Capítulo XX- Os Hospitalários pagam a conta
Afora o processo dos Templários, que se arrastava de modo contrário aquele que Filipe desejava, outras preocupações tiravam o sono do rei. Em 1º de maio de 1308, Alberto, o soberano do Sacro Império Romano-Germânico, seu amigo e aliado, havia sido assassinado por um sobrinho daquele monarca, por causa de uma disputa de terras. Esse tipo de disputa era comum entre a nobreza feudal. O próprio Filipe estava a braços naquele momento, com vários conflitos dessa ordem. Especialmente na sua própria família, onde seu primo Roberto d’Artois, sustentava uma encarniçada disputa com sua própria tia, a condessa Mafalda d’Artois, pela posse da herança da família, que ele havia conferido áquela dama por ocasião do casamento de seu filho Filipe de Poitiers com a filha da condessa.
Para Filipe, o assassinato do imperador Alberto trouxe diversas preocupações. Primeiro porque a sucessão do trono romano-germânico era assunto que muito o interessava. Esse fora um dos motivos do seu conflito com o Papa Bonifácio VIII. Filipe não desejava que um príncipe hostil assumisse o trono de estado romano-germanico, Ele estava pensando em eleger seu próprio irmão, Carlos de Valois, como imperador. Isso não era, entretanto, do gosto do Papa, que não desejava, nesses territórios, um governante tão ligado á coroa francesa.
Já tinha problemas demais com o rei da França. Um imperador romano-germânico da família de Filipe só iria fortalecer ainda mais a coroa da França e enfraquecer o poder papal, que naquele momento já estava sendo completamente eclipsado pelo rei francês.
Assim, na surdina, Clemente V, fingindo apoiar a candidatura de Carlos de Valois, na verdade trabalhava para que o colegiado dos principes alemães elegessem Henrique, conde de Luxemburgo, para o cargo. O que de fato aconteceu em 27 de novembro de 1308.
O resultado da eleição do imperador alemão, embora não fosse o que Filipe esperava, não obstante, não o desagradou. Henrique de Luxemburgo não era uma personalidade forte, capaz de fazer-lhe sombra. Embora soberano de um império poderoso, como era o romano-germânico, o soberano alemão não estava disposto a arranjar encrenca com os franceses. Assim, tão logo foi coroado, uma de suas primeiras providências foi estabelecer negociações com Filipe. Elas culminaram com a assinatura de uma aliança militar, que contemplava um pacto de não agressão e uma promessa de ajuda mútua no caso de um dos estados ser atacado por uma terceira potência hostil.
Embora Clemente V fosse permeável á sua influência, e até então, não o confrontara de modo aberto, era óbvio que os dois poderes ainda se digladiavam entre si. Praticamente, Filipe forçara o Papa a ficar em Avignon, que embora não fosse território da França, era, no entanto, mais próximo de Paris do que Roma.
Clemente V havia cedido aos desejos de Filipe no sentido de abrir o processo contra os Templários, mas estava reticente quanto á transferência dos bens do Templo para a coroa francesa. Também não era simpático á idéia do rei francês de nomear Filipe de Marigny, seu conselheiro e irmão de seu ministro das finanças, Enguerrand de Marigny, para arcebispo de Sens. O Papa sabia, que no cerne dessa pretensão real, estava a questão dos Templários, pois o arcebispo dessa diocese, á qual estava afeita também a diocese de Paris, é que faria o julgamento final desse processo.
Filpe queria, por que queria, e precisava, se apropriar dos bens do Templo. Mas Clemente tinha outras idéias á respeito. Seu desejo era que esses bens fossem transferidos para a Ordem de São João do Hospital.
“ Os Hospitalários, escreve o Papa a Filipe, “ são os naturais sucessores dos Templários. Se a eles tais bens forem adjudicados, continuarão a cumprir a finalidade para os quais foram doados ao Templo. “Continuarão a prover as necessidades da Terra Santa.”
Evidentemente, não era essa a solução que Filipe pretendia. Em conseqüência, solicitou ao inefável Pierre Dubois, seu advogado conselheiro, um parecer jurídico. Este propôs que Filipe fizesse o Papa nomear um dos filhos de Filipe como rei de algumas possessões que os cristãos ainda mantinham no Oriente Médio. Por meio desse estratagema, ele poderia se apossar dos bens da Ordem e aplicá-los numa nova cruzada para recuperar os lugares santos.
“Nesse sentido, poder-se-ia unir as três Ordens que se formaram na época das Cruzadas, e apoiada em seus recursos, uma nova cruzada poderia ter sucesso”, escreve ele.
“ Duvido que, nessas condições”, complementa,” o Papa não seja favorável.”
Talvez o Papa fosse favorável á uma nova cruzada. Se não era, pelos menos, ele aproveitou bem a idéia. Com base nela conclamou a todos os príncipes da cristandade a colaborar para essa grande empreitada. Prometeu até um ano de indulgência para quem desse um denário para a causa.
