João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


VI- OS MISTÉRIOS TEMPLÁRIOS
 
 
Pois fora o próprio Tiago de Molay, que num dos conclaves em que todos os altos dignatários do Templo estavam reunidos, alertara os Irmãos a respeito de certas maledicências que estavam sendo assacadas contra a Ordem. Elas se referiam a certos comportamentos estranhos, contrários ao rígido código moral defendido pela Igreja, que estariam sendo praticados em algumas preceptorias, quando da recepção de novos membros. Coincidência ou não, eram principalmente das preceptorias francesas que vinham tais informações, pelo que, coube ao Grande Visitador de França, Hugo de Peiraud, vestir a carapuça, quando os tais assuntos foram levantados pelo Grão – Mestre.
– A que comportamentos estais se referindo? – indagara ele, já na defensiva.
– Ao modo como os veteranos exigem a submisssão dos noviços, obrigando-os a beijar, de fato, suas partes íntimas. Se tais exigências são feitas – disse de Molay, isso é degradante. Vós bem sabeis a que finalidade se destina o beijo ritual.
– Ouvi dizer que isso acontece em algumas das nossas recepções – respondeu Pairaud, com certa displicência. – Mas não vejo motivo para preocupação. Trata-se apenas de uma brincadeira de mau gosto aplicada pelos veteranos contra os noviços. Em todas as instituições há tradições similares que os mais antigos aplicam aos mais novos. Serve para demonstrar aos iniciandos que eles devem obediência absoluta aos seus mestres. 
– Pois deveis tomar cuidado com essa, que vós chamais de “brincadeira”, – disse de Molay. – Lembrai-vos que existe um código de moral em nossa Ordem que nos exorta a manter um comportamento digno nesse sentido. ─ E quanto a prática de sodomia, que dizem ocorrer entre os Irmãos, o que tendes a dizer?
Hugo de Pairaud deu de ombros, como se a questão fosse de somenos importância.
─ Ao que sei, nada além do que ocorre na maioria das Ordens monásticas, onde nem todos os irmãos tem fortaleza de espírito suficiente para resistir aos apelos da carne ─ respondeu Peiraud..
─ Sabeis que a nossa Ordem exige o voto de castidade para os Irmãos que recebem o mantô e se tornam dignos de frequentar o Capítulo. Isso porque, segundo nossa crença, as relações entre homens e mulher são como obra de porcos e de cães. Somos proibidos de nos juntar a mulheres, para não enfraquecer a nossa fé na santidade de nossa causa. Mas o coito com homens também nos é interdito. Isso é sodomia e, como sabeis, sodomia é pecado. Lembrai-vos que somos monges e cavaleiros. Como monges praticamos a castidade e como cavaleiros prestamos culto á mulher.
─ É por isso que cultuamos Sofia ─ interviu o preceptor de Limoges, Amaury.
E á menção de Sofia, a deusa mãe da sabedoria, todos os Templários ali reunidos se persignaram e rezaram a prece ritual, em louvor à Virgem Maria: “ Santa Maria (...) mãe sempre virgem e preciosa, Ó Maria, salvação dos enfermos, consoladora dos que a vós recorrem, triunfadora sobre o mal e refúgio dos pecadores arrependidos, aconselhai-nos e defendei-nos. Defendei a nossa Ordem, fundada por vosso santo e caro confessor, o vosso caro Bernardo (...).
─ E que São João Batista, nosso padroeiro, nos proteja e ilumine ─ completou, por fim, Tiago de Molay.
─ Amém ─ disseram todos.
─ E quanto á questão dos noviços serem obrigados a cuspir na cruz e negar Cristo por três vezes? O que dizeis a respeito disso? ─ perguntou de Molay, diretamente a Pairaud.
O Visitador da França se ajeitou na sua cadeira, como se aquele assunto o incomodasse.
– O que vos falaram a esse respeito? – perguntou.
– Que depois da recepção do candidato, os veteranos são levados para trás do altar e submetidos a uma cerimônia, onde além de beijar as nádegas dos veteranos, são obrigados a negar Cristo e cuspir na cruz. É verdadeira essa informação? – perguntou Tiago de Molay.
– Vós sabeis a razão dessas usanças – respondeu Pairaud. – Porque estais inquirindo a respeito?
– Porque devemos ter muito cuidado em relação a essas coisas – disse de Molay. – Nós sabemos o que significam esses rituais e para que servem. Mas nem todos o compreendem. Por isso são mantidos em segredo e somente os altos dignatários tem uma cópia escrita deles. Se caírem em mãos profanas, temo que eles venham a ser mal interpretados e nos causem muitos danos. Sabeis ─ continuou o Grão-Mestre ─ que o beijo ritual se destina a transmitir ao novo Irmão a energia que percorre o plano austral e se aloja na base da nossa medula espinhal. É o mistério órfico que aqui se invoca e não deve ser usado como motivo para a prática da promiscuidade.
 
