João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A DÚVIDA DO PRÍNCIPE


O príncipe guerreiro Arjuna foi alvo de uma conspiração urdida por parentes gananciosos e perdeu o seu trono para um de seus irmãos. Despojado de seus direitos, magoado, desiludido, resolve desistir da sua herança. Tem, não obstante, muito seguidores que o incitam a lutar para recuperar o trono. Arjuna forma então um numeroso exército que marcha contra os usurpadores. Eles se encontram numa grande planície e se preparam para entrar em combate. Mas, ao chegar ao campo de batalha, Arjuna reluta em começar uma guerra. Afinal, são seus parentes, é a sua família que ele terá que destruir. Desorientado, sem saber que atitude tomar, ele vai consultar Krishna, o deus andrógeno, de longa cabeleira e belas feições femininas. A divindade incita Arjuna a lutar e reconquistar seus direitos, mesmo que tenha que matar os usurpadores. Eis o formidável diálogo travado entre o jovem príncipe e o belo deus, reproduzido na Baghavad Guita..
(Arjuna) ― Ó Krishna! Ao ver que todos esses homens que devo matar são meus parentes, sinto meus braços paralisados; a língua fica ressequida, meu coração treme e meus cabelos se eriçam no alto da minha cabeça. A força abandona os meus braços. Não consigo sequer segurar o arco. Mal consigo me manter em pé. Sinto-me febril. Meus pensamentos estão confusos, a própria vida parece fugir do meu corpo. Não consigo ver o bem que isso me fará, senão as dores que disso advirão. Que bem me fará, ó deus, matar meus parentes? Oh! Não, divindade, eu não quero vencer desse jeito, não quero, desse modo cruel, conquistar poder e glória, riqueza e bens. Como poderia uma vitória dessas me trazer satisfação? Como os bens que eu vou conquistar compensarão as perdas que eu terei? Que prazer para a minha vida vou obter pelo preço do sangue dos meus parentes, os quais constituem a única família que tenho? Pois ali estão o meu avô, pai, irmãos e primos. Lá estão também meus mestres, amigos, companheiros de outros tempos. Eu não quero matá-los, ó grande deus. Mesmo que eles desejem derramar o meu sangue, eu não quero o deles, ainda que isso signifique ganhar domínio sobre os três mundos.[1]
Não, eu não quero que recaia sobre a minha cabeça a culpa por semelhante carnificina. Mesmo que eles sejam pecadores, traidores, usurpadores, não me parece certo matá-los, pois como poderíamos ser felizes sem a nossa família, ó belo e grande Krishna? Pois eles não vêem pecado na sua rebeldia, eles pensam que estão fazendo a coisa certa. Não, eu não quero destruí-los, pois quando nós nos entregamos à cólera e à cobiça, tudo em nós se corrompe, a piedade se esfuma, a virtude perece. Tudo se arruína. A paz desaparece, o mundo se torna um caos. Não, ó belo e judicioso deus! Melhor é render-se sem luta, mesmo que isso signifique a nossa morte!
(Krishna) ―Neste momento tens que tomar uma decisão, nobre príncipe! Não podes entregar-te ao desânimo. Isso é indigno de um homem na tua posição. Ceder à fraqueza de nada serve nessa hora. Ao invés, enche-te de coragem e marcha conta teus inimigos, mostrando a eles quem tu és verdadeiramente.
