João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


RETRATO DE UM ASSASSINO

“No dia 26 de janeiro de 2012, pela manhã, quatro indivíduos encapuzados invadiram a casa de uma senhora e a arrastaram, junto com seu pai para um matagal nas proximidades, onde os dois foram executados a tiros. Em princípio pensou-se que se tratava de um assalto, mas logo se verificou que as mortes haviam sido encomendadas. A polícia trabalha com as informações de que as execuções podem ter sido encomendadas pela ex-mulher do namorado da vítima.”
 
                                               ***
 
 
O Dr. Vitor era um homem que se pode chamar de muito bem sucedido. Perto dos quarenta anos bem vividos, naquela fase em que se está cheio de entusiasmo pela vida e com muitos planos na cabeça, ele não podia se queixar de nada. Vivia uma existência para lá de confortável, invejável mesmo. Sua empresa era próspera e respeitada. Ele tinha um padrão de vida elevado, uma vida social intensa e gozava de um respeito profissional conquistado com muito trabalho e competência.
Obteve tudo isso praticando uma disciplina de vida quase espartana, que deixava pouco espaço para sentimentos pessoais e aventuras românticas sérias. Programara a sua vida e aplicara todo o seu talento e capacidade para a realização de um único objetivo, que era ganhar dinheiro e usufruir do prazer que ele poderia lhe proporcionar.
Com tudo isso, ele pensava, poderia comprar também amigos, satisfação pessoal e até amor. Assim, obter sucesso profissional e dinheiro eram os seus sinônimos de felicidade, e até então ele não havia me enganado. Tinha tudo que queria e precisava e a vida caminhava do jeito que ele sempre quis.
 
Durante vários anos não precisou me queixar do modo de vida que escolheu. Ele o satisfazia plenamente. Sentia-se feliz com tudo aquilo. Era estável, equilibrado, auto-suficiente. Casara-se duas vezes, mas também já tivera vários relacionamentos com mulheres lindas e charmosas. A maioria, pensava ele, era até inteligente, pois conseguiram viver bem com ele alguns bons anos e depois lhe tiraram uma bela grana no momento da separação.
Mas nem disso se queixava. Respeitava gente que tinha boas estratégias para ganhar dinheiro. Mesmo que esse dinheiro fosse baixado da sua própria conta bancária. Tudo bem. Nunca se importara em pagar o preço do seu prazer. Era isso que ele comprava e era isso mesmo que recebia. Então estava certo. Elas se davam bem e ele recebia o que queria delas. “Todo negócio é bom quando satisfaz os dois os lados”, dizia ele.
Claro que o Dr. Vitor sabia que nada do que ele tivera com elas foi amor. Tinha certeza que não era porque sempre fora muito consciente dos seus estados interiores. Sabia quando gostava e quando não gostava. Quando estava alegre e quando estava triste. Aprendera a identificar se estava ganhando ou perdendo. Quando se sentia satisfeito ou insatisfeito. Nunca fora um homem dividido, incapaz de isolar e entender os seus sentimentos. Psicólogos e psiquiatras morreriam de fome se dependessem de sujeitos como ele. As igrejas também ficariam vazias e os profissionais da fé teriam que procurar outra profissão.
Nunca se apaixonar, nunca se ligar a alguém por laços de sentimento, de emoções profundas, de envolvimento comprometido; essa era uma opção consciente que ele fizera. Escolhera essa alternativa de vida e estava feliz com ela. Ela lhe dava liberdade para se relacionar com quem quisesse, na hora que quisesse e como ele quisesse. Assim, seus relacionamentos acabavam sendo praticamente negociais, daqueles que quando não estão mais produzindo os resultados desejados a gente paga a multa contratual e desfaz o negócio, sem levar para casa nada mais do que um desfalque na nossa conta bancária. Mas isso era o de menos para ele, por que dinheiro não era problema.
 
