João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos



 
 Desdobramento
 
De repente deu-se por si, parado em frente à capelinha de São Sebastião. Não se lembrava de quanto tempo estava andando pela rua, esquecido de si mesmo e de onde estava. Isso lhe acontecia às vezes. Bastava sentar-se em um banco da praça e começar a relaxar. O pensamento voava, a mente era presa num turbilhão de imagens desencontradas e votivas que o levavam para paragens desconhecidas e vertiginosas, como se tivesse sido fragmentada em infinitos grãos de matéria que depois se rejuntavam e formavam uma outra realidade, situada algures, em um universo desconhecido e bizarro, que não era regido por leis naturais nem conhecia a lógica. Os praticantes de espiritismo chamavam aquilo de desdobramento. Uma projeção da nossa consciência numa experiência fora-do-corpo. Alguns místicos também chamavam isso de  projeção astral ou viagem astral. Ambos eram termos termos usados para designar estados alterados de consciência, que segundo eles podem ser realizados por qualquer pessoa, seja por meio do sono, pela prática da meditação profunda ou através de técnicas de relaxamento. Podia também, segundo quem entendia do negócio,  acontecer involuntáriamente, durante episódios de paralisia do sono, traumas, variações abruptas na atividade emocional da pessoa submetida à uma intenso estado de estresse, etc. Isso, segundo diziam os estudiosos, acontecia comumente com pessoas que viveram experiência de quase-morte, deprivação sensorial, estimulação cerebral por efeitos eletromagnéticos, ou sob o efeitos de drogas alucinógenas.
 
A Lenda do Negro Sebastião
 

Era o que parecia estar acontecendo agora. Já passava da meia-noite. Tão envolvido estava naquele ambiente de névoa e solitude, que o pitoresco da situação não o espantou. Um fantasma que passasse por ali naquela hora e o saudasse, talvez não lhe causasse nenhuma perplexidade, pois certamente o tomaria por alguém das suas hostes.
Notou que havia luzes acesas no pátio, atrás da capelinha. Ouviu sons, saídos de vários instrumentos de percussão, que vinham dos fundos da capela. Vozes, entoando uma espécie de música de candomblé, num dialeto que não conseguiu identificar, podiam ser ouvidas da rua. Pelas batidas dos tambores, pelas palavras repetidas como num mantra, ele percebeu que ali se desenrolava uma espécie de ritual de umbanda, ou qualquer coisa parecida.
Imaginou que alguma festa religiosa estivesse acontecendo ali, a despeito do adiantado da hora. Animou-se com a perspectiva de que lá pudesse encontrar algum amigo para tomar com ele um vinho quente, bebida que sempre era encontrada nessas festas. Isso lhe cairia muito bem naquela hora, dado o frio que estava fazendo. Poderia também comer alguma coisa, e assim terminar a noite de um modo decente, com os pés no chão e o estômago bem forrado, para compensar a leveza de alma e a ausência de terra sobre os pés, que naquele momento parecia ser a condição em que ele se encontrava.
Sem qualquer constrangimento empurrou o velho portão de ferro do corredor que levava para os fundos da capelinha. Ele rangeu de um modo estranho e sugestivo, mas ele não prestou atenção à mensagem no som fantasmagórico. Nos fundos da capelinha havia um pátio de terra batida e nele havia umas cinqüenta pessoas, em sua maioria negras, bebendo e dançando sob o som intermitente e monótono dos tambores. Um coro de homens e mulheres batia palmas enquanto algumas pessoas pulavam corda. Enquanto pulavam, cantavam um estranho refrão:
 
“ Pula, pula, pula
Pula enquanto dá,a
Quando o laço apertar
Será hora de acordar.”
 
