O ÊXODO: VERDADE OU LENDA?
“Depois disso um homem da família de Levi, partiu e tomou por esposa uma mulher de sua estirpe, a qual concebeu, e deu à luz um filho (...)“Êxodo, 1;1,2.
Quatrocentos anos Israel viveu como escravo,
No vale do Nilo sofrendo angústia e muita dor.
Mas seu coração foi sempre fiel e muito bravo,
E não se afastou dos bons caminhos do Senhor.
Todo esse tempo eles mantiveram a esperança,
Que o Senhor Deus do seu povo se lembrasse,
E cumprisse a promessa de lhes dar a liderança,
Que daquela abjeta e vil servidão os libertasse.
Pois foi então que do útero da levita Iochabel,
A mulher de Anrin, pai de Miriam e de Aarão,
Deus fez nascer um líder para o povo de Israel.
Assim foi Moisés − homem santo e de talentos,
Que além de libertar o seu povo da escravidão
A ele deu também uma pátria e Mandamentos.
João Anatalino- O Sal da Terra- A Biblia Sonetada
O Problema histórico
O Exodo é um fato histórico que ocorreu de verdade? A Bíblia diz que sim e longe de nós contestar esse que é o mais venerando dos livros. Todavia, a arqueologia moderna tem tido muita dificuldade para encontrar provas materiais desse grande acontecimento, que moldou toda a história do Oriente Médio, influenciou a cultura ocidental e continua, ainda hoje, a refletir na vida de todos de todos os povos cuja herança espiritual tem sua raízes na Bíblia judaica.
A Bíblia não fornece pistas seguras para que se possam aquilatar, com certeza, se os formidáveis eventos narrados no Livro do Êxodo realmente ocorreram como ali se descreve, ou se foram criados por um autor, ou autores, dotados de muita imaginação e algum conhecimento histórico, sociológico e geográfico, que a partir de acontecimentos verídicos e lendas antigas montaram uma formidável saga histórica destinada a fornecer à Israel uma justificativa para as suas reivindicações sobre os parcos recursos naturais existentes na chamada Terra Santa.
Vários autores chamam a atenção para a impossibilidade de um vasto contingente de pessoas, mais de seiscentas mil como diz a Bíblia, ter sobrevivido daquele modo numa terra inóspita por tantos anos – cerca de quarenta anos- e pior ainda, não ter deixado nenhum rastro pelos lugares onde passou, lugares esses devidamente citados no Exodo, e que já foram identificados pelos arqueólogos. Mas esses lugares, segundo esses estudiosos, na época em que supostamente o fato teria ocorrido, eram completamente desabitados e não se encontrou lá qualquer sinal de presença humana antes do século VI a C. Considerando que o Êxodo teria ocorrido na época do Faraó Ransés II, segundo sugestões dos cronistas bíblicos, que citam as cidades de Phiton e Pi-Ransés, cidades construídas por esse faraó e citadas como uma das obras construídas pelos israelitas escravos, a coisa fica complicada, pois esse faraó viveu no século XIII a.C, ou seja mais de seiscentos anos antes de qualquer pessoa ter habitado os lugares onde supostamente os israelitas teriam acampado, na sua jornada para Canaã.
Muitos historiadores acreditam que a história do Êxodo está ligada com a memória da expulsão dos hicsos do Egito. Os hicsos eram um povo semita, provavelmente da mesma origem dos israelitas que ocuparam o Egito durante mais de dois séculos. Segundo Maneton, historiador egípcio que viveu no século dois antes de Cristo, essa ocupação teria sido feita de maneira pacífica, através de uma imigração incentivada pelas próprias autoridades egípcias, carentes de mão de obra para a construção de grandes obras públicas. Mas depois a presença estrangeira no delta do Nilo se tornou tão forte que ela passou a ser dominante. Os semitas, em certo momento, acabaram assumindo o poder e governaram o Egito através dos seus “reis pastores”. Foi só no século XV a C. que os egípcios, através do faraó conhecido como Tutmés I, reassumiram o poder e expulsaram do delta os chamados povos hicsos. Houve então, segundo esse historiador, uma grande emigração forçada dos estrangeiros, principalmente para as terras quase desabitadas do interior da Palestina e da Arábia. Os que ficaram foram dominados pelos egípcios e forçados a trabalhar nas obras públicas faraônicas, mas agora como escravos. Esse episódio teria ocorrido no segundo milênio a. C. e durante muito séculos repercutiu na região como sendo um verdadeiro marco divisor de eras e fator de influência em toda a geopolítica da região.(1)
Uma hipótese interessante
