João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

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MACHADO DE ASSIS E O HIPOPÓTAMO
Livro: Machado de Assis e o Hipopótamo
Autor: Gondin da Fonseca
Ed. Fulgor- 1960
 
O nome do livro é esse mesmo. Estranho, mas é. Achei-o por acaso num sebo onde eu, regularmente, costumo procurar preciosidades do tipo. Ele caiu-me literalmente na cabeça como uma fruta madura. Lembrei-me vagamente que já havia visto esse livro nos anos sessenta na vitrine da extinta Livroeton e o título me chamara a atenção. Mas, como dizia a mensagem de contracapa, era uma análise da obra de Machado de Assis á luz da psicanálise, fundamentado principalmente nos trabalhos de Freud. Eu não tinha idade nem cabeça para ler um negócio desses naquele tempo. Por isso passei ao largo. Mas certas âncoras que são lançadas em nosso inconsciente são como sensores de luz. Quando você passa por eles, a luz se acende, a porta se abre, sirenas disparam. Você se lembra, ainda que não saiba como nem porque, que já teve alguma interação com aquele objeto, ou que já passou por aquele lugar, sem que consiga se lembrar de quando, onde nem como foi. Por isso agora não deixei passar. Comprei-o e passei o fim de semana a descobrir as raízes dos personagens do Machado.  
Machado de Assis e o Hipopótamo é uma biografia de Machado de Assis, na qual o jornalista e escritor Gondin da Fonseca analisa a obra do nosso maior escritor à luz dos conceitos freudianos. Isso, em 1960, quando a obra de Freud mal começava a ser realmente discutida e entendida, realmente foi uma ousadia, como disseram os críticos da época. Seria ainda hoje, se ela fosse convenientemente reeditada e analisada pelos peritos em psicologia. Não interessa muito os dados biográficos que o autor publica, pois a maioria já havia sido exposta antes por outros autores. A não ser, talvez, aqueles que contradizem os biógrafos de Machado, com relação às suas origens, a situação de seus pais e sua origem mestiça, que segundo o autor, não correspondem ao que esses biógrafos escreveram. No mais é informação já explorada á larga.
O que ressalta, nessa biografia de Machado, é a motivação psíquica da sua obra, na qual o autor coloca a ênfase da sua biografia. Freud, como se sabe, atribui à nossa função sexual uma enorme responsabilidade pelos conteúdos do nosso inconsciente. Boa parte dos nossos comportamentos, segundo ele, são influenciados por arquétipos gerados pela nossa função sexual. Dessa forma, na química da nossa libido, atuam forças insuspeitas que nos levam a desenvolver tendências de comportamento e características de caráter, umas as mais virtuosas, outras as mais aberrantes. Dessa forma, tudo se explica, desde as motivações que nos levam a realizar grandes empreitadas e até mesmo aqueles comportamentos, que para a moral social da burguesia dita virtuosa, são pecaminosas. Assim se explicam o homossexualismo, a pedofilia, todo tipo de sexualidade mórbida e aberrante, e até a frigidez e a impotência psicológicas, que são formas de castração sexual causadas pela culpa que a nossa mente desenvolve por agasalhar uma fauna dessa espécie. É que, para o inconsciente, tudo é normal e natural, já que ele trabalha com as informações primárias recebidas da nossa matriz animal, que tudo admite. Mas para a nossa mente consciente, que é educada na noção de que a função sexual está, de alguma forma, ligada a uma idéia de pecado, certos desejos e fantasias inconscientes nos trazem medo, angústia, depressão e culpa.
Destarte, muitas das atividades que desenvolvemos em nossa vida profissional, afetiva e social têm como função específica a liberação dessas correntes arquetípicas que fluem do nosso inconsciente e podem arrastar a nossa mente para o território dos pensamentos maus e forçam os nossos músculos á pratica de atos pecaminosos. Essas atividades funcionam como canais de drenagem dessa energia represada. E uma das atividades mais típicas desse processo de liberação é a literatura, onde o autor molda seus personagens a partir dos seus próprios modelos mentais, conscientes ás vezes, inconscientes na grande maioria dos casos. Até no livro considerado sagrado, a Bíblia, há um autor que inventa o homem à sua imagem e semelhança para nele refletir seus vícios e virtudes. Isso mostra que nem Deus escapou do processo que força um autor a fazer uma projeção de si mesmo nas suas obras.  Dessa forma, em toda criação literária sempre há alguma coisa do que o autor é, foi, quer ou quis ser, consciente ou inconscientemente. [1]
Freud desenvolveu diversos pressupostos de análise psíquica, a partir dos quais se fundamenta a moderna psicanálise. Teorias como as que explicam o Complexo de Édipo(desejo de possuir a mãe e o ciúme inconsciente do pai), o Complexo de Eletra( o inverso do Complexo de Édipo), a inveja inconsciente que a mulher tem do pênis masculino(Mito das Amazonas, as mulheres guerreiras) etc., são todas projeções dessas forças psíquicas que fluem da nossa libido e são represadas pelas barreiras da civilização. E são as barreiras que a civilização opõe ao livre curso dos nossos desejos e fantasias que nos levam, muitas vezes, a contrair doenças psicossomáticas. Por isso a mente desenvolve formas de canalização dessa energia, ora para atividades profissionais, ora artísticas, ou lúdicas, e dessa forma evita que elas se acumulem, como eletricidade estática, em nossos circuitos nervosos, provocando colapsos.
Assim é que Gondin da Fonseca vê a obra de Machado de Assis. Uma projeção do seu inconsciente, formatado na sua criação, no seu relacionamento com os arquétipos paternos, maternos e outras pessoas significativas em sua vida, bem como na educação religiosa e filosófica que teve, no meio social no qual se criou. Isso tudo ele reflete em seus personagens, desde o pessimismo nihilista de seus personagens, especialmente Bentinho, Bráz Cubas e Quincas Borba na sua famosa trilogia Dom Casmurro, Memórias Póstumas e Quincas Borba, que são projeções do mesmo personagem, segundo análise do autor. Também transparece na condescendência que ele sempre parece ter com a infidelidade conjugal das suas heroínas, um sentimento de vingança contra a forma patriarcal em que a sociedade em que viveu sempre tratou as mulheres, arquétipo que refletia o que seu inconsciente sentia em relação à sua própria mãe. Reflete também um espírito aprisionado entre uma educação religiosamente ortodoxa e as tendências filosóficas do meio em que é educado, meio esse influenciado pelo positivismo de Augusto Conte e pelo darwirnismo trazido para as relações sociais pelas análises de Marx, que o leva a adotar a postura cínica e distante em relação ás pessoas e acontecimentos da sua época, frieza essa que sempre foi criticada pelos seus adversários, que viam nela um completo descomprometimento de Machado com alguma coisa que não fosse ele mesmo.
Essa influência filosófica ele viria expor de modo bem explícito quando sugere em um dos seus romances(Quincas Borba) que a humanidade se aproveita mais dos poucos fortes que sobrevivem do que dos muitos fracos que perecem (Humanitas, o princípio que manda dar ao vencedor as batatas e ao perdedor as lágrimas). Mostra, ademais, que todos os personagens de Machado, inclusive os figurantes que aparecem á vezes como figuras de cenários, como os medalhões com os rostos dos imperadores romanos na casa de Bentinho (Nero, Cesar, Massinina), são reflexos dessas conexões com a mente mais profunda, onde medram os nossos arquétipos, sustentados por essa fértil placenta que é a libido. O hipopótamo do título, o autor o vê no arquétipo paterno que Machado simboliza no delírio descrito no cap. CXVII das Memórias Póstumas, onde uma fera (um hipopótamo) o carrega por uma planície branca. O aninmal, no caso é o pênis do pai e a planície branca o útero da mãe. Tudo muito freudiano, como se vê.