Mas quanto á fusão das três Ordens, o projeto malogrou de cara. Com os Templários fora de jogo, é o Papa quem decide por ela. Concordou que os bens dos Templários fossem adjudicados ao Hospital, até porque essa era a sua proposta, mas lembra que o Templo não tem mais contingentes militares que possam ser usados.
“A não ser que a Ordem seja reabilitada”, escreve o Papa, em resposta á proposta de Filipe. Isso, o rei não quer nem ouvir falar. Por seu turno, a outra Ordem fundada pelos cruzados, os Cavaleiros Teutônicos, já estão engajados em uma luta própria. Sua preocupação é conter o avanço dos muçulmanos na Europa Central.
Também os demais reis da cristandade não querem nem ouvir falar em outra cruzada. Estão suficientemente comprometidos em resolver problemas em seus próprios territórios. Em Portugal e Espanha, por exemplo, trata-se de recuperar os territórios perdidos para os mouros nos séculos anteriores. Na Inglaterra é a guerra contra os rebeldes escoceses que não dão quartel ao rei Eduardo II.
Nada de nova cruzada, portanto. Mas isso não impede Filipe o Belo, e Henrique, o novo imperador romano-germânico, de lançar impostos sobre seus respectivos povos, para financiar uma expedição que nunca iria se realizar.
Cúmplices nas chicanas e nas manobras subreptícias, Filipe, o Belo, e Clemente V, não conseguem, no entanto, se entender em duas questões: primeiro, com quem deverão os bens do Templo? Segundo: como resolver a questão que envolveu o rei da França com o antecessor de Clemente V, Bonifácio VIII?
Filipe lembra Clemente V que o processo aberto contra o antigo Papa estava pendente de definição. Bonifácio VIII havia sido acusado pelo ministro de Filipe, Gulherme de Nogaret, de heresia, usurpação, simonia e até sodomia. Precisamente as mesmas acusações que esse ministro faria, mais tarde, aos Templários. Em consequência, Nogaret havia sido excomungado por aquele Papa e essa excomunhão ainda estava em vigor. O assunto estava sobre o malhete papal desde a morte do velho Papa. Clemente V acedera ao pedido de Filipe, de abrir um processo contra o falecido inimigo, mas adormecera sobre ele.
Filipe queria agora uma definição e por isso pressionou Clemente V. Este, para atender ao rei, convocou, em Avignon, um concílio para que os acusadores e defensores do falecido Papa expusessem suas razões.
Nem Filipe nem Clemente previram que esse caso iria suscitar tanta celeuma. Pois aquilo que deveria ser apenas um processo jurídico acabou se degenerando em conflito armado. Partidários do rei Filipe lutavam, de um lado, querendo, a todo custo, condenar, ainda que postumamente, Bonifácio VIII á fogueira (queimando-lhe os ossos, como se fazia com os hereges condenados após a morte); de outro os partidários do velho Papa, defendendo a sua memória.
A questão seria resolvida no concilio de Viennes, realizado entre 16 de Outubro de 1311 e 6 de Maio de 1312. Nesse concílio Filipe negociou a extinção formal da Ordem do Templo e o levantamento da excomunhão de Nogaret, em troca da retirada das acusações contra Bonifácio VIII. Dessa forma, a paz foi selada entre Clemente V e Filipe, o Belo, em relação a essas espinhosas questões.
Restava, agora, resolver qual seria o destino dos Templários presos e para quem iriam os seus bens. Essa questão seria resolvida, afinal, pela concordância de Filipe, de que esses bens fossem adjudicados á Ordem dos Cavaleiros do Hospital de São João. Isso foi feito através da bula Ad providan de 2 de maio de 1312. Cerca de um mês antes, através de outra bula, a Vox in excelso Deun, a própria Ordem do Templo, como organização formal, havia sido abolida.
Por que o rei da França, que tanto fizera para suprimir a Ordem do Templo e confiscar, para si próprio, os seus bens, finalmente concordou em deixar tudo para os Hospitalários, não constitui nenhum mistério. Na verdade, durante todos os anos em que o processo estava correndo, o seu lupino ministro das finanças, Guilherme de Nogaret, estivera trabalhando para transferir esses bens para o tesouro de França. Quando os ávidos contadores e advogados do Hospital de São João foram ver afinal, no que consistiam os tais bens, eles perceberam o engodo em que tinham caido. Nogaret apresentou tantos recibos para o Hospital pagar, em decorrência de despesas realizadas pelo governo francês para custodiar e administrar esses bens, assim como para cobrir os custos com o processo e a manutenção dos Templários em suas prisões, que os desconsolados Mestres do Hospital tiveram que pagar uma soma maior do que aquela que pensaram que iriam receber. Na verdade, eles tinham herdado um tremendo “mico.”
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Da obra "Filhos da Viúva", A Conspiração dos Templários- título provisório, no prelo.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 23/10/2013
Alterado em 16/11/2013