Viveu assim até o dia em que encontrou aquela mulher. Aconteceu numa festa. Ele não a conhecia pessoalmente, mas já havia visto a fotografia dela em jornais e revistas. Ela não lhe chamara muito a atenção até então. Afinal, ele não um tipo muito visual, daqueles que fotografam tudo que vê. A mensagem posta em imagem, para ele não era impactante. O que via não o impressionava imediatamente, como acontece com as pessoas muito visuais, pois logo a sua mente procurava decompor a imagem para descobrir o que havia nela de produzido e o que sobrava de natural. Tinha uma mente analítica demais. Não se comovia com o que via, nem se emprenhava pelos ouvidos. Na verdade, era um tipo muito sinestésico, que não costumava comprar nada pela aparência, pelo designe ou pela cor, nem pelo que ouvia falar do produto. Era daqueles que queria testar, provar, pegar, tocar, cheirar, degustar. Adorava o feeling do sentimento puro.
Por isso tinha absoluta certeza que tudo aconteceu quando pegou na mão dela, no momento em que ela o cumprimentou. Ainda agora sentia o calor daquela mão na sua. Lembrava com nitidez dos detalhes.  Sentia ainda o aroma do hálito dela, que o atingira como uma brisa vinda do campo, uma brisa que tendo atravessado o laboratório de um perfumista, vinha informá-lo que uma nova e embriagante essência havia sido sintetizada com as flores que ela havia tocado. 
E aquela pele macia que cobria a pequena e cinzelada mão que ela lhe estendeu para apertar...; a mão que ele apertou e em seguida roçou com os lábios, muito menos para demonstrar cavalheirismo e muito mais para sentir o gosto da pele dela em seus lábios...
Ah! Com uma mulher como aquela ele não se importaria em se tornar monogâmico, pensou imediatamente. Renunciaria às suas crenças de machão conquistador e viveria até o fim da vida em perfeita união conjugal, cumprindo à risca todas as falsas promessas que já fizera no altar, diante do padre e das testemunhas.
Em poucos minutos de conversa e de contemplação ele já sabia que havia se apaixonado irremediavelmente. Tinha quebrado suas próprias regras e se tornara, para sempre, vulnerável. Sentia-se como um cangaceiro cujo corpo fechado havia sido aberto naquela hora por um feitiço irresistível.
 
A mulher que tanto o impressionara era uma socialite. Lembrava-se agora que já tinha visto sua foto em jornais e revistas. Era uma professora universitária que fazia muito trabalho social. Aquele jantar estava sendo promovido pela ONG que ela presidia. Tratava-se de um evento organizado para arrecadar fundos para as obras de caridade que a sua entidade patrocinava.
Que maravilha! Além de linda, cativante, ainda fazia um meritório trabalho social. Não que isso o impressionasse de qualquer modo. Não cultivava o chamado espírito da responsabilidade social. Sempre achara que Deus fez os empresários para ganhar dinheiro e os padres, pastores e filantropos para fazer caridade. Uns e outros são úteis para a dinâmica da sociedade, mas que cada um ficasse na sua sem criticar a escolha do outro.
 Agora, quanto àquela mulher, ela era deveras fascinante! Uma professora universitária, inteligente, que se movimentava elegantemente pelos salões da sociedade paulistana, altiva como uma rainha e com a graça de uma bailarina clássica no palco! Era um autêntico modelo da intelectualidade inteligente, que faz sucesso na vida pessoal e social, sem aquele ranço do socialista invejoso, que vive criticando quem tem dinheiro porque simplesmente não consegue ganhar nenhum. Também não tinha nada a ver com a hipocrisia do capitalista envergonhado, que patrocina projetos sociais para purgar a culpa que sente por ficar rico empesteando o ambiente com os resíduos da sua fábrica, ou o comerciante safado que engorda com o lucro da sua caixa dois. Ela parecia acreditar piamente no que fazia e tudo nela era natural.
 
