João Anatalino

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LENDA URBANA- A ÁRVORE DOS ENFORCADOS
 
A história do negro Sebastião é um folclore da minha cidade, mas que poderia ser de qualquer cidade antiga, que tenha existido nos tempos da escravidão. Certamente, toda cidade que tenha vivido uma experiência tão infame quanto essa haverá de ter um escravo negro com esse nome, pois os nomes Benedito e Sebastião eram o correspondente afro-brasileiro dos alemães Hans e Fritz ou dos portugueses Joaquim e Manuel. 
Essa história hoje é tratada como uma lenda urbana, mas certamente foi inspirada em algum acontecimento real, pois eu lembro que quando garoto, ainda existia uma velha capela dedicada a São Sebastião no lugar onde a tradição dizia que o negro Tião foi enforcado. 
Era uma velha construção, feita aí pela metade do século XIX. Dizem que nesses idos tempos ela costumava ser um local muito visitado pelos devotos desse santo para preces e pagamentos de promessas. Nos dias da minha infância servia mais como um local onde os praticantes de macumba usavam para deixar oferenda para os santos e orixás. Lembro-me que alguns dos antigos habitantes da cidade evitavam passar em frente á capela depois da meia noite, pois diziam que ali aconteciam coisas estranhas. Houve quem dissesse que ás vezes, especialmente no dia 2 de novembro, dedicado aos finados, ela ficava aberta e iluminada durante toda a madrugada e muitas vozes podiam ser ouvidas lá dentro, mas quando algum curioso, ou corajoso, ia olhar, não encontrava ninguém lá. Só velas acesas.
Segundo os anais da história da cidade, por volta de 1830, no lugar da capela havia um pelourinho. Ali, os negros cativos eram amarrados para sofrer castigo público pelas faltas que seus donos lhes imputavam. Isso era uma coisa comum naqueles tempos. Negro era mercadoria e sua vida valia tanto ou menos do que uma besta de carga. Esta, pelo menos, quando ficava velha e doente, podia ser sacrificada e sua carne era distribuída aos escravos. Já um escravo, nem isso. E quando cometia alguma falta, ou fazia algo que seus senhores entendiam como falta, então o pobre infeliz era levado ao pelourinho e ali sofria os mais terríveis castigos. E seus senhores eram todos bons católicos, que cumpriam á risca os sacramentos da Igreja e não raras vezes, eles mesmos construíam suntuosos templos para demonstrar á sociedade seu piedoso respeito e zelo pela religião. Provavelmente a capela de São Sebastião também foi construída por um desses piedosos filântropos, que devia ser dono de uma fazenda de café ou engenho de açúcar, senhor de muitos escravos.
Muitos negros morreram naquele local por conta das mutilações que sofreram. Alguns eram ali enforcados, pois o local também servia de patíbulo, e ali havia uma árvore que servia de trave para enforcar os negros. E o povo podia presenciar a execução, depois que o dono do escravo o acusava de algum crime e a Pretoria o condenava á morte.
Uma velha tradição muito divulgada na cidade diz que em 1839, um negro chamado Sebastião foi enforcado ali. Ele havia sido julgado e sentenciado por alguma coisa que efetivamente não tinha feito, segundo afirmam as pessoas que contam essa história. Mas o Direito da época não reconhecia o negro como gente e portanto, pouco importava se ele fosse inocente ou culpado. Ele era o que seu dono determinava que fosse e pronto. Afinal, o negro Sebastião era velho e já não valia muita coisa.
Consta que quando ele foi suspenso no ar, o laço da forca desfez-se sozinho. O carrasco fez outros nós e tentou suspendê-lo novamente. Fez isso repetidas vezes. Mas a cada tentativa o laço desmanchava-se sem qualquer razão plausível. Buscaram-se outras cordas, tentaram-se outros tipos de nós, mas o fenômeno se repetia a cada tentativa. Então o carrasco, humilhado e constrangido com aquilo tudo e vendo que a platéia que se concentrara para ver o macabro espetáculo já começava a pedir liberdade para o negro, achando que ali a providência divina estava se manifestando, disse, exasperado: “ Negro maldito, que o diabo te leve!”
Eis que, imediatamente, surgiu um tropeiro, que por acaso passava por ali. O homem devia ser perito em laços. Fez um que não se desmanchou e o negro Sebastião acabou sendo finalmente enforcado. Dizem que o tropeiro exalava um cheiro insuportável de enxofre e seus olhos eram vermelhos como dois tições em brasa...
 
Bem, não sei dizer se a capela foi construída em homenagem ao santo ou ao negro que foi sentenciado ali. Mas é tradição confirmada pela maioria dos antigos habitantes da cidade que ela foi financiada pela família do fazendeiro que mandou executá-lo. E que isso foi feito em cumprimento de uma promessa que uma filha, ou filho dele, fez ao santo, para que este acabasse com uma maldição que se abateu sobre eles a partir de então. É que todas as crianças de sua família passaram a nascer com bócio. Mas não era um bócio comum, desses que os antigos chamavam de papo, caracterizado pelo aumento da glândula tireóide. Era uma espécie de caroço nodular, como se o pomo de Adão tivesse sido violentamente puxado para cima e se deslocado formando um gomo. Como conseqüência, a maioria delas morria nos primeiros anos de vida. Essa família ficou famosa como a “família dos enforcados”.
Hoje a capela não existe mais. Como tudo que envelhece ela também pagou o seu tributo á modernidade. Foi demolida nos anos sessenta dando lugar a um belo prédio de seis andares, onde hoje existem escritórios de advogados, consultórios médicos e escritórios de prestadores de serviços. É um prédio de arquitetura estranha, todo pintado de verde, que mais se parece com uma árvore.
São poucos os donos e inquilinos que conhecem a Lenda do Negro Sebastião e as tradições que a acompanham. Mas alguns deles, que já se aventuraram a ficar trabalhando até altas horas juram que coisas estranhas costumam acontecer ali depois da meia noite. O mais estranho são as vozes, que parecem ser de crianças que ainda não aprenderam a falar direito. Aliás, elas não falam, ciciam, como crianças que sofrem de bócio.
Os mais gozadores chamam esse prédio de “A Árvore dos Enforcados”.[1]  
 
 


[1] Inspirada na “Arvore dos Enforcados”, lenda urbana da cidade de Araxá. Há também um faroeste clássico com esse nome, feito em1959, estrelado por Gary Cooper, Maria Schell e Karl Malden.
 
LENDA URBANA- A ÁRVORE DOS ENFORCADOS

João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/02/2013
Alterado em 27/02/2013


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