Foi então que ele olhou para os dois sujeitos que batiam a corda para os outros pularem. Um deles era um padre, o outro um negro atarracado a quem as pessoas chamaram de Sebastião.
Ele conhecia a lenda do negro Sebastião.  Era bem antiga. Vinha do tempo da escravidão. Ali, naquela rua e local onde ele estava naquele momento existia, nos dias atuais, uma capelinha dedicada à São Sebastião. Era uma velha construção, erigida aí pelo fim do século XIX. Nesses idos tempos, ela costumava ser um local muito visitado pelos devotos desse santo para preces e pagamentos de promessas. Nos dias atuais servia mais como local para os praticantes de macumba deixar oferenda para os orixás.
São Sebastião é um santo muito conhecido. Viveu nos primeiros séculos do Cristianismo e foi um dos primeiros mártires sacrificados pelos romanos por causa da sua fé em Jesus. Amarrado ao pé de uma goiabeira, morreu trespassado por inúmeras flechas atiradas pelos soldados encarregados de executá-lo. Desde então ganhou muitos devotos pelo mundo todo e se tornou sido um santo muito reverenciado.
Por volta de 1830, no lugar onde hoje existe a capelinha havia ali um pelourinho. Nesse instrumento de suplício os negros cativos eram amarrados para sofrerem castigo público pelas faltas que seus donos lhes imputavam. Muitos escravos morreram de maus tratos naquele local. Alguns eram ali enforcados, pois o local também servia de patíbulo, onde uma forca era erguida e o povo podia presenciar a execução. Execuções públicas por enforcamento eram um espetáculo muito concorrido na época e atraiam grandes platéias.
Uma tradição muito divulgada nos anais da história da cidade diz que em 1839 um negro chamado Sebastião foi enforcado ali. Ele havia sido julgado e sentenciado por alguma coisa que efetivamente não tinha feito. Mas seus senhores queriam mesmo a sua morte e a Pretoria, espécie de tribunal que julgava as causas envolvendo negros cativos pouco se importava com aquilo que hoje chamamos de devido processo legal e logo condenou o negro à morte.
Consta que quando ele foi suspenso no ar, o laço da corda desfez-se sozinho. O carrasco fez outros nós e tentou suspendê-lo outras vezes. Mas o laço rompia-se a cada tentativa. O carrasco tentou repetidas vezes. Mas a cada tentativa o laço desmanchava-se sem qualquer razão plausível. Buscaram-se outras cordas, mas o fenômeno se repetiu em todas as tentativas. Então a turba que se concentrara para ver o ver o macabro espetáculo, vendo nisso uma espécie de manifestação divina como a comprovar a inocência do negro, começava já a gritar pela sua libertação. Mas então surgiu da multidão um tropeiro, que por acaso passava por ali. O homem era perito em laços. Fez um que não se desmanchou e o negro Sebastião acabou sendo finalmente enforcado.
A lenda diz que o tropeiro exalava um cheiro insuportável de enxofre e seus olhos eram vermelhos como dois tições em brasa.(1)
 