Não teve dúvidas que essa era, realmente, a mulher que a vida inteira andara procurando sem saber. Nunca encontrara uma mulher de verdade, que fizesse o seu peito arder de vontade de estar com ela. Geralmente o ardume que sentia por mulher costumava se manifestar em outro lugar, no baixo ventre. Nunca naquele lado do peito, onde ficava o coração. Por isso adotara aquele comportamento de cínico inveterado, de machão imune a qualquer envolvimento que passasse de prazer, fosse o prazer do sexo ou o que vinha da certeza de saber que os outros homens o invejavam pela capacidade que tinha de estar sempre acompanhado por mulheres elegantes, deslumbrantes, vistosas, gostosas, que provocavam a inveja dos outros homens.  Na verdade, o que ele chamava de amor era puro erotismo e ostentação.
O convite para esse jantar lhe foi oferecido por um cliente. Foi porque naquela noite estava avulso mesmo. Acabara de se divorciar da segunda esposa (uma das que lhe levara uma boa grana) e estava pronto para saltar sobre o cavalo que passasse encilhado em baixo da sua janela. Então foi ao tal jantar, até porque o seu cliente lhe garantiu que lá encontraria algumas mulheres bonitas.
 O jantar não foi grande coisa. Os mesmos canapés, as mesmas massas e escalopes ao molho madeira, o mesmo vinho ou uísque que se come e bebe em festas afins. Mas quando ela veio à mesa em que ele estava sentado e pegou na sua mão para  cumprimentá-lo, então o raio caiu em cheio na cabeça dele. Aquele rosto angelical, com aquela cascata de cabelos castanhos claros caindo em volumosos cachos sobre os ombros esculturais, aqueles lábios rubros e sedosos, os olhos de um azul profundo e tranqüilizador, emoldurados num conjunto que exibia um deslumbrante espetáculo de beleza e magia sedutora, onde cada olhar, cada palavra pronunciada entravam como promessas deliciosas aos seus sentidos, era algo simplesmente avassalador. Ele não conseguia ver, ouvir, ou pensar em mais nada, a não ser naqueles lábios carnudos que se moviam feito pétalas da mais perfumada rosa sendo acariciada pelo vento.
 
Ah! Era romântico. Isso era mesmo e não se envergonhava. Não tanto por inclinações de personalidade, mas por razões práticas mesmo. Sempre achara que uma postura romântica é uma eficiente ferramenta de sedução e ele aprendera a usá-la muito bem. Era daqueles homens que abrem a porta do carro para a mulher entrar, puxa a cadeira para ela sentar, manda flores dia sim, dia não e nunca critica abertamente itens da sua maquiagem ou do guarda roupa. Apenas sugeria retoques e mandava para ela, no dia seguinte, com um cartão, os itens que ele gostaria que ela usasse quando fosse sair com. Jóias, vestidos bonitos, adereços, coisas assim. Tudo sugerido por outra mulher, uma consultora que costumava ser muito bem paga pelos conselhos que lhe dá. Elas gostavam e ele faturava. Pagava caro por isso, mas o cavalheirismo costuma ser compensador, pensava. Se os homens soubessem o quanto ele rende nesse tipo de investimento, todos investiriam um pouco de si mesmos nesse verniz e nenhuma mulher precisaria reclamar da insensibilidade masculina. 
Durante toda noite não tirou mais os olhos dela. “Deus! O que fizestes comigo? Foi castigo por eu nunca ter acreditado que existias? Foi por isso que pusestes aquela deusa na minha frente, como a dizer-me: ─ Negue-me agora, seu filho da puta! Agora  que te mostrei que a divindade existe e o paraíso é uma realidade!”, foram os pensamentos que martelaram na sua cabeça a noite inteira.
Falou com ela naquela noite e manifestou a disposição da sua empresa em patrocinar um dos projetos da sua ONG. Era verdade. Tinha no orçamento da sua companhia uma verba para essas coisas. “Cumprimos, com isso, a nossa parte nessa nova idiotice que esses socialistas de araque inventaram ― a tal noção de responsabilidade social ― e melhoramos a nossa imagem junto ao mercado. Sei que tudo é uma baita hipocrisia, mas o sucesso nos negócios exige algumas concessões” dizia ele cinicamente.
Marcaram um almoço para dali a dois dias. Ele estava ansioso, mas a razão lhe dizia que não devia dar passos tão rápidos. A sua libido reclamava, mas a sua razão sempre fora uma conselheira de respeito. A experiência lhe ensinara que as mulheres que realmente valem a pena não gostam de abordagens muito explícitas já no primeiro encontro. Elas gostam de namorar um pouco. Procuram saber com quem estão se envolvendo antes de se abrirem para o relacionamento.
Foram ao Gigeto jantar. Ele queria impressionar. Fazia questão de mostrar que não era um tarado que se atira em cima das mulheres logo no primeiro encontro. Jantar num lugar fino sempre cria um clima de romantismo sem resvalar para o lugar comum. Se a coisa não rola, sempre fica o charme e o prazer da noitada.
 
