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AMORIZAÇÃO É. Eu devia ter mesmo muito fogo. Quem não tem esse entusiasmo aos vinte anos? Você também tinha, mas segurava. Afinal, naquele tempo não era como hoje. Menina direita se guardava para a noite de núpcias. Noite do himeneu, como os poetas românticos costumavam dizer. Noite do hímen. Mulher que se apresentasse sem hímen na noite de núpcias podia ser devolvida ao pai. Curiosa fórmula de valoração da mulher, que ainda está no nosso Código Civil até hoje, embora não tenha mais qualquer significado. Mas a gente é assim mesmo, não é, Maria Eunice? A nossa cultura, a nossa sociedade é o reflexo das pessoas que a constroem. A sociedade gosta de conservar em seu acervo cultural um monte de costumes e crenças inúteis, é só a custo de muita dor é que ela se livra delas. Nós também somos assim. Duvido que você não tenha um quartinho, ou um armário cheio de velhas bugigangas guardadas, que você sabe que não tem mais nenhuma utilidade, mas você reluta em jogar fora. Eu tenho. Parece que se livras dessas velharias, que um dia fizeram parte da nossa vida, é desfazer de um pedaço de nós mesmos. E assim a gente vai guardando, guardando, até um dia em que percebe que elas não têm mais utilidade nenhuma, que estão ocupando espaço e atravancando a nossa vida. E que elas impedem que a gente vá para a frente e pratique comportamentos novos. É assim também com as memórias das experiências vividas. Guardamo-las todas no nosso arquivo morto. As boas e as ruins. Com o tempo elas vão sendo transferidas para aquele quartinho de despejo que chamamos de inconsciente e lá ficam, latentes, até o momento em que são acionadas por uma espécie de senha que a nossa mente lhe dá. E então elas afloram de novo em nosso sistema neurológico como se estivessem sendo vividas de novo. Aliás, você sabe Maria Eunice, que é assim que a nossa mente trata as informações que a gente recebe do mundo? Pois é. A toda experiência que o nosso organismo é submetido na sua tarefa de viver, ela dá um código e uma senha e arquiva no nosso banco de memórias. Ela as classifica pela intensidade de dor ou de prazer que cada experiência nos provoca. Por exemplo, cada beijo que nós trocamos, cada abraço, cara carícia, cada olhar, cada passeio que nós demos juntos, cada filme que assistimos, a primeira vez que fizemos amor naquele meu fusquinha, e também as nossas brigas, os nossos desentendimentos, os nossos momentos ruins, tudo isso foram experiências que foram codificadas segundo o grau de prazer ou dor que eles nos proporcionaram e ganharam nomes e senhas segundo as quais a nossa memória as seleciona e acessa quando essa senha é posta. Nomes como saudade, nostalgia, raiva, ódio, amor, indiferença, tesão, angústia, arrependimento, orgulho, etc, são títulos que a nossa mente coloca no sentimento que cada experiência vivida nos proporcionou. E quanto maior o grau de prazer ou dor que esse sentimento nos provoca quando acionado, com maior nitidez ele aparece na tela da nossa memória e com maior intensidade ele vibra nos circuitos da nossa rede neural. E sempre há uma senha que os acessa. As vezes é um som. Você se lembra da nossa música?