─ Compreendo vossa preocupação, Senhor Grão-Mestre. Mas como sabeis, a compreensão desses mistérios não faz parte dos ensinamentos dados aos cavaleiros de mais baixo grau. Por isso levam na brincadeira, achando que se trata de um deboche que deve ser aplicado aos noviços.─ disse Hugo de Peirauld.
Tiago de Molay franziu a testa em sinal de preocupação. Ele não podia deixar de reconhecer que o Visitador de França tinha razão. Como aqueles homens iletrados e ignorantes, que constituiam a maioria dos cavaleiros Templários (ele mesmo era analfabeto), iriam entender a sutileza de tais concepções?
E pior que tudo era a tradição que havia sido implantada na Ordem, que obrigava o noviço a negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Ele mesmo fora incitado a fazer aquilo. Tal procedimento se afigurara como uma monstruosidade ritual aos seus olhos e ele se recusara a fazê-lo. Como ─pensara ele─ uma Ordem que se propunha a defender a fé cristã ordenava a seus iniciados que renegassem o seu próprio Deus? Como um cavaleiro que era convidado a tomar a cruz, poderia ofendê-la daquele modo, cuspindo nela? Tiago de Molay se recusara a cumprir aquele estranho e maligno ritual. Por isso sofrera tortura, execração e todo tipo de molestação por parte dos veteranos. Mas ele permanera firme na sua fé e na sua convicção, e depois que os Irmãos viram que a sua postura era firme, tudo mudara. Ele subira rapidamente na hierarquia da Ordem e em menos de vinte anos tornara-se Grão-Mestre.
     ─ Foi Mestre Roncelin de Forz, preceptor da Provença quem iniciou essa prática ─ lembrou Peirauld. ─ Ele a fez para que ela funcionasse como uma espécie de prova de coragem e firmeza. Como sabeis, muitos dos nossos Irmãos foram capturados pelos sarracenos durante as batalhas na Terra Santa. E quando sumetidos á tortura, a eles era pedido que renegassem Cristo e cuspissem na cruz. A maioria se negou, preferindo morrer a abjurar nossas crenças. Mas muitos Irmãos não tinham essa fortaleza de espírito e o fizeram, para ter suas vidas poupadas. Mestre Roncelin então instituiu esse ritual para verificar quem, entre os noviços, seria capaz de mostrar tal fortaleza de espírito, se um dia se visse numa situação dessas –explicou Pairauld.
– Isso mesmo ─ disse de Molay. É uma prova de fortaleza e firmeza na fé. – Pois se o noviço consentir em fazê-lo só por causa dos castigos que lhes aplicam os veteranos, quanto mais facilmente não o fará se submetidos a verdadeiras torturas pelo inimigo?
─ Pois é ─ disse Pairauld. ─ Mas como os Irmãos de menor grau não entendem o significado desse ritual, acham que tudo não passa de uma brincadeira que deve ser aplicada aos novições. E acabam exagerando.
─ Essas “brincadeiras”, como o Irmão as chama,─ disse de Molay ─ poderão trazer complicações para a Ordem. Peço ao Irmão Pairaud que instrua todas as preceptorias da França sobre o assunto e que as suprima, daqui por diante. Como sabeis, a Ordem tem inimigos que só estão esperando que cometamos alguns deslizes para ataca-la. Peço a todos os preceptores aqui reunidos que tomem muito cuidado em relação a esses assuntos.
─ E quanto ao culto ao símbolo da Sabedoria?[1] Desejais também aboli-lo?
─ Não, isso não─ disse de Molay. ─ Ele é o que há de mais belo em nossa liturgia.
─ Há quem diga que se trata de um culto demoníaco ─ disse Pairauld. ─ Pois a representação desse símbolo é feita através de uma cabeça barbada.
─ Que representa São João Batista, nosso padroeiro, o mestre que batizou e instruiu Nosso Senhor Jesus Cristo ─ disse Godofredo de Charney, preceptor da Normandia.
─ Mas é principalmente o símbolo da Sabedoria, que os sábios muçulmanos chamam de Abufihamat, o Pai da Compreensão, a Cabeça da Sabedoria, A Inteligência Suprema, como o chamam os nossos mestres que estudam essa sagrada ciência dos judeus, chamada Cabala.
─ Eu pensei que ela fosse a cabeça do fundador da nossa Ordem, Hugo de Payens ─ observou Godofredo de Gonneville, preceptor de Aquitânia.
─ E eu que fosse a cabeça de Santa Úrsula, a rainha das Dez Mil Virgens─ disse Amaury de Limoges.
Tiago de Molay riu. Nem mesmo entre os Irmãos da Ordem o estranho conceito da Skechinak era entendida. A presença imediata da divindade no mundo... Como entender, se ele mesmo não entendia. Ele só sabia que devia prestar culto áquele ídolo barbado, que em uma preceptoria parecia ser a cabeça de um velho profeta bíblico, em outras uma cabeça de três faces... Mas se os mestres mandaram, eles deviam saber o que estavam fazendo.
Difícil seria explicar isso aos bispos, ao Papa. A propósito, era os idos de março de 1307, e Tiago de Molay tinha sido convocado para ir a Avignon, se encontrar com Clemente V.
“Com certeza”, pensou o velho Grão-Mestre, “o Papa vai me cobrar esses assuntos e vai falar novamente sobre a nossa fusão com o Hospital de São João.”
Teria que se preparar para isso. Quanto aos propalados segresos dos Templários, ele já sabia o que fazer: iria pedir um inquérito oficial para apurar as maledicências que estavam sendo levantadas contra a Ordem. Quanto a fusão...
 
 
[1] Referência ao ídolo conhecido como Baphomet.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 26/11/2013


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras