“Durante o dia procuro entender-me com o mundo. Cedo aos seus apelos racionais porque também me acredito racional. Então concedo-lhe uma boa parte do meus pensamentos porque também almejo alcançar os prêmios que ele concede aos que o amam. Os que amam o mundo terão a recompensa do mundo, poderia ter dito Jesus se lembrasse de fazê-lo e não tivesse tão preocupado em convencer os seus ouvintes a trocar os bens da terra por um lote de terra no céu.”
“Já houve um tempo em que pensei que poderia destruir o mundo em que eu vivia e depois remontá-lo da forma que parecia ser mais correta em meu coração. Todo mundo já foi idealista um dia, todo mundo já achou que poderia ser um Messias da próxima geração, um vingador dos injustiçados, um Don Quixote dos descamisados.”
“ E quantos amigos eu não tive que compartilham desses meus anseios. Se eu me propusesse a ser um Don Quixote e saísse pelo mundo a lutar contra os moinhos de vento da minha ilusão, tenho certeza que teria mais escudeiros do que aquele pobre aldeão da Mancha que afinal morreu louco.”
“Essa doença é tão antiga quanto o homem. Penso nos meus colegas de faculdade. Os que não mudaram de opinião, como eu, foram sacrificados no altar dos próprios sonhos, na igreja que construíram com as próprias ilusões. Alguns morreram tentando realizá-los, outros começaram, mas desistiram depois de ver que algumas empreitadas exigem mais que simples homens.”
“Os que mudaram de opinião aprenderam a amar o mundo da forma como ele quer ser amado: racionalmente. E foram premiados. Constituem o que chamamos hoje de sociedade afluente. E eu faço parte dessa gente.”
“Talvez tenham razão aqueles que dizem que eu não consigo mesmo me envolver com coisa alguma. Quando o pessoal da minha faculdade me chamou para ir lá para a Maria Antônia brigar com o os caras do Makenzie eu não fui. Quando me chamavam para fazer passeatas para protestar contra a invasão do Tuca eu recusei porque achava ridículo aquilo. Distribuir panfletos metendo o pau nos milicos pior ainda. Eu tinha medo. Assim como de casar, ter filhos, criá-los, educá-los, levá-los á escola, freqüentar reuniões de pais e mestres, credo! E ter que arranjar um emprego fixo para poder ganhar o suficiente para bancar todas essas exigências que o principio do desempenho nos faz...”
“ Não. As verdades que eu perco durante o dia encontro-as no meio da noite. Não tenho virtudes, talvez não durma. Ou talvez seja virtuoso demais, por isso também não durmo. É que não quero perder nada que acontece no mundo, por isso não me proponho pagar ao sono tantas horas da minha vida por conta de uma reposição de energias, que dizem, o sono propicia. Acho que posso reconstituir-me melhor das fadigas do dia posando nu no meu espírito, nesta janela sobre o universo, recebendo os influxos da noite, me apropriando da energia universal enquanto os homens dormem e não me fazem concorrência.”
“ Por isso a minha máquina analógica fica nesta janela trabalhando enquanto os outros preferem desligá-la por algumas horas. E depois tenho comigo este medo mortal de acordar simplesmente morto.”
“ Se eu me atirasse desta janela eu me mataria e mataria também esta inquietude e os olhos do mundo se voltariam para mim.
Vejo-me agora lá embaixo, curiosamente limpo de sangue e sem nenhum osso quebrado, apenas com o pescoço artisticamente quebrado.
“Os que me olham não compreendem o que fiz, porque acham que eu não tinha motivo nenhum para terminar com esta parceria tão produtiva entre um corpo e um espírito, um tão ativo, o outro tão otimista, que pareciam se amar tanto.”
“Talvez eu quisesse matar-me para que alguém pudesse dizer alguma coisa de mim.
Que posso dizer de mim além do que minha mãe já disse? Houve um tempo em que pensei ter a verdade, mas depois descobri que estava enganado porque comecei a achar que a minha verdade era a única possível de estar certa.
E quando descobri que havia pelo menos uma centena de outras igualmente exeqüíveis achei que finalmente estava certo porque soube afinal que estava errado e ninguém contesta um homem que admite que errou.”
“E agora, nem certo nem errado, só queria me sentir irmanado com aquele cão, lá embaixo, único ser que dignou-se a olhar para mim nesta soturna hora da noite.”
“Quisera poder dizer-lhe boa-noite, como a um amigo das horas tardias, sem nenhum bar aberto, que aparece inopinadamente e traz uma garrafa cheia e uma grande vontade de dividir.”
“Fosse eu mais irmão das coisas, não me sentiria tão só no universo, nesta hora tardia, especulando nesta janela.”
“Aquela árvore acolá, da qual só distingo o vulto, seria para mim muito mais que uma árvore e eu não precisaria mais do que a presença dela no limite da minha visão para me sentir em comunhão com ela.”
“Mas perdi a fraternidade por tudo que não seja do meu sangue, e além da complementação útil que a sociedade me proporciona, nada mais me liga a nada.”
“A vida, nestas horas da noite, em que todos os sentidos, menos os sinestésicos, estão adormecidos, não parece ser mais que um ranger de ossos no escuro e o tuc tuc de um coração batendo um monótono compasso de segundos, que parece seguir os ponteiros de um relógio na sua inútil circunvolução.”
“E este trabalho de fole que o peito inutilmente continua.”
“Continuo, no entanto, tentando compreender tudo, como se compreender fosse resolver alguma coisa.”
“Todos os sábios que tentaram fazer isso já morreram e não me consta que algum deles tenha sido mais feliz do que a minha empregada no dia so seu pagamento.”
“Talvez ela saiba que ser feliz é uma questão de sentir o que se vive enquanto eu fico pensando que sou infeliz porque nada sinto que valha a pena e para substituir essa miséria sentimental eu especulo.”
“E enquanto faço especulações não me ocorre nenhum sentimento porque a mente não pode processar duas informações de diferentes conteúdos ao mesmo tempo.”
“E como especulo o tempo inteiro não me sobre tempo para sentir se sou feliz ou não.”
“Queria matar-me hoje, mas não queria simplesmente morrer”.
“Queria antes poder acreditar que tenho objetivos na vida e matar-se seria apenas mais um que me apareceu inopinadamente no cérebro febril desta noite numa janela qualquer de um universo tão grande, mas também tão pequeno que nele eu consigo ouvir o eco dos meus próprios pensamentos.
“Objetivos. Eu sei que a maior parte das pessoas não os tenta alcançar porque pensam que não os podem alcançar.”
“Medem as próprias pernas pelas pernas alheias e não vão para a raia porque temem não ser tão rápidos como outros que correm atrás dos seus objetivos e os alcançam.”
“Miram-se em retratos alheios e fazem deles seus próprios retratos.”
“Não sabem que jamais serão iguais aos seus modelos porque no universo tudo é impresso em cópia única e não se permite a duplicata.”
“No jogo da vida não se admitem dois azes do mesmo naipe e a natureza, embora permita a semelhança, odeia o plágio e a cópia.”
“Eu sei de tudo isso. Mas saber não é fazer. Por isso aqui estou eu, buscando uma identidade no infinito, se esquecendo talvez, que ela esteja no mais íntimo de mim mesmo.”
“Mas amanhã será um novo dia de trabalho e a minha mente também precisa de repouso.”
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 03/02/2012
Alterado em 03/02/2012