João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


O CÓDIGO DOS CÓDIGOS
Titulo do livro: O Código dos Códigos
Autor: Northrop Frye
Editora Boitempo; 2004
 

Sinopse
 
Neste livro, Northrop Frye, crítico literário, professor de literatura na Universidade de Toronto, Canadá, faz uma interessante análise da Bíblia, do ponto de vista literário. Mostra que o grandioso livro que serviu de base para a religião ocidental também é o grande alicerce de toda a nossa literatura, fornecendo a grande maioria dos tipos e antítipos que servem de base para praticamente todos os temas que tratam a literatura ocidental. Esses tipos refletem a saga da humanidade na busca dos caminhos para a sua subsistência e seu desenvolvimento, e são encontrados em todos os tempos e lugares, razão pela qual são retratados em mitos, metáforas, lendas, histórias e outras formas de comunicação desenvolvidas pela humanidade. Frye nos mostra que a Bíblia é, talvez, junto com os Vedas, o maior repositório de arquétipos que a mente coletiva da humanidade possui. Nela encontraremos praticamente todos os códigos que a mente humana até hoje conseguiu desenvolver para figurar os seus conflitos e as ações executadas para resolvê-los. Por isso ela é o Código dos Códigos.
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Uma vez um aluno um pouco mais curioso perguntou ao grande professor Santo Agostinho, bispo de Hipona, o que Deus fazia antes de começar a produzir o universo. Ele tinha curiosidade em saber, já que a Bíblia começa com uma ação ativa de Deus, fazendo os céus e a terra, pela separação da luz das trevas. Santo Agostinho deu uma resposta meio enviesada, bem a moda daqueles tempos, em que era proibido discutir religião, e principalmente aqueles dogmas de fé, cujas respostas pudessem suscitar alguma contestação. Utilizando a linguagem de hoje, poderíamos dizer que ele respondeu ao espevitado aluno que “ antes de começar a fazer o universo, Deus estava preparando um inferno para os “pentelhos” que se metem a fazer tais perguntas”.
Muita gente ainda acha isso hoje em dia. Finca posição em certos dogmas e vai em frente como se fosse um burro em quem se coloca viseiras para que não olhe para os lados e se distraia.
Isso é conveniente para quem vive da indústria da fé, mas já se disse que pior do aquele que nunca lê livro nenhum, é aquele que lê um livro só. A história do Big Bang interessa porque é a nossa história. O que aconteceu antes dele preocupa porque é a nossa origem. Assim, nada deveria ficar fora do território especulativo da mente humana, e opor dogmas, ou assuntos que não podem ser discutidos não é defender a fé, antes é enfraquecê-la perante à mente humana, que avança sempre, a despeito de todas as portas que algumas pessoas tentam fechar na frente dela.
Ler a Bíblia como se ela fosse um código de leis, ou uma História literal do mundo, ou ainda pior, como uma cartilha doutrinária infalível, pode resultar em mentes maravilhosas como a de Jonh Milton, de Madre Teresa de Calcutá, a Irmã Dulce, e outras luminosidades mais, mas também pode gerar malucos como Jim Jones e Brigham Young, por exemplo[1] Da mesma forma pode gerar mentes como a de José Saramago, que vê na Bíblia um livro pernicioso que incentiva as guerras, a matança, o incesto, os ódios raciais e tudo quanto há de ruim de mundo.
O interessante do trabalho de Northrop Frye é exatamente o fato de que ele nos mostra uma Bíblia do ponto vista literário. Nesse trabalho, despido de toda roupagem doutrinária e ideológica, se pode perceber a riqueza do inconsciente humano, comunicada através dos mitos, das histórias, da metonímia, dos provérbios, parábolas, símbolos e visões, muitas delas intraduzíveis em linguagem humana, que compõem esse livro formidável e único, onde toda a aventura humana, desde a sua origem celular, até a sua organização em sociedade, é contada.
Frye nos mostra que histórias como a da criação e queda do homem são ecos de um desenvolvimento natural das sociedades humanas, que refletem a passagem de uma sociedade extrativista, onde o homem tirava o essencial do seu sustento da natureza, para o momento em que, premido pelo aumento populacional, foi ela obrigada a desenvolver a agricultura e o pastoreio para sobreviver. Assim, a história de Cain e Abel, por exemplo, é uma metáfora do conflito entre a agricultura, atividade que necessitava de terras agricultáveis, e o pastoreio, que precisava de espaço aberto para pasto. Esse fato, que reflete o avanço da civilização e sua urbanização, tem sido, amiúde, o responsável pelos grandes conflitos da história e sobrevive ainda hoje, até no interior do Brasil, onde a competição entre as grandes fazendas de gado e o assentamento de colonos tem rendido incontáveis mortos, como já aconteceu nos Estados Unidos, no passado.
O que é a terra prometida dos israelitas senão um arquétipo da utopia longamente sonhada pelo homem em todos os tempos? Quem não sonhou um dia com uma terra que mana leite e mel─ um lugar onde a vida possa ser vivida sem conflitos─, lugar esse que pode ser um sítio, uma casa de praia, uma aposentadoria, uma casinha pequenina na serra, etc.? Dessa forma, toda a saga bíblica do povo de Israel pode ser vista assim como uma longa e eterna procura pela realização desse arquétipo que está na mente inconsciente da humanidade. Destarte, a terra prometida, tanto a de Abraão, como a de Moisés, os reinos de Davi e Salomão, a restauração de Zorobabel e a própria idéia do reino messiânico que se cristalizou na promessa cristã, são, na verdade, a idealização da utopia.
 
