A VAIDADE QUE MATA
Esta é a estória de um cervo que todo dia ia a um lago beber água. E depois que matava a sede ficava admirando a sua farta galhada. Cervos são muitos admirados pela sua bela cabeça. Muitos são caçados somente por causa dos majestosos chifres que eles têm. O nosso cervo sabia disso e por isso, toda manhã, após o gole de água matinal, ficava ali, admirando-se no espelho d!água.
Mas logo se aborrecia. Pois assim que o sol mudava de posição no céu, a sua sombra era projetada no chão e ele via o contraste entre as suas pernas finas e a magnífica galhada. Então se lamentava que suas pernas não fossem tão bonitas quanto a sua cabeça.
Logo começou a pedir ao deus dos cervos (todos as espécies tem o seu) que lhe desse pernas tão belas quanto os chifres. Belas pernas, torneadas, longas, grossas, roliças como troncos de carvalho. E tanto pediu que o deus-cervo, cansado daquela ladaínha, resolveu atendê-lo. Um dia, pela manhã, ao admirar sua galhada, o vaidoso cervo percebeu que alguma coisa mudara em sua fisionomia. Eram suas pernas. Em lugar das varetas finas e mal compostas, acordara com quatro lindas e bem torneadas pernas, que dariam inveja a qualquer filha dos homens.
Enquanto admirava a sua nova beleza, sentiu o cheiro do seu velho inimigo leopardo. “Lá vem aquele chato de novo”, pensou. Todo dia era a mesma coisa. Primeiro o gole de d!água. Depois a admiração da galhada. Em seguida a prece ao deus-cervo por pernas mais bonitas. Depois toca fugir do leopardo. O cervo riu. Ele sabia que o leopardo não era páreo para ele. Sempre foi mais rápido. Aquilo já virara um exercício ritualístico que ele praticava até com certa satisfação. Corria, corria, até fazer o leopardo cansar. E quando ele cansava e desistia, o cervo fazia troça dele, dando aquela sacudida no corpo, que era uma espécie de dança, praticada para descarregar a energia estática queimada na fuga.
Fazia isso todos os dias. Era um ritual. Naquele dia, enquanto corria, pensava em quão bonita e sensual seria a dança do dia com aquelas novas e lindas pernas. Mas não teve tempo de terminar o pensamento. Uma dor lancinante na garganta o interrompeu. Duas presas fortes e fatais acabavam de rasgá-la. Enquanto sentia o sangue quente escolher-lhe pelo pescoço e a vida se esvair com ele, lamentou ter trocado a principal arma que a natureza havia lhe dado para a sua defesa por uma beleza efêmera e sem utilidade.
A natureza sempre sabe o que faz. Deixemos que ela nos guie.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 02/10/2011
Alterado em 02/10/2011