(Arjuna)―Mas como posso lançar flechas e levantar espadas contra meu pai, irmãos, que sempre mereceram meu amor e meu respeito, e a quem devo tanto respeito? Melhor comer o pão da mendicância do que trucidar gente do meu próprio sangue. Que importa a conquista se ela tiver que ser feita a tão alto preço? Morrer pelas mãos deles me parece maior felicidade do que matá-los. Ó Krishna, mostra-me o caminho certo. Farei o que me disseres, mas quero estar certo da minha decisão.
(Krishna) ―A sabedoria não se entristece nem por causa da morte nem por causa da vida. Não é a vida do corpo que importa, mas aquela que se constrói para a eternidade. Nenhum de nós, homens ou deuses deixa de existir em seu Ser Real. Deuses são espíritos que já conquistaram a imortalidade, homens são espíritos que ainda lutam por ela, passando de corpo em corpo, até a conquista final. Quando isso acontece, ele passa a viver para sempre. Todos os sentidos humanos são temporários e ilusórios. Não podes ignorá-los nem descartá-los, por isso suporta-os e encara com paciência os encargos que eles te trazem. Isso é necessário para que permaneças sereno e imperturbável em meio ao sofrimento e às angustias da vida. A vida dos sentidos é o que parece, a vida do espírito é o que é. O que parece é ilusão, o que é é real. Concentra-te em ver a diferença entre ser e parecer. O primeiro é imperecível, o segundo se esfuma, passado o momento da ilusão. Corpos são perecíveis, almas são imortais, ó príncipe! As almas não matam nem morrem. Ela não desaparece com o corpo, mas sim, se incorporam em novos corpos e continuam sua existência por todo o tempo do seu Karma.[2]
Armas não matam o Eu, fogo não o queima, veneno não o corrói. O Eu é eterno e imortal. Quem morre é o Ego, que é a soma dos teus sentidos e dos teus desejos. Obrigado está o verdadeiro e honrado guerreiro a lutar contra o seu Ego. Esse é o seu primeiro e inalienável dever. Essa é a verdadeira guerra justa. Esse é o chamado bom combate, que enobrece o guerreiro, torna virtuoso o santo e ilumina o profeta. Quem não luta contra tais inimigos, esse sim, incorre em pecado, pois a desonra sempre acompanha quem abandona o seu dever. Pior que a morte é a desonra de quem abandona o campo de luta. Quem morre no campo de batalha é sepultado com honras, quem o abandona é rotulado de desertor. A que glória aspiras?
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Esse foi o primeiro diálogo entre Arjuna, o príncipe ariano destituído de seu reino por seus parentes, e o deus Krishna,  no momento em que os exércitos dele e de seus parentes se preparavam para entrar em batalha. É uma síntese dos primeiros 38 versos da Bhagavad Guita, a Sublime Canção, livro sagrado dos hindus. Como toda literatura religiosa esse diálogo se presta a variadas interpretações. Sentidos históricos, antropológicos, sociológicos, filosóficos, já foram extraídos desse formidável poema. Já foi inclusive invocado para justificar a chamada “guerra justa”, assim chamada aquela destinada a “purificar” a raça humana, pela extinção dos seus segmentos mais fracos.[3]