Adotou uma estratégia de aproximação bastante convencional. Falou da sua empresa, dos seus planos para o futuro, das suas crenças pessoais e filosofia empresarial. Ouviu os dela, deixou-a falar bastante sobre o seu trabalho, suas crenças pessoais, sobre os projetos da ONG que ela presidia, as idéias que gostaria de implementar.
Ele sabia que as mulheres gostam disso. Adoram ser tratadas como pessoas que têm muito mais coisas para negociar além do sexo. E ela, na verdade, tinha mesmo. Além de linda e cativante, era uma mulher bem preparada, inteligente, de conversa agradável. Combinação difícil de encontrar numa pessoa só. Companhia perfeita para um homem como ele.
 Lá pelas tantas indagou, com muito cuidado, sobre a vida pessoal dela. Foi aí que começou a desgraça. Ela lhe disse que era casada com um advogado muito conhecido. Deve ter sido muito explícito na linguagem não verbal que o seu rosto expressou, pois ela logo percebeu a imensa decepção que se estampou nele, embora ele tivesse feito um imenso esforço para não mostrar o que estava sentindo com aquela revelação. Mulher tem muito feeling para essas coisas. Daí, pensava, a convicção com que ela lhe falou da sua paixão pelo marido.
Do jeito que ela falou, se ele fosse mulher teria me apaixonado pelo cara. Ele era perfeito. Inteligente, versátil, compreensivo, amoroso, eficiente em seu trabalho, e pelo visto em tudo o mais. Mesmo acreditando que não existe um cara assim, pois em tudo existe um componente de custo e benefício que nos obriga a tirar de um lugar para por em outro, ele ouviu tudo com inveja e rancor. Acreditava ter sido a soma desses sentimentos que denunciara o seu estado interno, pois ele ficava nitidamente estampado no seu rosto, com uma nitidez inconfundível, enquanto ela falava das excelências do marido e do quanto era feliz no casamento. Pudera, por dentro ele estava queimando como um vulcão, ardendo de despeito e ódio.
 
Mulher é um bicho muito sutil. Quando quer, ela sabe afastar qualquer aproximação indesejável. Basta mostrar, com muita convicção, que nenhum novo romance poderá ser melhor do que aquele que ela está vivendo no momento. Que ninguém será capaz de melhorar o que ela já tem. E para o homem que se aventura numa empreitada dessas, nada pior do que saber que entra num jogo onde suas chances de vencer estão reduzidas a zero. 
Mas ele não era de desistir tão fácil. Ainda mais com aquela paixão que o consumia como um fogo inextinguível que se acendia de manhã, quando acordava, e lhe queimava até o último momento em que conseguia fechar os olhos, à noite, bêbado do sono que não chegava, e não raras vezes de álcool mesmo, que ele tomava para dormir, justamente porque não conseguia deixar de pensar naquela mulher.
Foi para casa naquela noite, moído pela frustração. Mas as tratativas para os investimentos que ele prometera fazer na sua ONG lhe permitiam que mantivesse outros contatos com ela. Assim pode fazer mais algumas investidas para ver se conseguia penetrar naquela fortaleza de virtude e perfeição estética, que o havia humilhado justamente naquele ponto nevrálgico que era o seu orgulho de machão conquistador. Usou todos os seus trunfos, seu charme, seu dinheiro, fez as promessas de eterno amor, mas nada disso adiantou. Por fim, depois da quarta investida, ela lhe disse com uma firmeza que não deixava dúvidas: “Por favor, não insista mais. Eu não quero ser indelicada com você. Mas eu amo de verdade meu marido. E o amarei enquanto ele viver.”
 