A Bíblia, do ponto de vista estritamente literário, reflete a totalidade do inconsciente humano codificado em mitos, histórias, aforismos, metáforas, metonímias, provérbios, que juntos, fornecem um celeiro infinito de arquétipos para a nossa literatura. Praticamente, todos os enredos literários que conhecemos já estão, de alguma forma, presentes nela. 
Por fim, o que ressalta, desse trabalho de Frye é a idéia de que o conceito de Deus não é fruto de intuições estanques, separadas uns dos outros, como de princípio se poderia pensar, mas sim a cristalização de uma sensibilidade que é desenvolvida na forma como a sociedade é organizada. Cada povo tende a prefigurar e atribuir ao seu Deus suas próprias identidades. Assim, se Israel desenvolve a idéia de um deus patriarcal, apegado á tradições pastoris, é porque assim vivia esse povo. Da mesma forma, os gregos, com seus deuses quase humanos refletiam a evolução social e mental de um povo que via a vida sempre como um limite a superar.
Assim, o conceito de Deus não pode ser separado da forma como a sociedade monta a sua hierarquia. O fato de o Deus hebreu aparecer prefigurado sempre como uma espécie de patriarca severo é próprio da sociedade pastoril da Israel bíblica, da mesma forma que o Deus Brhama, que aparece no topo da hierarquia dos deuses hindus, é um arquétipo fundamentado na figura do brâmame, cujo status na sociedade daquele povo era o mais alto. Por isso, os deuses, em todas as tradições religiosas dos povos antigos, moram em montanhas “lugares altos”, como os deuses do Olimpo, ou Jeová no Monte Sinai, ViraCocha em Tiuanaco, etc.
Destarte, o fato de os deuses morarem numa montanha, ou aparecerem numa delas, ou ter seus templos construídos em lugares altos, é uma metáfora que indica a condição superior dele em relação aos seus subordinados homens.  É uma transposição da realidade social vivida pelos povos que o cultuam, o que nos leva a deduzir que o conceito de Deus é uma dinâmica extraída da forma como a sociedade é estratificada. Assim, pode-se deduzir também que os diferentes nomes que os antigos davam a Deus não refletiam identidades de deidades em si mesmas, mas sim apenas códigos lingüísticos extraídos dos seus sistemas sócio-políticos. Desse modo, os nomes de Jeová, Aton, Marduc, Baal, Viracocha, Zeus, etc, não representam deuses diferentes, mas sim retratos de uma mesma idéia, desenvolvida segundo diferentes visões. São frutos de diferentes fases vividas pela humanidade e suas conseqüentes formas de ver o mundo. São deuses agrários uns, deuses urbanos outros, pastoris, extrativistas, patriarcais, matriarcais, humanistas, belicosos, pacifistas etc..
A idéia de Deus muda conforme o tempo e a vida em que se vive. Por isso, talvez, a melhor idéia que se teve dele, até hoje, ainda é a do Apóstolo Paulo. “ Deus”, disse ele, “é sempre verdadeiro, seja qual for o lugar e o tempo.”   

 


[1]Jim Jones, pastor, fundador da igreja Templo dos Povos (Peoples Temple), induziu seus seguidores a um suicídio em massa na comunidade de Jonestown na Guiana, em 18 de novembro de 1978.  918 pessoas morreram, em sua maioria, por envenenamento. Brigham Young, pastor mórmon, acusado de liderar o famoso massacre de Salt Lake City, em 11 de setembro de 1857, quando um grupo de pioneiros da Califórnia que acamparam no sul de Utah foram assinados por uma milícia mórmon e seus aliados índios. Nesse massacre foram mortos 120 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.  
 


 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 06/08/2011
Alterado em 13/08/2011


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