O EVANGELHO DE MARIA MADALENA
LIVRO; OS APÓCRIFOS DA BÍBLIA
EDITORA MERCÚRYO-S.PAULO, 2003
ORGANIZAÇÃO DE MARIA HELENA DE OLIVEIRA TRICCA
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O que? Maria Madalena escreveu um evangelho? Pois é. Parece que escreveu. Ou então alguém escreveu e pôs o nome dela como autora. Era comum fazer isso nos primeiros séculos do cristianismo. As igrejas cristãs da época tinham esse costume. Várias cidades do Império Romano, onde foram fundados importantes núcleos do cristianismo, tinham seu próprio testamento. Geralmente eram redigidos por prosélitos letrados, que ao se filiarem à igreja, e conforme a orientação doutrinária professada por ela, escreviam suas versões do ensinamento de Jesus, com base em suas próprias visões dela.
São Jerônino (327-420) , que traduziu a Biblia para o latim, tornando-a popular no mundo ocidental, disse que nos três primeiros séculos do cristianismo, pelo menos uns duzentos evangelhos cristãos eram usados nas igrejas do Império. A eles eram dados nomes de apóstolos de Cristo ou de pessoas que tivessem, de algum modo, participado do drama de Jesus ou que tivessem sido pioneiros na transmissão da mensagem cristã. Assim tínhamos evangelhos com o nome de Pedro, Filipe, Judas, Tiago, Tomé, etc, além de outros documentos assinados por nomes como Estevão, Nicodemos, José de Arimatéia, Simão Cirineu e por aí afora. Daí não é estranho que também tenha aparecido um com o nome de Maria Madalena. Todos esses evangelhos, com exceção dos de Marcos, Mateus, Lucas e João foram considerados apócrifos, ou seja, eram inautênticos na opinião dos bispos que se reuniram no ano de 325 EC, no Concílio de Nicéia, para determinar os rumos da Igreja e fazer uma rigorosa censura de toda a literatura que rolava na época a respeito de Jesus Cristo e sua doutrina. Qual foi o critério usados por eles para determinar que apenas os quatro Evangelhos que hoje conhecemos como canônicos eram autênticos e confiáveis ninguém sabe. Há muitas lendas a respeito, inclusive que o próprio Jesus teria aparecido em sonhos aos bispos da comissão para dizer a eles quais eram os verdadeiros. Outra lenda diz que os quatro evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João saíram voando sozinhos de uma pilha de centenas de outros escritos e se postaram garbosamente aos pés dos sábios censores.
Todavia, hoje é quase unanimidade entre os historiadores que nenhum dos chamados evangelhos canônicos foi escrito por verdadeiros apóstolos de Jesus. De início sabemos que entre os doze não havia nenhum Marcos, nem um Lucas. Esse Marcos tem sido identificado como sendo um jovem discípulo que vivia em Jerusalém na época em que Jesus foi crucificado. Depois ele se juntou a Paulo e percorreu várias cidades do Império romano, pregando a fé cristão. Paulo se refere a ele em várias de suas cartas. Talvez seja o único dos evangelistas que realmente conheceu Jesus. Teria sido na casa da família dele que Jesus celebrou a Santa Ceia. Mas isso é mera especulação, sem nada que a prove. A única identidade evangélica sobre a qual a maioria dos estudiosos concordam é a de Lucas, que era médico e amigo do apóstolo Paulo, tendo andado com ele em muitas peregrinações pelas cidades do império, pregando a palavra de Cristo. Esse Lucas é tido também como autor de uma grande parte da narrativa dos Atos dos Apóstolos. Mas quanto a Mateus e João, há uma grande polêmica a respeito. A maior parte dos estudiosos não acredita que o Mateus da Bíblia possa ser o Mateus publicano, coletor de alfândega, que Jesus chamou para ser seu discípulo. Nem que João possa ser o irmão de Tiago, filho de Zebedeu, pescadores galileus que Jesus reuniu já nos primeiros dias do seu magistério. Provavelmente, com os canônicos aconteceu o mesmo que com os apócrifos. Algum prelado de igreja os escreveu e deu o nome desses apóstolos para ganhar mais credibilidade. E o Concílio de Nicéia os escolheu pela sua concisão e estilo, já que os demais, taxados de apócrifos, são na sua maioria, demasiadamente fantasiosos e até infantis, e adotá-los como lídimos registros da obra de Jesus poderia ridicularizá-la ao invés de fazer prosélitos.