“Enquanto ele viver”. Essa frase ficou ressoando no cérebro dele. “Enquanto ele viver”. Foi aí que ele teve o maldito insight. “Então, se o problema é esse, removamos o problema.”
 Contratar um matador em São Paulo é mais fácil do que achar um bom encanador. Basta ter dinheiro e tutano para fazer uma coisa dessas. O Dr. Vitor tinha amigos na polícia. Alguns deles faziam bico na sua empresa como seguranças. Disse a um deles (ele sabia que o cara era do ramo) que estava sendo ameaçado por um antigo funcionário que havia sido despedido por justa causa. Estava preocupado com isso por que o cara já mostrara ser violento e perigoso. Ele entendeu logo o que ele queria. O danado era mesmo do ramo. Disse para ele não me preocupar. Era só dar a ficha do indivíduo e ele já era. Serviço limpo e garantido. Os motivos dele não o interessavam. Só o quanto ele podia pagar.
 Combinaram o preço, ele deu todos os detalhes do casal, mostrou uma foto do tal advogado, entregou o endereço, disse quando ele poderia ser pego sozinho, enfim, municiou o sujeito com todas as informações necessárias.
Daí era só esperar pelas notícias. Tinham combinado que ele pagaria a metade antes e o resto depois que o serviço fosse feito. Tudo acordado, o diabólico plano foi posto em execução e ele ficou aguardando, com uma ansiedade mortal.
Três dias depois recebeu um telefonema bem lacônico.
“Dê uma olhada nos jornais de amanhã”.  Logo de manhãzinha correu a uma banca e comprou o jornal. Nas páginas policiais estava a notícia. “Casal assassinado ontem á noite em seu apartamento.” Leu a matéria.
 
“Ontem á noite um homem e uma mulher foram encontrados mortos em seu apartamento na Rua... Ele foi identificado como o advogado ... e ela a professora ..., presidente da Associação... Tudo indica que se trata de um crime passional ou de um assassinato encomendado, pois o assassino não tocou em nada no apartamento. A polícia está examinando o local em busca de pistas e já requisitou todas as fitas gravadas pelo sistema de segurança do prédio e locais vizinhos. Nas próximas horas as autoridades policiais esperam ter alguma novidade sobre o caso (...)”

 
Seu coração deu um salto e todo o corpo esfriou instantaneamente como se naquele momento ele tivesse morrido de verdade. Aliás, tinha certeza que a morte de verdade não seria tão fria, opressiva e dilacerante como foi aquele golpe que o atingiu direto no coração, como um punhal que lhe estivesse sendo espetado ali numa estocada certeira e fatal.
 Não foi trabalhar naquele dia. Ficou no apartamento, se consumindo numa angústia dilacerante, esperando o cara vir buscar o restante do dinheiro. O que fizera aquele imbecil? Ele destruíra também o objeto dos seus desejos, aquilo pelo qual ele se envolvera naquela aventura insana. Não sabia se o que sentia era medo ou ódio. Ou dor ou desespero.  O que aconteceria agora? Que loucura ele fizera? Era aquilo um castigo de Deus? Uma ironia do destino? O Diabo estaria brincando com ele?
─ Meu Deus! O que você fez, imbecil? Eu não lhe dei todas as indicações? Não lhe disse para ir exatamente naquele dia e naquela hora para pegar o cara sozinho? Por que você matou a mulher? Era só do cara que eu queria me livrar.
─ É verdade patrão, o senhor falou, estava tudo certo, mas não deu não. Eu tinha acabado de despachar o cara com três tiros e já estava pronto para sair. Mas de repente a mulher entrou no apartamento. Ela havia saído, como o senhor disse, mas não sei porque cargas d!água voltou. Acho que esqueceu alguma coisa. Ela me viu e começou a gritar. O senhor sabe, eu não podia ser reconhecido, por isso atirei nela também. Mas não se preocupe que eu não vou lhe cobrar nada por isso.
 