Em frente á Catedral
 

De repente compreendeu a peça que a sua mente lhe pregara. Nada daquilo era verdadeiro. Ele, na verdade, alucinara. Somente projetara, na tela da sua mente, aquela cena, valendo-se das lembranças que havia desarquivado e misturado às suas impressões noturnas.
O que não quer dizer que não vivera tal aventura. Vivera sim, em outra dimensão, porém. Vivera no espírito, onde todas as aventuras merecem ser vividas. Há momentos em nossa vida psíquica em que todas as sensações da carne se aniquilam. A mente consciente se recolhe e o inconsciente assume o comando. Viaja-se pelos mundos da matéria sutil e não manifestada sem que o corpo físico saia do lugar. Viagem astral, desdobramento, alucinação, transe, dê-se o nome que quiser, mas tudo é tão verdadeiro que até as sensações experimentadas transparecem no corpo físico como se efetivamente tivessem sido vividas.
Na verdade, ele vivera uma aventura semelhante àquela experimentada por Loren Eiseley.[2] Ultrapassara a fronteira do homem binário e cartesiano, o homem de Darwin, para entrar no mundo de Nagaoka e Georges Cantor,[3) onde tudo é possível, o real e o imaginário fundem-se numa única perspectiva, a luz é simultaneamente sombra e o espírito humano pode sentir todas as sensações da carne e vice-versa, sem que um tenha renunciado ao outro pelo fenômeno da morte.
Na verdade, ele não estava no pátio da Capelinha de São Sebastião, como presença viva, alma clandestina, perdida numa festa de espíritos, mas sim, parado em frente à Catedral. E estava olhando para ela, com olhos parados, como se estivesse vendo algo muito além dos majestosos portais do imenso edifício. E era uma madrugada que já ia bem adiantada!
Descobriu-se sedento e cansado. Olhou em toda a extensão das ruas que ladeavam a catedral,  à procura de um bar aberto. Daria a vida e a própria razão, já prejudicada, por uma cerveja gelada.
Teria entrado na igreja e rezado, se ela estivesse aberta. Lamentou que ela estivesse fechada naquele momento em que ele mais precisava dela, aquele momento em que, como dizia o poeta, “a bruxa está presa na zona luz”.
Pensou que Deus era um boêmio como ele e nunca ficava na casa que os homens pensavam ter construído para Ele. Especialmente nas noites de chuva, nas madrugadas frientas e tristes. “Ele anda pelas ruas e praças como se fosse gente como eu”, pensou.
Olhei para todos os cantos da praça, para as pedras do passeio, para as casas que pareciam sombras furtivas, emoldurando uma madrugada que já mostrava, ao longe, a nervura avermelhada do sol que se anunciava no horizonte. Suspirou um arremedo de prece e de poema.
 
“ Vem Aurora querida
Dizer-me as coisas que não entendo.
O dia é longo, mas não é sábio
E a noite não é mais que um adolescente.
Diz-me porque estou tão cansado,
Se nenhuma tarefa executei
E nenhum peso foi posto sobre meus ombros.
Porém sinto minhas pernas fracas,
Elas não suportam nem meus próprios pensamentos.
Há muito tempo tomei este caminho
Mas nada achei do que me tinha sido prometido.
E aqui estou, com a alma tão dispersa
Quanto as ovelhas que Ele quis juntar um dia.
E essa casa, onde dizem que Ele mora
É só um velho edifício inacabado.
Como esta praça,
Como eu,
Como o mundo.”
 
O Anjo Tropeiro
 
E foi só então que notou dois olhos grandes e vermelhos fixados no seu rosto. Há quanto tempo estaria ali, olhando para ele? O dono daqueles olhos tinha um sorriso sarcástico que se mostrava apenas nos cantos da boca. Parecia estar muito bêbado. Mas seu corpo não oscilava e sua mão não tremia. Então, apontando para ele um dedo bulboso e cheio de chagas purulentas, recitou em boa e sonora voz:
 
“Tú és sou um homem.
E porque és  um homem estás aqui.
Tens no entanto um coração e uma alma,
E teus parentes te chamam por um nome.
Tu estavas no começo
E estarás em qualquer final.
És o alfa e o gama
O elétron e o spin.
És a soma das tentativas de Deus
E o resultado que o Diabo sabotou.”
 
Ficou mudo de espanto com aquele discurso que não sabia se entendia, mas que inegavelmente tinha tudo a ver com ele. O bêbado continuou.
 
“O homem, ao criar o homem
Deu de si o próprio nome
E o sangue que herdou
De outro homem que passou
E talvez inconscientemente,
Obedecendo uma lei
Que ele mesmo não votou,
Entregou ao ir embora
Quando chegou a sua hora.
E se tu morresses agora?
Quem haveria de saber
Que és mais que simples homem?
Quem ao menos incorpora
As fronteiras que um homem
Ao partir deflora
E quer legar a alguém que fica?
Quem ao menos justifica
A aventura de um homem?”
 
Cansado, perplexo pela própria perplexidade do seu discurso, o bêbado murmurou:
 
“ A vida do homem é um grande mistério.
Decifra-o ou serás devorado.”
 
A canção do vento
 

Ele viu então que as luzes no poste piscaram e as árvores, até então ocupadas em repetir a canção do vento, ficaram silentes como que interessadas em ouvir as especulações do bêbado. O bêbado continuou.
 
