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INFINITUDE
... Bem, Maria Eunice. Eis que estou aqui, nesta janela do meu quarto de solitário, às tantas horas da noite, (não quero consultar o relógio para que ele não me traga de volta ao mundo de onde quero sair neste momento), fazendo perguntas já respondidas com milhares de respostas insatisfatórias. Eu disse a você que um dia faria isso, não disse? Que num futuro, nós estaríamos deste mesmo jeito que estamos neste momento, eu divagando sob uma janela aberta para um mundo que me diz tanta coisa, mas do qual eu não consigo entender nada, porque tudo que eu penso ser verdade na hora em que aprendo é desmentido no momento seguinte, que aparece com uma nova verdade que é mais factível do que a anterior, e você dormindo o sono dos ajustados. (Não digo dos justos, porque estes aquele Diógenes ainda está procurando com sua lanterna) . Sim, Maria Eunice. Eu disse que isso ia acontecer porque tinha que acontecer, dado a forma como pensávamos o mundo. Você pensava assim e eu pensava assado. Éramos duas mentes educadas de formas diferentes. Você pelo princípio do desempenho, eu pelo princípio do ideal.
O princípio do desempenho, se você se lembra é aquele que diz que todas as pessoas são educadas para desempenhar um papel na sociedade. É preciso que elas atuem de determinada forma. Delas se espera que se comportem assim ou assado, e quando isso não acontece, o sistema se desiquilibra. Assim, as mulheres nasceram para casar-se e ter filhos, os homens para prover o sustento da família. Já o princípio do ideal é esta noção desconcertante que algumas pessoas têm de que existe algo mais na vida do que fazer as coisas simplesmente para prover as necessidades que o organismo têm na sua luta para sobreviver. O princípio do desempenho se contenta com os resultados que obtém. Se preenche as suas medidas de prazer está tudo bem. Se não busca outras alternativas para satisfazer-se. Já o princípio do ideal não se contenta em prrencher suas medidas de prazer. Quer saber porque faz isso e se isso é suficiente.
Por isso eu disse que um dia isso ia acontecer. Você seguiria seu caminho em busca de algo palpável, capaz de ser traduzido em algo que pudesse encher um prato, cobrir seu corpo nos dias de frio, fazer você se sentir segura em relação ao futuro da sua prole. Já eu...
Não que fosse a nossa sina. Não existem sinas já de antemão traçadas, do tipo Mak Tub, no qual o destino das pessoas já estejam todos traçados, como na cabeça de um romancista que imaginou a sua história e já escreveu a sua sinopse, imaginado tudo o que os seus personagens irão viver, e como acabarão. Deus não é assim. Deus não é um romancista clássico que já tem, de início, um enredo todo traçado na sua cabeça e à medida que escreve, vai acrescentado à sua história, molho, sabor e estilo. Deus se parece mais um novelista de televisão, ou um desses escritores modernos, que escreve suas histórias conforme o gosto do seu público, mudando o rumo dos seus personagens, eliminando uns e criando outros, conforme a história vai se desenvolvendo e os consumidores do seu produto vão opinando. Na mecânica que Deus criou para o mundo isso se chama livre arbítrio. Na literatura isso é o que se chama de romance interativo. No fundo, tudo é igual. Pelo livre arbítrio Deus deixa que as pessoas escrevam a própria história, e por consequência, a história da humanidade. Num romance ou novela interativa são os leitores mesmo que o escrevem. “Mate a Júlia e faça o Raul ficar com a Isabel”, opina um leitor. “Não, quem tem que terminar com a Maria é o Antonio e não João”, diz outro. “Se o Paulo se sair bem dessa, é sacanagem”, " Quem deve morrer é a Teresa Cristina, diz a opinião pública.
E assim, os leitores, ou os telespectadores, é que vão orientando a trama, e ela termina contentando a maior parte dos seus acompanhantes. Como no mundo dos homens. Os que se propõem a escrever geralmente se dão bem. Os que ficam apenas a ler nem tanto, e os que não fazem nem uma coisa nem outra sempre se ferram no final.