Se o azul do céu, escurecer, E a alegria na terra, fenecer,
Não importa, querida,
Viverei, do nosso amor. Se tu és, o sol dos dias meus,
Se os meus beijos, sempre, forem teus,
Não importa, querida,
O amargor das dores, desta vida. Um punhado de estrelas, No infinito irei buscar,
E a teus pés esparramar,
Não importa os amigos, Risos, crenças e castigos,
Quero apenas, te adorar. Se o destino, então nos separar,
Se distante a morte, te encontrar,
Não importa, querida,
Porque eu morrerei, também. Quando enfim. a vida terminar,
E de um sonho, nada mais restar,
Num milagre, supremo,
Deus fará no céu, te encontrar. Sim, Maria Eunice, nós cantávamos um hino ao amor, sim, mas você sabe por que elegemos essa canção da Edith Piaf como nossa música? Porque, talvez você se lembre, ela estava presente em dois momentos significativos da nossa relação: quando nos beijamos pela primeira vez no portão da sua casa e quando fizemos amor pela primeira vez no banco de trás do meu fusquinha. Nas duas ocasiões era essa música que estava tocando. E a voz chorosa da Wilma Bentivegna, cantando o Hino ao Amor tornou-se, pelo menos para mim, a âncora da minha experiência com você. E é engraçado. Muitos cantores e cantoras gravaram essa música. Altemar Dutra, Dalva de Oliveira, a própria Edith Piaf, mas quando as ouço, elas não eliciam em mesmos sentimentos que a Wilma Bentivegna. Isso é o que se chama âncora. Um estímulo sonoro, visual ou cinestésico que aciona em nós um determinado comportamento ou nos provoca um sentimento. Quando eu era locutor de um parquinho de diversões havia uma moça lá que sempre chorava quando eu tocava aquela música do B.J. Thomas, o Rock and Roll Lullaby. “She was just sixteen and all alone When I came to be So we grew up together My mama child and me Now things were bad and she was scared But whenever I would cry She'd calm my fears and dry my tears With a rock and roll lullaby(...)
Depois eu descobri que ela estava vivendo exatamente a situação que a letra daquela música expressava. Era uma menina de dezesseis anos, grávida e abandonada pelo namorado.
Mas é assim que a nossa mente funciona Maria Eunice. Para tudo ela tem uma senha, uma âncora que a sustenta na memória. Se não fosse assim, todas as memórias das nossas experiências vividas se perderiam no mar do esquecimento e não haveria História nem aprendizagem. Por isso a nossa mente estabelece essas associações, muitas vezes inconscientes, para ligar os fatos e fazer com que a nossa história de vida se desenvolva como se fosse um processo com início, meio e fim. Toda vez que eu subo num ônibus, por exemplo, eu me lembro de você. Pois foi num buzão da Eroles que nós começamos de fato a namorar, lembra? Você estudava de manhã(estava fazendo o curso normal, queria ser professora) e trabalhava de noite naquela fábrica de tecidos. Entrava ás duas da tarde e saia às dez. Tínhamos nos visto no dia anterior, na porta da fábrica. Você havia respondido ao meu galanteio com um sorriso disfarçado. Olhou várias vezes para mim e eu percebi que você gostou. Então, que coincidência maravilhosa, logo de manhã eis que a encontro no ônibus. Você tinha uns cadernos e uns livros em cima dos joelhos. Foi a primeira coisa que reparei em você. Os seus joelhos. Eram lindos. Tinham covinhas. Nunca havia visto antes joelhos com covinhas. Achava-as lindas em seu rosto, mas nos joelhos... Ah! sempre gostei de mulheres joelhudas. Adorava os de Nara Leão. Sentei-me ao seu lado, falei da noite passada, na porta da fábrica, e confessei que havia ido para casa naquela noite e feito aquele soneto que eu transcrevi lá atrás. Recitei para você e depois o escrevi em um dos seus cadernos. Você disse que os versos eram bonitos, mas exagerados. Eu disse que não. Que você era tudo aquilo que os versos diziam e muito mais, porque era assim que eu a via. Então você me disse que estava na terceira série do curso normal e eu fiquei com uma baita vergonha porque não tinha terminado nem o ginasial. “Parei na sétima série”, disse. “Mas você escreve muito bem”, você falou. “ A Carolina Maria de Jesus, aquele que escreveu Quarto de Despejo, também só estudou até, o segundo ano”, respondi. “`É. Certas coisas a gente sente mais do que sabe”, você disse filosoficamente, e foi nesse momento que eu me apaixonei definitivamente por você.
Mas quando nos separamos você disse que eu nunca a amara de verdade. Que o meu amor era mais romantismo que amor. E eu disse que você também não sabia amar. Você amorizava.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 11/01/2012
Alterado em 03/02/2012
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