SEMELE, ZEUS E HERA- O PAPEL DA AMANTE NO TRIANGULO AMOROSO
Livro: SÊMELE, ZEUS E HERA: HANS JELLOUSCHECK, ED. CULTRIX- 1987
Sêmele, a bela princesa de Tebas, tinha sido prometida em casamento ao príncipe Atamas, um estrangeiro. Sêmele não amava Atamas e não queria casar-se com ele. Então pediu a Zeus, o pai dos deuses, que a livrasse desse terrível destino, prometendo a ele qualquer coisa que ele pedisse. Zeus acedeu ao pedido dela, desde que ela se tornasse sua amante. Sêmele prontamente concordou com isso, pois Zeus se apresentou a ela em sua forma humana – um formoso jovem príncipe – e tornou-se sua amante. Os dois começaram a viver uma intensa relação clandestina, e Sêmele logo se viu grávida. Mas Zeus era casado com a temível deusa Hera. Ela era terrivelmente ciumenta e não demorou muito para descobrir a “pulada de cerca” do marido. Mas Zeus era o pai dos deuses e seu poder excedia em muito o dela. E embora Sêmele, a amante do marido, fosse mortal, ela não podia simplesmente fazer qualquer mal a ela por que temia a cólera dele. Então imaginou um curioso estratagema para vingar-se da rival. Disfarçando-se como uma ama de Sêmele, ela convenceu a princesa a pedir a Zeus que fizesse dela uma deusa também, concedendo-lhe honras divinas. Para isso Zeus deveria aparecer na sua frente em sua forma divina, com todos os seus atributos de pai dos deuses. Ele, quando visitava a princesa, sempre aparecia em sua forma humana. Zeus concedeu o seu pedido e na visita seguinte surgiu no quarto de Sêmele paramentado com todos os aparatos de sua condição divina: nuvens, raios, luz intensa, chuva, ventos e todas as forças da natureza, por ele controladas. Sêmele, uma simples mortal, não resistiu a tantos poderes e acabou sendo fulminada por um dos raios que saia das mãos de Zeus. Hera completou assim sua vingança. Mas Zeus, vendo que Sêmele estava grávida dele, retirou do ventre dela o seu filho e enxertou-o na sua coxa, para que ele terminasse ali a sua gestação. Esse filho de Sêmele com Zeus, nascido da coxa do pai dos deuses, foi o deus Dionísio, o deus do vinho e do prazer. Mais tarde Dionísio libertou sua mãe dos infernos, para onde havia sido mandada por influência de Hera e elevou-a à condição de deusa olímpica, ganhando com isso uma eterna inimizade com Hera.
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Essa história arquetípica foi usada pelo grande maestro Handel para a confecção de uma ópera chamada Sêmele, e tem sido aproveitada pela literatura mundial para inspirar diversos romances onde o triângulo amoroso é o tema central. Esse é o tema também de Sêmele, Zeus e Hera, curioso estudo de Hans Jellouschek, famoso terapeuta alemão, onde ele toma esse triângulo amoroso como modelo para os conflitos enfrentados pela maioria dos casais no mundo todo, onde a figura da amante (ou do amante) se insinua entre os membros do casal, provocando um desequilíbrio no “status quo” da relação.
Jellouscheck vê nesses arquétipos, representados por Zeus, sua esposa Hera e a amante Sêmele, uma composição arquetípica presente na própria estrutura civilizatória arquitetada pelo homem em sua composição social. Zeus é o patriarca, o homem de poder, responsável pelo comando e pela manutenção do “status quo” social, que tem em Hera sua companheira no exercício desse poder, mas não como mera compartilhante, mas sim, uma rival nesse jogo de poder. Hera e Zeus, como forças ying/yang, ao mesmo tempo que proporcionam o equilíbrio universal pelo compartilha- mento do poder, são também caudatários das mais intensas paixões que, por vezes, desequilibram o sistema e faz com que ele busque constantemente novos pontos de equilíbrio, forçando as mudanças constantes que ocorrem na alma dos indivíduos e na face das sociedades.
