mulher. E estranhou mais ainda o fato de ele pegar o telefone e ir para a sala, com a esfarrapada desculpa de que não queria atrapalhar o sono dela com assuntos de trabalho. Imediatamente ela soube que havia mulher no pedaço. E que estava acontecendo outra vez.
Não tem jeito, Karma é Karma, e dele não se foge, até porque nós mesmos o alimentamos com os nossos medos e a insegurança que se instala sempre que experimentamos situações negativas que nos produzem maus resultados. São Vicente de Paula disse que só nos acontece aquilo que tememos, e isso é verdade. E ás vezes, esse medo é tão inconsciente que nós não nos apercebemos dele até que somos confrontados com as conseqüências que ele nos apresenta.
Depois de uma conversa franca e até bastante civilizada, Armando confessou que estava tendo um caso. Em uma de suas viagens pelo nordeste do país havia conhecido uma menina e por ela se apaixonado. Isso já durava pelo menos um ano. Embalada no seu sonho romântico, de que finalmente havia encontrado seu príncipe encantado, o homem perfeito que iria ser um contra exemplo do padrão negativo que ela havia desenvolvido a respeito dos homens ─ o de que todos são irremediavelmente infiéis ─ ela não havia percebido que as viagens de Armando, no último ano, havia sido quase todas para aquele estado em especial.
Armando foi muito franco com ela. Amava-a, disso ele tinha certeza. Concília, segundo afirmava com muita convicção, era a mulher da sua vida. Clotilde, a menina nordestina, era uma dessas paixões fulminantes que às vezes ocorrem em nossa vida sem que a gente saiba por que. Ela tinha alguma coisa que muito o atraia. E a atração era tão forte que ele, naquele momento, não tinha coragem de deixá-la. E havia um agravante. A menina estava grávida.
A separação foi inevitável. Para Concília isso poderia ser apenas mais uma experiência fracassada. E nos primeiros dias de separação foi esse pensamento que a confortou e ajudou a suportar mais esse mau resultado em sua vida. Mas só que desta vez, havia a paixão que ela sentia por Armando, o amor incontestável, a insuportável dor de estar perdendo o homem da sua vida. O vazio que se instalou no seu coração era desesperador.
Não conseguia voltar à sua antiga vida de antes, namorando qualquer um que aparecesse na sua frente. Já não tinha a idade nem o frenesi de antes. E depois parecia que se saísse com alguém, ela mesmo estaria praticando o odioso comportamento que sempre a fizera sofrer: a infidelidade.
Concília logo se deu conta de que estava doente do espírito. Pois não parava de pensar que o melhor seria perdoar Armando, voltar a viver com ele e deixar que ele vivesse a sua vida dupla com a outra garota.
Foi com essa idéia na cabeça que ela embarcou para o estado onde morava Clotilde. Precisava conhecê-la. Precisava estar frente à frente com a mulher com quem estava pensando dividir o marido. Já estava admitindo abertamente essa possibilidade. Mas queria saber o que mais, além da juventude, tinha aquela menina para inspirar em Armando sentimentos tão avassaladores, que eram capazes mesmo de contrapor-se ao amor que ele dizia sentir por ela e ela acreditava que ele sentia de verdade.
Se Concília pudesse voltar atrás quinze anos em sua vida e olhar-se num espelho ela não teria tanta certeza de estar vendo a si mesma do que quando pousou os olhos em Clotilde. Pois a menina era uma cópia fiel dela mesma, quinze anos mais jovem. As duas ficaram de tal modo impressionadas pela semelhança que se esqueceram completamente do motivo que as punha frente à frente. Recuperadas do espanto passaram a historiar suas vidas e logo Concilia logo soube que estava diante da filha que lhe fora tirada quinze anos atrás.
Então teve realmente certeza. Havia mesmo um karma ruim em sua vida. Perdera seu primeiro marido para a sua mãe; agora dividia o segundo com a própria filha. Não podia ser apenas uma cruel coincidência.
Concília foi procurar um grande mestre espiritual que lhe explicou o processo do Karma. “As nossas vidas presentes,” disse ele, “são determinadas pelas nossas vidas passadas. Todos os seres humanos possuem um espírito imortal. Esse espírito, que nada mais é do que o resultado da atividade mental despendida nas pratica das nossas ações, resulta numa entidade que sobrevive no tempo e no espaço, passando de corpo em corpo. Em consequência, nosso destino sobre a terra é uma herança que capitalizamos em cada uma das existências que experimentamos. Dessa forma, o espírito encarnado herda os resultados bons ou maus das encarnações anteriores.”
Explicou que essa é uma consequência da lei da causa e do efeito. Ela faz com que o nosso futuro dependa das ações e decisões que tomamos no presente.Uma causa positiva no presente gera outra de efeito positivo no futuro, da mesma forma que uma causa negativa gera um efeito igualmente negativo.
Esse mestre espiritual também levou Concília a praticar a terapia da regressão às suas vidas passadas. Nesse processo ela descobriu que em uma de suas vidas anteriores ela tinha sido uma prostituta, que ganhava a vida mercadejando o corpo. Em outra havia sido uma mulher irresponsável e má que havia destruido alguns casamentos. Também tivera algumas experiências como homem e em todas elas praticara um comportamento sexual irresponsável.
O mestre disse a ela que a única forma de mudar esse mau karma seria a prática de ações positivas no presente para que no futuro essa corrente de causas e efeitos pudesse ser quebrada. Como fazer isso ele não sabia dizer, mas disse que às vezes era preciso renunciar às coisas que a gente mais amava, para fazer com que a nossa mente aprenda a viver com desapego. E depois contou a ela como Mahatma Gandhi resolveu problema semelhante.
“Quando a India se libertou do dominio britânico,” disse ele, “ocorreram muitos conflitos entre muçulmanos e hindús. Esses conflitos eram tão sérios que estavam caminhando rapidamente para se tornar uma guerra civil de grandes proporções. Gandhi foi procurado por um hindú que lhe confessou ter matado um garoto muçulmano em represália aos que os muculmanos fizeram com ele e sua familia. Ele queria saber como poderia quebrar a corrente kármica negativa que certamente lhe adviria em outras vidas em consequência da ação má que praticara. Gandhi lhe aconselhou procurar um garoto muçulmano da mesma idade, que tivesse ficado órfão. Isso era coisa comum na India daqueles dias. E que ele o criasse como seu filho e lhe desse uma educação muçulmana.”
Essa é a história da Concília. Nada aqui foi inventado, a não ser os nomes. Foi ela mesma quem me contou. Ela hoje é uma senhora de setenta e cinco anos e vive muito feliz com o terceiro marido há mais de trinta anos. Quanto á sua história com Armando e Clotilde, ela separou-se dele e assumiu plenamente, sem mágoas e sem conflitos, seu papel de mãe dela e sogra de Armando. Renunciou ao que mais amava. Depois ajudou-os a criar os netos, que vieram do casamento dos dois e até viveram juntos, na mesma casa, durante uns três anos, até ela encontrar o atual marido.
Não sei se o karma existe ou não, mas de uma coisa tenho certeza: Deus fez o tempo infinito para que as coisas não tivessem que acontecer todas de uma vez só. E para que nós não tivéssemos somente uma única oportunidade para fazê-las. Ele sabe o quanto somos imperfeitos e que não basta uma única vida para nós aprendermos a fazer tudo bem feito.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 16/06/2011
Alterado em 16/06/2011