Tal não é o que acontece com o Evangelho de Maria Madalena, no entanto. Ele não se enquadra no tipo de escrito fantasioso, como o Evangelho da Infância do Salvador, O de Nicodemo, o pseudo evangelho de Tomé, o de Bartolomeu e as cartas de Pôncio Pilatos, por exemplo. Ele é, na verdade, um escrito bem fundamentado nas doutrinas que estavam então em voga, as chamadas doutrinas gnósticas, que procuravam dar ao cristianismo um caráter místico e esotérico, muito próprio da época, em que a filosofia dominante era o neo-platonismo, uma doutrina extremamente preocupada em encontrar uma teoria que integrasse todas as idéias de salvação professadas na época. Daí encontrarmos a inefável Maria Madalena doutrinando sobre temas como o pecado, a unidade da alma, o caminho para a salvação, a sua prisão na matéria, a forma de libertá-la etc. Eis um excerto desse intrigante documento: Os comentários entre parênteses são meus.
EVANGELHO DE MARIA MADALENA
O Salvador disse: "Todas as espécies, todas as formações, todas as criaturas estão unidas, elas dependem umas das outras, e se separarão novamente em sua própria origem. Pois a essência da matéria somente se separará de novo em sua própria essência. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça." (identidade morfológica das coisas e teoria da unidade)
Pedro lhe disse: "Já que nos explicaste tudo, dize-nos isso também: o que é o pecado do mundo?"
Jesus disse: "Não há pecado; sois vós que os criais, quando fazeis coisas da mesma espécie que o adultério, que é chamado 'pecado'. Por isso Deus Pai veio para o meio de vós, para a essência de cada espécie, para conduzi-la a sua origem."
Em seguida disse: "Por isso adoeceis e morreis [...]. Aquele que compreende minhas palavras, que as coloque em prática. A matéria produziu uma paixão sem igual, que se originou de algo contrário à Natureza Divina. A partir daí, todo o corpo se desequilibra. Essa é a razão por que vos digo: tende coragem, e se estiverdes desanimados, procurais força das diferentes manifestações da natureza. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça." (Refutação do pecado original e uma proposta panteísta.)
Quando o Filho de Deus assim falou, saudou a todos dizendo: "A Paz esteja convosco. Recebei minha paz. Tomai cuidado para que ninguém vos afaste do caminho, dizendo: 'Por aqui' ou 'Por lá', Pois o Filho do Homem está dentro de vós. Segui-o. Quem o procurar, o encontrará. Prossegui agora, então, pregai o Evangelho do Reino. Não estabeleçais outras regras, além das que vos mostrei, e não vos instituais como legisladores, senão sereis cerceados por elas." Após dizer tudo isto partiu.( A salvação é pessoal e não através de uma igreja).
Mas eles estavam profundamente tristes. E falavam: "Como vamos pregar aos gentios o Evangelho ao Reino do Filho do Homem? Se eles não o pouparam, vão poupar a nós?" Maria Madalena se levantou, cumprimentou a todos e disse a seus irmãos: "Não vos lamentais nem sofrais, nem hesiteis, pois sua graça estará inteiramente convosco e vos protegerá. Antes, louvemos sua grandeza, pois Ele nos preparou e nos fez homens". Após Maria ter dito isso, eles entregaram seus corações a Deus e começaram a conversar sobre as palavras do Salvador.
Pedro disse a Maria: "Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos."
Maria Madalena respondeu dizendo: "Esclarecerei a vós o que está oculto". E ela começou a falar essas palavras: "Eu", disse ela, "eu tive uma visão do Senhor e contei a Ele: 'Mestre, apareceste-me hoje numa visão'. Ele respondeu e me disse: 'Bem aventurada sejas, por não teres fraquejado ao me ver. Pois, onde está a mente há um tesouro'. Eu lhe disse: 'Mestre, aquele que tem uma visão vê com a alma ou como espírito?' Jesus respondeu e disse: 'Não vê nem com a alma nem com o espírito, mas com a consciência, que está entre ambos - assim é que tem a visão' [...]". (Alma e espírito são produtos da consciência sublimada- tese gnóstica moderna).
