João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


A múmia do capitão
 
 
 
 
           Não se sabe de que força ele era ou foi. Se do exército, da polícia, marinha ou aeronáutica, o fato é que ninguém jamais o vira fardado, nem como adquirira a patente que ele ostentava. Mas todos o conheciam como Capitão. Era o Capitão Tinoco.
          Talvez fosse apenas apelido. Afinal, na cidade havia também um sargento Zacarias, um coronel Salustiano, um brigadeiro Farias, o major Faustino, o cabo Lua, e nenhum deles, a que se saiba, jamais vestira uma farda na vida.  Mas ostentavam essas patentes, da mesma forma que o Almirante, aquele cantor e compositor de sambas, ou aqueles apresentadores de programas sertanejos que gostavam de adotar nomes artísticos baseados em patentes militares. Os mais antigos certamente se lembrarão do Capitão Barduino, do Comendador Biguá, do Capitão Furtado, do Cabo Pitanga, simpáticos radialistas que apresentavam programas sertanejos nas madrugadas paulistanas.
 
         O Capitão Tinoco não era radialista nem apresentador de programas sertanejos. Seu avô havia sido membro da antiga Guarda Nacional, com a patente de capitão, e seu pai herdara o título honorífico e o passara para ele. Era uma tradição que a família mantinha e as pessoas respeitavam, porque, afinal de contas, isso não incomodava ninguém. 
         O Capitão Tinoco era, na verdade, um sujeito bonachão, que trocava figurinhas de jogadores de futebol com a molecada, batia bafo, rodava pião, jogava gude e empinava pipas como se fosse ele também, um moleque. Por isso a criançada o adorava.
          Possuía um forde bigode que era usado concomitantemente como ambulância, táxi, caminhão para transportar mudanças, etc. Servia para tudo a charanga dele. Todo mundo que precisasse de transporte para alguma coisa o chamava. E ele nunca negava. E também nunca cobrava nada de ninguém.
          Só pedia votos na época das eleições. Dessa forma ele sempre era eleito. Foi vereador por seis legi slaturas seguidas e chegou a ser vice-prefeito duas vezes.   
          Sua popularidade era inconteste e ele se sentia o mais amado dos cidadãos da sua comunidade. Até o dia em que lanço a sua candidatura a prefeito e não conseguiu se eleger. Foi vencido por apenas dez votos. O povo preferiu eleger o Dr. Belizário, um advogado da cidade, que de há muito era adversário político do Capitão. 
 
          Ele ficou muito magoado com o povo da cidade. Afinal de contas, toda a vida dele fora dedicada ao serviço da comunidade. E na hora que ele mais precisou, o povo a quem ele serviu durante uma vida inteira o preteriu em favor de um sujeito que jamais tinha feito nada por ninguém, a não ser enganar as pessoas, pois que todos os advogados só sabem mesmo fazer isso, como ele dizia.
          Sua mágoa era tão grande que degenerou numa úlcera enorme que ele só conseguia controlar à custa de muito medicamento. Por conta disso, o Capitão Tinoco se tornou de fato uma pessoa muito amarga. Já não era mais aquele sujeito bonachão que nos sábados de Aleluia fazia bonecos de pano e amarrava nos postes para a molecada malhar o Judas. E depois da malhação jogava balas para os garotos. Parou de brincar com os meninos na rua e nunca mais emprestou seu forde bigode para ficar levando gente para o hospital ou transportar bujões de gás, cadeiras de rodas e outras coisas que ele costumava carregar para as pessoas.
          Também deixou de praticar o ato que durante mais de trinta anos foi o acontecimento mais marcante nos natais da cidade: a farta distribuição de brinquedos que ele fazia para as crianças pobres e o grande almoço que ele patrocinava para elas.  
 