Ah! O maldito! E que maldito fosse ele também pelo resto da sua agora curta e odiosa existência e por toda a eternidade também, se algo assim existisse. Para que continuar vivendo agora?
O Dr. Vitor até ficou até satisfeito quando a polícia pegou aquele idiota e ele entregou tudo. Ele não tinha argumentos nem álibis para negar as provas que as câmeras de televisão do prédio proveram contra ele, e ele não tinha motivação e nem vontade de negar a sua participação nesse sórdido negócio.
A promotoria e a imprensa adoram casos como esse. A mídia exulta quando o escândalo aflora na parte fina da sociedade. Todo mundo sabe que a podridão, nos mundo dos granfinos é um lugar comum, mas ela quase nunca é percebida por que acaba sendo disfarçada com o perfume do dinheiro e a roupagem do poder. Na classe pobre ela é diária e banalizada. Por que dá poucos pontos no Ibope, a mídia a ignora e o Ministério Público a trata com pouco caso. Agora, um empresário que encomenda a morte de um advogado bem sucedido porque queria ficar com a mulher dele e contrata um pistoleiro trapalhão que mata os dois, que prato poderia ser mais saboroso para a promotoria e especialmente para a imprensa sensacionalista?
 
O Dr. Vitor foi condenado a trinta anos de cadeia. Mas isso é o que menos o aborrece agora. Ele sabia que merecia. E além de merecer, que lhe importava a vida agora se tudo que ele mais desejava já não existia? Ele, na verdade, já se sentia morto também. Era uma primeira morte que antecedia a segunda, que deveria ocorrer naquela noite. Ele a estava digerindo como uma espécie de antepasto, igual aqueles que comia nos jantares caros nos restaurantes bacanas onde ia e levava as namoradas.
O quanto tudo isso lhe parecia vazio e sem propósito agora... Não era muito dado a tiradas filosóficas, mas não podia deixar de se sentir como aquele personagem do romance de Sartre, que via a vida como um longo rosário de ações destinadas a preencher um vazio sem fim. Uma jornada inglória, besta e inútil entre o Ser e o Nada. 
 Naquela noite, no escuro da sua cela, ele ia dar um fim definitivo aos seus miseráveis dias. Pensava, melancolicamente, que se tudo que fazemos se destina a preencher um vazio que nunca se esgota, então algumas gotas a mais ou a menos não fariam diferença nenhuma no conteúdo deste vaso de amarguras.
Talvez ele viesse a se encontrar com a sua deusa nessa outra vida que dizem existir depois desta. Então ele lhe pediria perdão pelo tresloucado amor que lhes ceifara as vidas no melhor momento em que eles as estavam vivendo. Ele nunca acreditara em vida após a morte, mas naquela noite, antes de realizar aquele ato supremo, iria rezar com muita devoção para que isso fosse verdade. Quem sabe, livre daquelas loucas memórias de um louco amor, ele possa dar um final diferente para a sua triste história.
Se não, iria arder para sempre no inferno, se esse lugar efetivamente existisse. Mas isso é o que menos o amedrontava naquele momento. Dificilmente a sua existência nesse lugar de horrores seria menos suportável do que a dor do remorso que estava sentindo.
 

 


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 28/01/2012
Alterado em 29/01/2012


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