Segundo as crônicas bíblicas o número dos israelitas que saíram do Egito no Êxodo foi de seiscentas mil pessoas. Guiadas por Moisés, eles atravessaram o Mar de Juncos, uma estreita faixa de terra alagada que contornava o Mar Vermelho e se dirigiram ao deserto do Sinai, para onde o Senhor, pela mão de Moisés, os guiou. Ali, segundo instruções do Senhor, Ele inscreveria na mente e nos corações dos filhos de Israel os seus mandamentos. E assim eles acamparam na base da montanha, enquanto Moisés subia para receber das mãos de Deus as tábuas da lei. Mas como Moisés demorasse demais na montanha, os israelitas se impacientaram com a falta de comida e com as privações que estavam passando; e aproveitando a ausência de Moisés, alguns indivíduos mais afoitos armaram uma rebelião e obrigaram Aarão a fundir um bezerro de ouro para servir-lhes de divindade. E depois dançaram e fizeram um grande festim em volta do ídolo. Quando Moisés desceu da montanha com as tábuas da lei nas mãos, viu a idolatria em que seu povo havia recaído, e assim, irado em extremo, quebrou as duas pedras onde Deus havia gravado os Dez Mandamentos e chamou contra os pecadores um terrível castigo, fazendo a terra se abrir e engolir milhares de idólatras.[2]
É possível perceber, na narração desses fatos, o sentido ritualístico e simbólico que lhe são dados nos cinco livros do Pentateuco. Já dissemos que tradições constantes do Talmud e nas obras de antigos escritores como Maneton, Apião, Flávio Josefo, Filon e outros, sugerem ser a saga dos hebreus, conforme descrita no livro do Êxodo, uma autêntica jornada iniciática. Essas tradições sugerem que Moisés, ao sair do Egito com o povo hebreu, na verdade o conduziu a um santuário dedicado ao deus Aton no alto do Monte Sinai, onde certamente estaria a salvo da perseguição que lhe movia as autoridades egípcias, pois Moisés, na verdade, era um sacerdote egípcio que teria apoiado o faraó Akhenaton na sua tentativa de implantar no Egito uma religião monoteísta, baseada no culto do deus Aton. Essa tentativa gerou uma terrível guerra religiosa no Egito, que acabou provocando o extermínio de milhares de pessoas, inclusive a família do próprio faraó.
Há também algumas especulações de autores modernos como Sigmund Freud, por exemplo, (Moisés e o Monoteísmo, Londres, 1939), que sugerem que Moisés e Akhenaton são, na verdade, a mesma pessoa e que o episódio da liberação dos hebreus do Egito nada mais é do que um conjunto de memórias da revolução monoteísta que aquele faraó promoveu no século XIV a C. no Egito.
Isso explicaria as constantes recaídas dos hebreus na idolatria e nos costumes e tradições pagãs, que tanta preocupação e angústia provocaram em Moisés e Aarão. Isso mostraria que a ideologia que inspirou o povo de Israel na adoção da sua religião monoteísta e diferenciada dos povos da região, pode, realmente, ter inspiração bastante diferente daquela que comumente se julga ter e constitui uma hipótese bem interessante.
Os relatos bíblicos não são convincentes do fato de que Israel, como povo, já tivesse tal identidade religiosa e cultural quando saiu do Egito. Essa identidade parece ter sido cunhada por Moisés a partir de uma visão dele próprio e não de um povo que já a cultivava anteriormente. Isso transparece na constatação de que antes de Moisés, Jeová, o Deus dos hebreus, era adorado por esse povo na condição de um Deus particular e não como uma divindade universal e única. Na Palestina ele dividia o panteão dos deuses com outras divindades locais, tais como Amon (dos amonitas), Quemosh, dos moabitas, Dagon dos filisteus, Baal dos sírios, etc. Assim, eram várias as divindades dos povos palestinos, sendo Jeová apenas uma delas, e o seu culto não tinha a pretensão de universalidade, embora os hebreus o colocassem acima de todas as outras.[3]
Destarte, o caráter da unidade e da universalidade de Deus teria sido, na verdade, uma realização de Moisés, ou Akhenaton, se realmente eles forem a mesma pessoa, ou partidários
A Hipótese maçônica
Uma visão exclusivamente maçônica tende a ver no episódio do Êxodo israelita uma autêntica jornada iniciática, da qual nasceu de fato a prática dos Irmãos viverem em Loja, porque esta foi, em princípio, toda a nação de Israel. Destarte, a nação dos hebreus pode ser vista como uma verdadeira Fraternidade, iniciada no sol do deserto, nas provas de fé e na estrita observância dos preceitos ditados pelo Grande Arquiteto do Universo. [4]
É nesta analogia que se sustenta a idéia de que o Êxodo foi, na verdade, uma grande jornada em que o povo de Israel foi iniciado nos Sagrados Mistérios da religião hebraica e constituiu, a partir da sua organização como povo livre, a primeira experiência verdadeiramente maçônica da História. Nessa jornada eles enfrentaram o sol do deserto, os ventos, a terra seca e as águas do Mar Vermelho; e então se pode dizer que eles foram purificados pelo fogo, pela água, pelo ar e pela terra, como são, ainda hoje, os irmãos que são iniciados nos sagrados Mistérios da Arte Real.