O autor vê em Zeus o homem poderoso (o pai de família) de repente aborrecido em suas relações rotineiras, ansiando por uma aventura que lhe proporcione prazer e faça “sair da rotina”. Algo que o tire daquele marasmo que a vida familiar, o “status quo” da vida organizada lhe proporciona. Algo que lhe renove a disposição e o faça “sentir” mais intensamente a vida. A súbita aparição de uma bela jovem (a secretária, a colega de trabalho) é a resposta aos seus anseios. Ele então começa uma relação clandestina que lhe dá prazer, mas também lhe causa constrangimento, pois isso representa uma ruptura na ordem estabelecida. As coisas ficam ainda mais complicadas quando a esposa(rainha consorte) descobre a traição. A luta pelo poder se acentua ainda mais. No Olimpo ela chega a um conflito onde exércitos se digladiam, mas na sociedade dos homens, esse conflito se define pelo desencadear de um torvelinho de emoções, onde no final, salvo raras exceções (quando a amante vence a disputa), é a amante que precisa ser sacrificada para o restabelecimento da estabilidade da ordem. No triangulo amoroso dos deuses olímpicos, Hera vence fazendo com Zeus mate, inocentemente, a sua amante. Restabelece-se, dessa forma, o equilíbrio universal, (a ordem familiar), mas a fantasia de Zeus( o homem poderoso, pai de família) sobrevive no filho que ele gesta em sua própria coxa. Dionísio, o deus do vinho, Dionísio, também conhecido como Bacco, o príncipe dos amantes do prazer, cuja gestação na coxa de Zeus sugere uma curiosa conotação de simbolismo fálico, a denotar que se Zeus foi castrado como amante, sua experiência continua em Dionísio.
Assim, Zeus, Hera e Sêmele, são símbolos arquetípicos de uma relação muito comum na sociedade dos homens. A amante (ou o amante) é visto aqui como uma forma de equilíbrio e desequilíbrio da ordem estabelecida, que força o próprio universo dessas relações a buscar novos pontos nessa mesma escala. Uma amante (ou um amante) tira um dos pólos da relação da sua posição estática; o outro pólo, ao perceber que a relação foi desequilibrada começa a forçar para restabelecer o equilíbrio perdido; a amante é o elemento clandestino que precisa ser eliminado. Ela deve morrer. Geralmente é o próprio pai de família (ou mãe de família) que providencia essa “morte” pelo fim da relação. E assim, o equilíbrio universal se restabelece, mas frustrações decorrentes dessa experiência frustrada precisam ser compensadas pelas vantagens da vida socialmente organizada. (Família, viagens, sucesso profissional, reconhecimento social, etc). Quanto aos clamores da libido, estes são enxertados na “coxa”, onde permanecerão encobertos, mas de maneira nenhuma mortos.
Assim Jellouscheck vê a composição do triangulo amoroso na sociedade humana e sugere que quando nos virmos participando de um deles (o que não é incomum), procurarmos nos cons-cientizar do papel que representamos nele e das motivações que movem os nossos compor-tamentos nesses papéis. Geralmente a amante (Sêmele) se envolve nele porque procura fugir (ou encontrar) uma forma de resolver uma situação conflituosa (emocional ou social) na qual ela está envolvida. O pai, ou a mãe de família, se envolve porque a ordem estabelecida lhe causa uma frustração que a rotina, ou a própria relação lhe proporciona. Ao saber que tais estados internos são arquetípicos (e não uma prova de vício ou safadeza das pessoas), nós poderemos examinar e administrar as próprias emoções e dar um encaminhamento mais inteligente a esses casos. Concordando ou não com o autor em suas conclusões, Sêmele, Zeus e Hera é um interessante estudo das relações humanas, que merece ser lido.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/05/2013