"E o desejo disse à alma: 'Não te vi descer, mas agora te vejo subir. Por que falas mentira, já que pertences a mim?' A alma respondeu e disse: 'Eu te vi. Não me viste, nem me reconheceste. Usaste-me como acessório e não me reconheceste'. Depois de dizer isso, a alma foi embora, exultante de alegria."
"De novo alcançou a terceira potência, chamada ignorância. A potência inquiriu a alma, dizendo: 'Onde vais? Estás aprisionada à maldade. Estás aprisionada, não julgues!' E a alma disse: 'Por que me julgaste apesar de eu não haver julgado? Eu estava aprisionada; no entanto, não aprisionei. Não fui reconhecida que o Todo se está desfazendo, tanto as coisas terrenas quanto as celestiais'."
"Quando a alma venceu a terceira potência, subiu e viu a quarta potência, que assumiu sete formas. A primeira forma, trevas,; a segunda , desejo; a terceira, ignorância,; a quarta, é a comoção da morte; a quinta, é o reino da carne; a sexta, é a vã sabedoria da carne; a sétima, a sabedoria irada. Essas são as sete potências da ira. Elas perguntaram à alma: 'De onde vens, devoradoras de homens, ou onde vais, conquistadora do espaço?' A alma respondeu dizendo: 'O que me subjugava foi eliminado e o que me fazia voltar foi derrotado..., e meu desejo foi consumido e a ignorância morreu. Num mundo fui libertada de outro mundo; num tipo fui libertada de um tipo celestial e também dos grilhões do esquecimento, que são transitórios. Daqui em diante, alcançarei em silêncio o final do tempo propício, do reino eterno'."(Autêntico discurso gnóstico, que evoca as sete virtudes teologais e as passagens da alma pelos sete esferas zodiacais).
Depois de ter dito isso, Maria Madalena se calou, pois até aqui o Salvador lhe tinha falado. Mas André respondeu e disse aos irmãos: "Dizei o que tendes para dizer sobre o que ela falou. Eu, de minha parte, não acredito que o Salvador tenha dito isso. Pois esses ensinamentos carregam idéias estranhas". Pedro respondeu e falou sobre as mesmas coisas. Ele os inquiriu sobre o Salvador: "Será que ele realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco? Devemos mudar de opinião e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?" Então Maria Madalena se lamentou e disse a Pedro: "Pedro, meu irmão, o que estás pensando? Achas que inventei tudo isso no mau coração ou que estou mentindo sobre o Salvador?"
Levi respondeu a Pedro: "Pedro, sempre fostes exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher por adversária. Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós. É antes, o caso de nos envergonharmos e assumirmos o homem perfeito e nos separaremos, como Ele nos mandou, e pregarmos o Evangelho, não criando nenhuma regra ou lei, além das que o Salvador nos legou." “Depois que Levi disse essas palavras, eles começaram a sair para anunciar e pregar.” ( Alusões ao fato, já citado nos Evangelhos de Filipe e Tomé, de que Maria madalena teria uma relação bem mais próxima com Jesus do que aquela que aparece nos Evangelhos Canônicos e que a ela, e não aos seus discípulos masculinos ele revelou a verdadeira essência da sua doutrina.)
Eis aí um Jesus com um discurso que está mais para um templo budista do que para uma sinagoga judaica ou uma assembléia cristã. Mas essa aparente incoerência não nos espanta, porquanto sabemos que as crenças entre os povos do Império romano eram tão ou mais ecumênicas do que são hoje. E que entre as doutrinas gnósticas havia muito de idéias orientais, trazidas do Oriente pelo intenso tráfico comercial praticado entre Oriente e Ocidente naqueles dias, através das rotas que passavam por Babilônia e Egito.