           Ele era o proprietário do único cinema da cidade. Estava instalado numa sala bem grande com mais de quinhentas cadeiras de madeira. O Capitão ficava na bilheteria vendendo os ingressos e quando a lotação passava dos cinqüenta por cento ele costumava deixar os garotos pobres, que não tinham dinheiro para comprar os bilhetes, entrar de graça. Por isso, todo dia aparecia aquele monte de garotos na porta do cinema, e ficavam ali, esperando que o Capitão liberasse a entrada. Era aquela farra.
           Depois da perda da eleição essa benevolência que ele tinha com a garotada pobre da cidade também foi cortada. Custou um bom tempo e alguma violência por parte dos dois seguranças do cinema (um crioulo fortão chamado Landão, ex-policial expulso da corporação da Guarda Civil e outro sujeito mal encarado conhecido como Gogó, cuja mão, segundo os garotos, pesava mais que um paralelepípido) para que eles deixassem de se aglomerar na porta do cinema, esperando a hora do Capitão liberar a entrada deles. A garotada não entendia aquela mudança abrupta de comportamento.  
           Como uma pessoa tão boa se tornara, assim tão repente, tão ruim? 
A mudança de comportamento do Capitão logo foi notada na cidade. E não foi perdoada nem entendida. Ao contrário, ele, que era uma pessoa querida e admirada por todos, logo passou a ser persona não grata em praticamente todos os lugares que ia. Diga-se, por oportuno, que eram poucos os lugares em que ele aparecia.
           Na verdade, desenvolvera uma ojeriza tão grande pelas pessoas da cidade, que na sua ótica o haviam traído, que já não fazia questão de vê-las. Tornou-se um ermitão, que ia da casa para o cinema, do cinema para casa, sem cumprimentar nem falar com ninguém.

           Com as poucas pessoas com quem ainda conseguia conversar o assunto não era outro: a abjeta traição do povo a quem ele sempre servira. Com o tempo, eram raras as pessoas que conseguiam ver ou se comunicar com o Capitão. Ele só era visto toda semana na farmácia, comprando os medicamentos para a sua úlcera, que segundo o farmacêutico, estavam sendo usados por ele em doses cavalares.
 
           Por isso não provocou nenhuma comoção na cidade a notícia da morte do Capitão Tinoco. O farmacêutico disse que não podia entender como aquele homem ainda continuava vivo, depois daquelas doses cavalares de antibióticos e antiinflamatórios que ele tomava todos os dias. A última vez que o vira ele parecia mesmo uma múmia ambulante. Era só pele e ossos. Um verdadeiro esqueleto coberto com uma película que estava mais para papel celofane do que para pele de verdade. Era brilhante e enrugada como um pergaminho. Ele estava mesmo com uma figura de tal modo extravagante e assustadora que se fosse encontrada à noite num beco escuro, certamente seria tomada por uma assombração, ou um defunto exumado.
           Na verdade, a cidade inteira sentiu alívio com a morte do Capitão. Ele havia se tornado muito inconveniente nos últimos tempos com aquele ódio que desenvolvera pelas pessoas. Falava a quem o escutasse que fizera um pacto com o demônio para se vingar do povo daquela cidade. Que dera a sua alma por conta daquela prerrogativa. E nos últimos dias dizia que já não tinha mais alma, pois que o diabo já a levara. E que era somente o seu corpo que ainda andava pelo mundo, esperando pela hora do desenlace, que seria também a hora da vingança.
           Claro que todo mundo achava que o Capitão havia ficado louco, que o ódio havia destruído não só o seu estômago com aquela úlcera, mas também o seu cérebro havia sido prejudicado por conta de todos os remédios que tomava. Por isso vivia falando aquelas sandices. Mas também havia aqueles que tinham medo, e por isso, quando souberam da morte do Capitão ficaram extremamente aliviados. Um deles era o Dr. Belizário, que mesmo sendo um advogado, tido como um homem inteligente e preparado, não obstante, não conseguia refrear aquele arrepio na espinha quando via, na rua, aquela múmia ambulante em que se tornara o Capitão.
 