Machado de Assis e o Hipopótamo, mesmo hoje, mais de cinqüenta anos depois da sua publicação, ainda é um livro atual. É perturbador. Leva-nos a pensar que o que realmente sabemos de nós mesmos é muito pouco. Em outra oportunidade falaremos mais desse interessante trabalho que nos dá um verdadeira radiografia da obra desse que é o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
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Sobre Gondin da Fonseca.
Gondin da Fonseca(1899-1977) foi jornalista, escritor e crítico literário. Nos anos cinqüenta e sessenta todos temiam sua pena viperina. Principalmente os políticos, a quem ele não poupava em suas críticas contundentes na “Folha da Noite” “Folha da Manhã” e outros jornais para os quais escrevia. Quando prefeito de São Paulo, Jânio Quadros processou-o por calúnia. Gondin defendeu-se dizendo que : “não há razão para o sr. Jânio Quadros processar-me pois o que eu disse na "Folha da Noite" não tem base para calúnia. Afirmei que ele é um palhaço, troca-tintas, demagogo e traidor de São Paulo além de mistagogo. (...) Ele teria motivos para processar-me por calúnia se eu houvesse declarado que ele é um grande prefeito, um patriota ou mesmo um realizador.”
Como escritor suas obras mais conhecidas, além de Machado de Assis e o Hipopótamo, são "Senhor Deus dos Desgraçados", "Biografia do Jornalismo Carioca" e "Histórias de João Miudinho". Seus livros venderam mais de um milhão de exemplares, fazendo dele um dos mais importantes e bem sucedidos escritores brasileiros do século vinte.



[1] Por isso Northrop Frye, em sua análise literária da Bíblia, publicada em português com o título de “Código dos Códigos”, pela Ed.Boitempo, identifica o Deus do Velho Testamento com o arquétipo patriarcal que estava no topo da hierarquia do primitivo povo de Israel.
MACHADO DE ASSIS E O HIPOPÓTAMO

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 12/09/2011
Alterado em 14/09/2011


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