“ Homem, só te importas porque te sentes!
Que queres de mim que nem humano sou?
Que explique o teu próprio mistério,
E decifre a tua grande contradição?
Olha no fundo de ti mesmo,
Toma gosto pelo recenseamento.
Na camada mais ínfima da tua mente
Estão escritas todas suas expectativas.
Acaso receias o desconhecido?
Mas nada há além daquilo que te informa.
Nas tuas células agasalhastes tudo
E é esse tudo que te chama aos tribunais.
Reflete homem! Porque lutas?
O que proteges assim tão valioso
Que precisastes criar um Deus da tua imagem?
Ser apenas homem já não te é suficiente?
Vê! Neste momento em que teu juízo expulso
Não impede a proliferação da cisma
E te arriscas no garimpar da alma
Sem distinguir o que a batéia levanta,
Eu te pergunto, homem:
Que posso dizer-te que seja novo
Além daquilo que já teu pai te disse?”
 
Pensou numa resposta para dar ao bêbado. Mas antes que seu pensamento organizasse o discurso e a língua estivesse pronta para reproduzi-lo, um automóvel parou do outro lado da rua. Dele desceram dois policiais. Abordaram-no. Perguntaram-lhe alguma coisa que ele não entendeu. Maquinalmente, sacou do bolso os documentos pessoais e mostrou-os aos policiais. Com um movimento de ombros deixaram de se ocupar com ele e passaram a falar com o bêbado. A face do bêbado parecia pálida e redonda como a lua cheia. Seus olhos não pareciam mais estar vermelhos. Pareceu-lhe, ao invés, que uma estranha luz circundava a cabeça dele. Os cabelos, antes desgrenhados e sujos parecia agora uma suave carapaça de cachos louros e perfumados. Os policiais levaram o sujeito para o carro. Empurraram-no para o assento traseiro com mal disfarçada impaciência. Pareceu-lhe vê-los suspirar resignados com o acontecimento que lhe traria relatórios e necessidade aborrecida. O carro moveu-se em direção ao cemitério da cidade.
 
Sozinho na praça, ele sussurra, como se estiv esse perguntando ao vento: “Até os pássaros do céu tem direito ao seus próprios ninhos, mas um homem não pode escolher seu próprio túmulo?”
Em sua mente parece-lhe ouvir o vento respondendo, sibilando nas árvores da praça: “ Quando o homem nasce recebe uma alma em troca dessa liberdade.”
Achou a perspectiva desesperadora. Ele que estava quase acreditando que o homem podia ser uma alternativa entre as opções maniqueístas que sempre lhe deram os inventores de religiões, viu-se inapelavelmente vencido pela falta de alternativa.
“Só me deixaram a possibilidade de ser anjo ou demônio. De ir para o céu ou para o inferno”, pensou.
Seu esboço de rebelião também malograra. Sorriu, mas a frieza do seu sorriso não veio do vento gelado que lhe crispava a face nem da garoa fria que enregelava sua pele. Respirou fundo. Lentamente subiu a rua, cuja vista se perdia nas brumas da névoa da manhã.. 
 
           

[1] A Lenda do Negro Sebastião é um folclore de Mogi das Cruzes 
(2)Loren Eiseley, antropólogo citado por Pawels e Bergier em seu livro clássico ¨O Despertar dos Mágicos”, publicado no Brasil pela Bertrand Russel. Esse autor narra a aventura vivida por ele com um corvo que perdera a noção de espaço em razão da neblina e penetrara num espaço que não era o dele, mas sim o do homem. Ao deparar de frente com uma criatura humana em frente aos seus olhos, para o corvo era como se, de repente, ele tivesse topado com um homem que podia voar. Para ele, o corvo, isso era um fenômeno inconcebível.
[3] Nagaoka e George Cantor, geniais matemáticos que penetraram no universo dos números infinitos, revelando um mundo provável muito além dos nossos sonhos mais loucos.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 03/01/2012
Alterado em 03/01/2012


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