Não é de estranhar-se, portanto, que tais discursos tenham sido postos na boca de Maria Madalena, assim como na boca de João, Mateus, Marcos e outros discípulos, os quais, dadas suas origens e condições de educação, jamais as poderiam ter pronunciados.
O Evangelho de Madalena é um dos documentos encontrados na famosa Biblioteca de Nag Hamadi, no Alto Egito, em 1945, juntamente com uma centena de outros escritos dos primeiros séculos do cristianismo. Ele corrobora a idéia bastante difundida hoje de que Maria Madalena exerceu um papel muito preponderante, senão na própria vida de Jesus, como sua companheira ou esposa, como insinuam Filipe e Tomé em seus evangelhos, mas como uma das mais importantes propagandistas da palavra de Cristo, nos primeiros tempos. Esse papel foi eclipsado e mitigado pelos bispos da Igreja em virtude da crença, muito em voga na época, de que a mulher era inferior ao homem, e que sua capacidade para desenvolver uma espiritualidade de nível superior era deficiente; e que ela estava, por conta da sua própria condição como mulher, muito sujeita ao assédio das forças demoníacas. Daí que, se um o homem fizesse milagres, tivesse premonições e visões das coisas celestes, ele poderia ser considerado um iluminado, um santo, um profeta. Já a mulher que reivindicasse o mesmo status era tida como feiticeira ou possuída pelo demônio.
Quem foi, de fato, Maria Madalena, e qual o papel que ela viveu na vida de Jesus jamais saberemos. Seguidora, esposa, companheira, pode ter sido qualquer coisa. Mas tudo que se disser será apenas tão somente especulação. Até mesmo algumas facções da Igreja a caluniaram chamando-a de prostituta. Mas não há nenhum registro, nem nos evangelhos canônicos, que comprove ser Maria Madalena aquela mulher que foi apanhada em flagrante adultério e Jesus a salvou do apedrejamento. Isso foi aventado mais tarde por algum misógino escritor da Igreja, que a identificou com aquela personagem. Mas o que parece certo é que ela foi, realmente uma mulher bem diferente daquela que a Igreja medieval sempre pintou. Ao que parece, era uma mulher de posses e de alguma educação. Lucas diz ser ela uma mulher de quem Jesus expulsou sete espíritos. Tinha que ser sete? Não sei, mas dado o valor que os judeus davam aos números (e sete é um número sagrado na cultura judaica), não se estranha também essa informação. A verdade é que ela foi a primeira pessoa que viu Jesus ressuscitado. Todos os evangelhos falam isso e assim temos uma boa confirmação de fontes para aceitar essa informação como verdadeira. Não foi para nenhum dos doze que ele apareceu. Isso me parece sintomático. Será que ela acreditava mais que os outros? Será que tinha mais mérito? Uma relação mais íntima com ele? Enfim, pode-se especular infinitamente sobre assunto.
Não sei que bem pode fazer ao cristianismo a publicação hoje desses antigos documentos que os bispos cristãos censuraram em 325 no Concílio de Nicéia. Tenho certeza, no entanto, que mal não fazem nenhum. Afinal, quem precisa de dogmas para justificar as próprias crenças, na verdade não tem confiança naquilo que diz acreditar. Sabemos, destarte, o mal que eles fizeram com isso e com a sua pretensão de monopólio sobre o espírito das pessoas. Foram mais de doze séculos de obscurantismo e repressão, em que o espírito ocidental se viu aprisionado em uma jaula de ignorância e superstição, onde a beleza e a virtude de uma doutrina maravilhosa, cujo objetivo era a distribuição do amor, da compreensão e da fraternidade entre os povos foi usada para justificar pilhagens, guerras, genocídios, e principalmente o estabelecimento de teocracias e tiranias políticas apoiadas na espúria concepção de que Deus tem favoritos na terra e os escolhe para governar os demais.
Seja como for, ler os apócrifos pode ser uma aventura intelectual interessante. Mais não seja para enriquecer o nosso acervo cultural, sempre poderemos invocar, para justificar essa leitura, o famoso ditado que diz: mais perigoso do que aquele que nunca leu livro nenhum, é aquele que só lê um único livro.
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João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 08/09/2011
Alterado em 20/09/2011