Nem todos, é óbvio, porque não nasceu ainda o autor que fosse capaz de revogar a lei da relatividade, para fazer com que todas as pessoas pudessem enxergar o mundo do mesmo ponto de vista e assim ter a mesma visão dele.
Aliás, nem Deus fez isso. Talvez porque não fosse do interesse dele fazer. Se fossemos todos iguais, como queria o Vinícius naquela canção, o universo que Ele criou no seu momento de extrema tensão interna(até Deus tem momentos como esse), não teria passado do primeiro instante. O Big Bang teria sido uma explosão mixuruca que não daria nem registro nas telas dos nosso computadores. Seria como um traque de São João que falhou. E Deus não existiria, o universo não existiria, e nem você nem eu dentro dele, e não estaríamos nós, você na sua cama se recuperando das fadigas do dia, eu divagando nesta janela sobre um cosmo que se expande no vazio, como aqueles fogos de artifício que iluminam as nossas noites de reveillon, soltando faíscas coloridas por todos os cantos.
Só que, diferente daqueles artefatos, os fogos de Deus continuam espocando eternamente pelo espaço. E nós somos fagulhas dele. Nós e todos esses pontos luminosos que brilham no céu, como se ele fosse uma daquelas capas de mágico, bordada com estrelas, cometas, planetas, asteróides e outros corpos celestes.
Já se disse algures que Deus é um mágico e o mundo é uma ilusão. Não sei por que, mas achei que a metáfora cabia. Esse é problema quando a gente se põe, sozinho numa janela sobre o mundo e deixa a mente vagar à toa. As conexões vêm e vão. Formam pensamentos que parecem desligados um do outro. Mas não são. Se surgiram na tela da nossa mente, seja em forma de imagem, som ou cinestesia, eles nunca são estrangeiros no cérebro que os produziu. Podem ser chamados de bastardos, ilegítimos, rebeldes, seja lá o que for, mas nunca de intrusos. Eles são fruto da mesma raiz, ainda que, no processo de desenvolvimento, quando eles saem dos zigomas que os geraram - os neurônios - para o útero que lhe dá conformidade - a linguagem - eles apareçam deformados e mutilados, de tal forma que nem parecem ter qualquer parentesco com aquilo que a gente estava pensando originalmente. É assim mesmo. Os nossos olhos externos vagam pela infinita extensão do universo enquanto os nossos olhos internos percorrem a pequena mas imensurável rede de conexões existentes dentro da nossa mente. Há tantas conexões mentais pipocando na nossa rede de neurônios quanto a inumerável quantidade de estrelas que brilham na imensidão do céu. É tudo igual. É só olhar o céu numa noite como esta, sem nuvens e sem uma lua a brilhar nele, para ver que tanto o infinito cósmico quanto a teia de neurônios que forma a nossa rede neural apresentam um desenho semelhante.
(o universo) (o cérebro)
Não é mesmo?
Por isso, Maria Eunice, é que os filósofos místicos dizem que o homem é um universo em miniatura. É que Deus, nesse caso, é o próprio universo. Ele é o Átomo, a Grande Singularidade (nome que lhe deram os astrofísicos) que um dia não coube em si de tanta energia concentrada e explodiu, dando origem a tudo que existe. E a sua essência, que são os grãos da sua energia se espalhou pelo nada cósmico, dando origem a tudo que existe.
(o homem universal na visão gnóstica)
Assim é que você veria o universo que eu estou vendo da minha janela, Maria Eunice, se estivesse dentro do meu cérebro. Há dois infinitos se alongando como eixos traçados em direção ao espaço exterior e ao espaço interior. O infinito que meus olhos interrogam nesse espaço sem medida e o infinito que a minha mente percorre dentro de mim mesmo, nesta imensa rede de pensamentos que vão surgindo á medida que vou especulando. Um acompanha o eixo que se expande no infinito, o outro segue o eixo que se interna cada vez mais para dentro de mim mesmo. Nos somos a infinitude na infinidade, Maria Eunice.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 05/01/2012
Alterado em 03/02/2012
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