          Ele tinha apenas um filho, que herdou todos os seus bens, inclusive o cinema. Mas como o rapaz tinha os próprios interesses para cuidar, resolveu vendê-lo.  Quem o comprou foi justamente o Dr. Belizário. Afinal, o cinema era um bom negócio. Além de ser o único da cidade, não havia outras opções de lazer ali. Principalmente nos fins de semana, as três sessões do dia estavam sempre lotadas.
          Não haviam se passado mais seis meses do enterro do Capitão, quando um acontecimento infausto provocou um grande trauma na cidade, enchendo de tristeza e luto várias famílias daquela comunidade. Era um sábado, e o cinema estava completamente lotado, pois justamente naquela noite estava passando um filme do Mazzaropi. Os filmes do famoso humorista caipira eram a maior bilheteria da época. Nenhum clássico de Hollywood conseguia levar mais gente aos cinemas do que ele. E naquela ocasião todas as quinhentas e tantas cadeiras da sala estavam ocupadas.
         De repente o teto do cinema desabou. Praticamente a laje toda, de uma só vez, caiu sobre a multidão feliz e sorridente com as trapalhadas do Mazzaropi. Toneladas de ferro, concreto e lajotas, sem qualquer motivo aparente, sepultam as quinhentas e tantas pessoas que estavam na sala, sem dar tempo para que elas fugissem. 
          Foi uma coisa tão rápida e inesperada que ninguém teve tempo de esboçar qualquer reação. Vinte e seis pessoas morreram no ato, doze mais tarde, por causa dos ferimentos, e as demais, que escaparam da morte, nenhuma delas saiu sem um machucado.

           Nem os bombeiros, nem a polícia, nem os peritos contratados para apurar a causa do desabamento conseguiram dar qualquer resposta técnica para o fato. Todos foram unânimes em informar que não havia defeito na construção nem qualquer outro problema de conservação que pudesse ter causado o acidente. O Dr. Belizário, ainda que não tenha sido responsabilizado pelo acidente, teve, no entanto, por força de decisão judicial, que suportar os custos do enterro da maioria das vítimas e do tratamento dos feridos. Ficou praticamente reduzido à miséria. E houve quem dissesse que ele também ficara louco depois, pois vivia dizendo a todo mundo que quem derrubara o cinema fora o Capitão Tinoco.
 
          Transcorridos mais de dez anos desse terrível acontecimento, a cidade praticamente se esquecera do fato. Ninguém sequer se lembrava mais do Capitão Tinoco nem falava do acidente do cinema.  
          Até que um dia, vinte anos mais tarde, faleceu o filho do Capitão e ele foi levado a sepultamento na tumba da família. Era uma tumba de três gavetas, que já estavam ocupadas, razão pela qual a família pediu à administração do cemitério que removesse os ossos dos três defuntos ali sepultados para o ossário, para abrir espaço para o corpo do novo defunto.

           Quando abriram o esquife do capitão, os coveiros estranharam o fato de o corpo estar virado de lado em posição completamente diferente daquela em que fora enterrado. Mas o que arrancou deles um grito de horror e depois um pedido de demissão daquele emprego foi o que eles presenciaram depois, quando tiraram os restos da mortalha que cobria os restos mortais do capitão. Pois o corpo estava exatamente igual ao que era no dia em que o enterraram. Seu cadáver não havia se decomposto e apresentava aquela mesma aparência mumificada que ele apresentava em seus últimos tempos de vida.
            Mas o que os assustou mais foi o sorriso diabólico que ele ostentava nos lábios. E não demorou muito, logo começou a aparecer um monte de gente afirmando ter visto a múmia do Capitão Tinoco andando pela cidade naquele dia em o que o teto do cinema ruiu.

Essa história é contada na cidade até os dias de hoje.
           



João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 20/07/2012


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