Significado simbólico

Todavia, o que aqui se releva é o seu aspecto simbólico, metafísico. A luta de Arjuna, aqui entendida, é contra o seu próprio Ego. Ego é o conjunto das nossas emoções, dos nossos sentidos, e que usurpam injustamente o domínio da alma e procuram sujeitar o Ser (mente) aos seus caprichos e desejos. Contra eles o deus Krishna exorta Arjuna a lutar, pois matá-los não é um pecado, como Arjuna pensa, mas sim uma necessidade e um dever.
Derrotar o Ego, ou seja, os desejos que escravizam a alma é o objetivo da metempsicose, que é a prática religiosa dos povos que adotaram as religiões metafísicas. Budismo, Hinduísmo, Taoísmo, são religiões que encarecem a necessidade do desapego e do despojamento dos desejos da carne para que o espírito possa elevar-se e libertar-se do sofrimento. O Cristianismo, em sua primitiva pureza, de certa maneira, também adotava o mesmo princípio. Depois, a humildade e o desapego pregado por Jesus foi substituído pela cupidez e a hipocrisia dos lideres das principalmente na Idade Médiaigrejas que se formaram em seu nome. Desapego e humildade só para os fieis, para eles não. Todavia, a mente(ou espírito) que se apega à matéria jamais encontra a leveza necessária para alçar-se deste mundo e penetrar nas regiões astrais. Por isso é que se diz na doutrina do espiritismo que tais “espíritos” ficam vagando na escuridão e só a muito custo só conseguem enxergar a luz. Daí a formidável intuição dos místicos orientais, que pregam a meditação como forma de atingir a iluminação (esvaziamento total da mente, para que ela se transforme em pura luz).
Esse conflito é necessário?
Mas será mesmo preciso esse conflito entre o nosso ego e o nosso espírito? Será que desejar a realização dos nossos desejos e a satisfação dos nossos sentidos é mesmo uma  ameaça para a nossa espiritualidade? Ser pobre, humilde, desapegado, sem ambição, é condição necessária para entrarmos no reino do céu? Os líderes de algumas igrejas, principalmente na Idade Média pareciam entender que sim. Por isso pregavam como útil viver em extrema pobreza, pois a riqueza era coisa do demônio. Com esse ideal criaram uma sociedade miserável que perdurou por mais de quinze séculos e ainda hoje ressoa em alguns cantos do mundo onde a metáfora do leproso Lázaro virou modelo sociológico.
Se o céu o reino dos pobres e dos humildes, encontraríamos poucos líderes religiosos lá. Mas não é disso que queremos falar. O que queremos dizer é que não adianta lutar contra o nosso Ego. O Ego não é apenas a soma dos nossos desejos e exigências dos nossos sentidos. O Ego é a conseqüência do nosso próprio Eu. Da nossa própria sensibilidade. Ele nasce conosco e se manifesta na primeira exigência de satisfação de uma necessidade. Não há ser humano sem Ego. Não há como matar o nosso Ego, assim como não podemos simplesmente deletar as memórias das nossas experiências. O que nos dá dor ou prazer não são as coisas em si, mas sim o valor que damos a elas. Assim ,não precisamos esvaziar a nossa mente dos nossos desejos, dos nossos afetos, dos nossos sentimentos bons ou ruins, o que precisamos é saber valorá-los adequadamente para que, quando chegar a hora de largá-los definitivamente, nenhum peso eles nos causem em nossa mente.     
Por outro lado não podemos deixar que as diferentes partes de nosso Ego se digladiem dentro da nossa mente, cada qual querendo, por si própria, impor seu próprio comando. Pois é isso que geralmente acontece conosco. Diferentes “partes” da nossa personalidade querendo dirigir nossa vontade, provocando verdadeiros conflitos de personalidade, que muitas vezes levam uma pessoa à loucura. Uma quer levar você para a praia, outra para o campo. Uma quer comer doce, a outra quer manter você magro(a). Uma lhe diz para dormir um pouquinho mais, outra lembra que é preciso acordar cedo, uma diz para confiar, outra para desconfiar. Parece que dentro da sua cabeça há uma legião de anjos do lado direito querendo levar você para o céu, e do lado esquerdo uma legião de demônios lutando para levar você para o inferno.
Ninguém precisa lutar consigo mesmo. Ninguém precisa matar a sua “família” para ser feliz, só porque ela quer comandar você. Aliás, essa é a função dos nossos sentidos. Cada um deles gostaria de predominar sobre os outros. Seus olhos querem que você preste mais atenção ao que ele lhe mostra; seu nariz, por sua vez, quer que você esteja atento aos aromas que ele lhe apresenta. E seus ouvidos? Não reclama se você fica desatento às informações que eles lhe passam? Todos os nossos sentidos são “pessoas reais” dentro de nós. Todos querem ser “donos do pedaço”. Nossos sentidos são o que chamamos de “partes” do nosso sistema neurológico e se não forem devidamente atendidos, certamente se rebelarão.
Se Arjuna vivesse nos dias de hoje, ele não precisaria lutar contra a sua “família” para reassumir o controle de si mesmo (o seu reino).Ele poderia fazer uma negociação entre partes. É um exercício que os praticantes de PNL aprendem para “equilibrar” as facções em luta dentro de nós. Mas como ele não conhecia a PNL então ele teve que lutar contra a sua “família” e a matou. Mas o destino dele, como se sabe não foi muito bom, pois quem mata o seu Ego, acaba matando a si mesmo.


[1] O mundo da matéria, do espírito e dos sentidos.
[2][2] Destino ou processo pelo qual as almas devem passar para cumprir a sua missão na vida. Consiste em vários nascimentos e mortes, em diversas condições, para realizar o aperfeiçoamento necessário que a conduzirá à derradeira iluminação.
[3] Doutrinas desenvolvidas principalmente pelos autores anti-semitas.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 31/10/2011


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