A GUERRA DE CANUDOS REVISITADA
Filme: Guerra de Canudos- 1996
Diretor: Sérgio Resende
Elenco: José Wilker - Cláudia Abreu – Paulo Betti - Marieta Severo - Selton Mello e
Sinopse
Uma família nordestina entra em conflito quando a filha mais velha, Luiza, se recusa a acompanhar os pais e sua irmã, que decidem seguir Antônio Conselheiro na sua peregrinação em busca da “terra prometida”. Luiza foge e se torna prostituta; sua família se estabelece em Belo Monte, região de Canudos, onde Conselheiro e seus fiéis constroem o povoado de Canudos, o qual acaba entrando em conflito com as autoridades constituidas, que contra ele envia três expedições militares. O filme é baseado no conflito entre o exército brasileiro e a população de sertanejos que se reuniu em torno do profeta Antonio Conselheiro. Essa guerra, que ocorreu em 1896/97, foi uma das maiores chacinas ocorridas no país. Deixou cerca de 20.000 mortos.
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Revi, neste fim de semana, o filme de Sérgio Resende com José Wilker no papel de Antonio Conselheiro. O filme, com todas as imperfeições que o cinema brasileiro ainda não conseguiu evitar, é uns melhores filmes produzidos no Brasil. Claro que as adaptações feitas na história do “Moisés do Sertão”, que foi o inefável Antonio Conselheiro, para fins de torná-lo um personagem interessante do ponto de vista cinematográfico, distorcem um pouco os verdadeiros fatos dessa saga triste, vergonhosa e ao mesmo tempo grandiosa, que foi o episódio da Guerra dos Canudos, travada entre o exército regular de uma grande nação e um maltrapilho bando de jagunços entre 1896 e 1897, nos sertões da Bahia.
Depois de rever o filme, que eu já tinha visto em 1996, fiz uma rápida releitura dos Sertões de Euclides da Cunha e comparei o sertão nordestino de hoje com aquele descrito pelo engenheiro jornalista, que se tornou um dos maiores clássicos da nossa literatura. Há algum tempo atrás atravessei de carro um bom pedaço do nordeste brasileiro, não exatamente no local onde um dia se levantou o vilarejo de Canudos, que hoje nem existe mais, pois foi coberto pelas águas de uma represa, mas por locais que são exatamente iguais aqueles em que o conflito ocorreu. E vi alguns novos “Antonios Conselheiros”, pregando nas praças públicas, da mesma forma que o incrível profeta do sertão deve ter feito há mais de cem anos atrás. Hoje eles pertencem, em sua maioria, a estranhas seitas evangélicas, mas o apelo é praticamente o mesmo e o estilo também. E conquanto hoje o público seja algo diferente daquele que produziu o vilarejo de Canudos, nada impede que a história, um dia volte a se repetir. Afinal, a ignorância e a miséria, quando exploradas pela fé, é um combustível de altíssima octanagem, capaz de provocar terríveis incêndios sociais. Haja visto o que aconteceu em 1978 na Guyana, onde 981 pessoas se mataram por instigação de um pastor maluco chamado Jim Jones.
O que aconteceu no sertão da Bahia no final do século passado é um caso arquetípico. Foi, grosso modo, uma reedição dos episódios bíblicos de busca da terra prometida. Nesse sentido Antonio Conselheiro tanto poderia ser uma “reencarnação” de Abraão, Moisés, o Mestre Perfeito dos Essênios, e outros profetas que o mundo conheceu, levando seu povo para uma nova terra, onde eles seriam separados da gente ímpia e pecadora que compõem a sociedade organizada. É claro que esse tipo de iniciativa não interessa à uma sociedade que vê a sua estrutura como se ela fosse um organismo que deve seguir um determinado processo de composição e evolução. Elas surgem assim, como um câncer que subverte a vida do organismo e como tal devem ser eliminados. Esse é o conflito que Israel trava ao longo dos tempos, foi o conflito enfrentado pelos cristãos dos primeiros tempos, até o cristianismo ser devidamente “politizado”, e é, se quisermos individualizar essa idéia, o conflito que enfrenta todo aquele que ousa se tornar um “indivíduo à parte” do mecanismo social. Assim foi, também, o conflito de Canudos, onde a “Israel do sertão” foi atacada e varrida do mapa por uma sociedade tão mais intolerante e ignorante do que aquela formada pelos pobres sertanejos que seguiram Antonio Conselheiro até o vale do Vaza Barris para construir aquela “visão do inferno”, como Euclides da Cunha chamava a favela de Canudos.
Antonio Conselheiro não era o néscio que muita gente pensava que era. O material biográfico a respeito dele é muito pobre, mas sabe-se hoje que ele era uma pessoa de certa cultura e bastante preparado para o lugar e o tempo em que viveu. Sabe-se que estudou aritmética, português, geografia, francês e latim, e foi professor em escolas de fazenda, escrivão de cartório e chegou até a trabalhar como rábula(advogado não diplomado). Sua conversão em fanático religioso foi em decorrência de uma desilusão amorosa. (Sua esposa fugiu com outro homem). Foi também hábil pedreiro, especializado na construção de igrejas e tumbas.
Sua fama de pregador dos Evangelhos, aliada a sua atividade de orientador dos sertanejos em seus problemas pessoais, fez dele “O Conselheiro”, como ficou conhecido. E logo começou a dividir com o Padre Cícero Romão, de Juazeiro, a confiança e a simpatia do sofrido povo do sertão nordestino. E da mesma forma que o Padre Cícero, que atraiu o ódio e o ciúme dos outros padres e da oligarquia da região, o Conselheiro também granjeou muitos inimigos, principalmente entre o clero religioso, que viam nele um rival perigoso. Atraiu também o ódio dos latifundiários, que viam seus peões e colonos abandonarem as fazendas para seguir o Conselheiro.
Acusado de matar a esposa, ele chegou a ser preso, sendo depois inocentado. Durante 17 anos peregrinou pelo sertão pregando e fazendo prosélitos, que o acompanhavam em suas andanças. Por fim, estabeleceu-se definitivamente numa fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris, numa afastada região do norte da Bahia, conhecida como Canudos.
Canudos tornou-se uma enorme favela com mais de vinte mil moradores. A pregação anti-republicana do Conselheiro e a independência que o povoado ostentava em relação à sociedade organizada da época acabou gerando o conflito que se chamou a Guerra dos Canudos. Entre 1896 e 1897, várias incursões da polícia baiana e depois do exército brasileiro atacaram, sistematicamente a favela, acabando por destruí-la por completo, chacinando a quase totalidade da população, inclusive mulheres e crianças. Os jagunços, como eram conhecidos os combatentes de Canudos, não obstante mal armados e sem qualquer treinamento militar, resistiram durante um ano a seguidos ataques do exército brasileiro, impondo ás forças militares que eram mandadas contra elas fragorosas derrotas.
Canudos, no dizer de Euclides da Cunha, que cobriu as fases mais agudas do conflito, trabalhando como jornalista para o Estado de São Paulo, foi um crime cometido pela oligarquia política brasileira, classe ignorante, intolerante e indiferente à miséria e ao sofrimento dos menos favorecidos. Ao mandar contra um bando de miseráveis uma tropa armada com modernos canhões e metralhadoras, o governo brasileiro derramou sobre a história da república uma mancha que nunca se apagará. Talvez seja útil rever a saga de Canudos nestes nossos dias, quando a subversão dos valores, a corrupção política e a indiferença das autoridades em proporcionar o mínimo possível de serviços públicos, necessários à uma vida decente, para a maioria da população, força a favelização crescente dos nossos grandes núcleos urbanos. Canudos, nós os temos aos montes hoje em dia em nossas cidades. Só que seus habitantes, e mais ainda seus líderes, não são tão inocentes quanto Antonio Conselheiro, nem tão ingênuos quanto o povo que ele liderou.
A frase é antiga, mas não custa repetir. Quem se esquece da própria História está condenado a vivê-la de novo.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/08/2011
Alterado em 08/08/2011