O Êxodo foi, portanto, uma jornada de purificação, que se assemelha às grandes aventuras do espírito, que resultam em profundas modificações interiores. Note-se que esse simbolismo está presente em todas as experiências místicas vividas pelos grandes líderes religiosos de todos os tempos. Moisés encontra Deus no Sinai, Buda encontra a Verdade na meditação solitária, João Batista é a “Vóz que clama no deserto”, Jesus se prepara para a sua missão em quarenta dias de jejum no deserto, Maomé descobre a sua missão na Hégira (sua fuga de Medina para Meca, atravessando o deserto), etc. Por isso toda iniciação deve ser precedida de uma “purificação” praticada na solidão de um retiro e nas vicissitudes de uma “viagem iniciática”. Aqui se modela o arquétipo da iniciação, presente no Inconsciente Coletivo da humanidade como símbolo de união do homem com o meio do qual foi levantado. [5]
E foi por isso, também, que o Grande Arquiteto do Universo os fez habitar no deserto por quarenta anos antes de entregar-lhes a Terra Prometida; pela mesma razão os submeteu a duras provas, pois é da tradição iniciática a noção de que unicamente aqueles que conseguem sobreviver a elas e mantém a fé podem ser considerados dignos de participar dos Mistérios em que estão sendo iniciados.[6]
Somente pelo caráter iniciático que essa peregrinação pelo deserto assume é possível entender os episódios que são narrados no Êxodo. Na verdade, ainda que os israelenses fossem forçados a viver no deserto, como nômades, como fazem os beduínos ainda hoje, até conseguirem se tornar fortes o suficiente para conquistar uma parcela das terras palestinas para ali se estabelecer, é inconcebível que um contingente tão grande de pessoas pudesse ter sobrevivido dessa forma e que essa formidável aventura não tivesse deixado algum rastro que pudesse ser recenseado. Mais de seiscentas mil pessoas, vivendo por quarenta anos no deserto uma vida dura e perigosa certamente deixariam muitas reminiscências para serem exploradas pelos arqueólogos. Mas, como vimos, nada se encontrou até agora que provasse que a grande aventura narrada no Êxodo tivesse realmente acontecido.
Justifica-se portanto, que as descrições dos fatos e dos rituais instituídos por Moisés tenham toda a feição de estar se referindo a um simbolismo iniciático. Suas características estão muito mais para uma experiência espiritual do que para um conjunto de sacramentos instituídos a partir da prática de uma religião já estabelecida. Em conseqüência, o caráter esotérico e francamente místico que essas disposições sacramentais apresentam aos olhos daqueles que realmente conhecem as tradições maçônicas.[7]
Hoje se diz aos candidatos à iniciação na Maçonaria que antigamente os pretendentes eram submetidos a provas duras e perigosas. Mais do que a simples remissão aos românticos tempos da Cavalaria medieval, quando os novéis cavaleiros eram “provados” em sua coragem e fidelidade, ou à tradição dos Antigos Mistérios, quando dos neófitos eram exigidas mostras de grande resistência física e fortaleza de espírito, cremos que são no simbolismo da purificação e iniciação do povo de Israel que a Arte Real realmente se inspira quando se refere a essas provas.
Por essa razão é que se sustenta serem os filhos de Israel os primeiros Irmãos verdadeiramente iniciados na Arte Real, não só porque haviam sido pedreiros no Egito, mas também porque tinham adquirido a sabedoria moral e a energia do espírito, que só a verdadeira iniciação proporciona. E assim, como iniciados nos Augustos Mistérios que o próprio Grande Arquiteto do Universo lhes revelava, eles iriam se reunir em Loja permanente.
Com essa iniciação, que foi o Grande Êxodo, os filhos de Israel estavam prontos para erguer a nação que iria servir de modelo para a construção universal da Humanidade Autêntica, tal qual ela existia no Pensamento do Grande Arquiteto do Universo quando Ele começou a erigir esse edifício sublime, que é o mundo em que vivemos.
E é com base nesse arquétipo, ou seja, um grupo de pessoas eleitas, vivendo juntas na mais perfeita Irmandade, praticando um conjunto de virtudes e valores definidos pelo Verdadeiro Deus, que se assenta a idéia da Maçonaria mundial.
1- A Bíblia não Tinha Razão- Israel Finkelstein e Nei Asher, Ed. Girafa, 2003
[2] Êxodo, 32,15,1
[3] Prova disso são as constantes disputas entre os profetas de Israel (Elias e Eliseu, principalmente) e os sacerdotes das outras religiões palestinas, narradas na Bíblia.
[4] A expressão “observância estrita” tem bastante importância na Maçonaria, tendo inclusive influído na organização dos ritos que nela existem hoje em dia. As Maçonarias, alemã e francesa já praticavam (e ainda praticam) um chamado rito da “Estrita Observância”, que se acredita ser responsável pela introdução por boa parte dos motivos esotéricos e tradições templárias que hoje existem na Ordem. Estrita observância, no entanto, aqui se refere á rigidez com que as normas e tradições de uma doutrina, ou ensinamento, devem ser observadas.
[5] A iniciação maçônica é simbolizada pelas diversas “viagens” às quais o neófito é submetido.
[6] Tradição que ainda hoje é conservada, de forma simbólica, na Maçonaria.
[7] Referimo-nos aqui às instruções para a construção do Tabernáculo, os objetos de culto e as vestes sacerdotais, bem como ao conjunto de ritos propostos para a adoração de Deus,
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