João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


UM MISTÉRIO DE OITO SÉCULOS 
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Embora não tivesse pleno conhecimento das manobras de Filipe, não obstante, Tiago de Molay não fora pego de surpresa pela ação. Já desconfiava, desde algum tempo, que a Ordem se tornara um incômodo para o ambicioso monarca francês. As necessidades monetárias da coroa logo o levariam a intentar algum ataque ao Templo, pois esta era a única instituição em França que ele ainda não havia espoliado, além do que, se constituia no último dos bastiões que ainda resistia a sua pretensão de assumir o poder absoluto no reino de França, e depois a liderança de toda a cristandade.
Já estava perto dessa meta. Com a nomeação de Bertrand de Ghot para o trono papal, que este assumira em 15 de novembro de 1305, adotando o nome de Clemente V, ele havia praticamente abatido o poder da Igreja de Roma em todo o seu território. A Igreja Católica Universal não era mais romana, mas sim francesa. Sua sede não estava mais em Roma, mas na França, na cidade de Avignon.[1]
 
Havia sido com a cumplicidade de Clemente V que ele havia começado, sob a orientação jurídica de Nogaret, a arquitetar um plano para destruir a Ordem do Templo. Já no dia seguinte á eleição de Clemente V, o Papa e o rei se encontraram para negociar assuntos importantes para o reino de França. O rei pleiteava o poder de escolher, ele mesmo, os cardeais para administrar a Igreja em França. Queria também uma licença papal para que seus filhos, pudessem se casar com suas primas, casamentos esses que precisavam da licença papal, já que se tratava de uniões entre parentes consangüíneos.[2]
O rei queria também liberdade para lançar impostos sobre as rendas da Igreja. Esse tinha sido um motivo antigo de suas brigas com o Papa Bonifácio VIII. Fora até excomungado por aquele teimoso e velho pontífice por causa disso. Embora fosse um caso superado pela eleição de Bertrand Du Ghot, cardeal francês e aliado de Filipe, esse assunto ainda mexia com as suscetibilidades do clero. Mas, sobretudo, Filipe queria o compromisso do Papa de permanecer em Avignon e não retornar para Roma. Era a garantia que ele tinha para continuar a manobrá-lo.
Tudo isso foi negociado na presença de Nogaret, os filhos de Filipe, seu irmão Carlos de Valois e claro, um forte aparato militar. O assustado Papa não deve ter percebido imediatamente que se tornara um prisioneiro do rei francês, e a nada opôs resistência.
Na audiência pública que se realizou, com a presença dos aliados e senescais de Filipe, nada foi tratado com relação aos Templários. Mas uma audiência á portas fechadas, somente com a presença de Nogaret, foi efetuada logo depois. Nesta, Filipe comunicou ao Papa sua intenção de liquidar com a Ordem do Templo.
 
– Não se compreende que o Templo não pague nenhum tributo, seja á coroa, ou á Igreja – disse Filipe ao Papa.
– É porque suas posses pertencem á Igreja ─ protestou, debilmente, o Papa.
– Entretanto, já concordamos que a Igreja deverá contribuir para os cofres do reino – respondeu Filipe.
O Papa anuiu com aceno de cabeça. – Entretanto ─ disse ele, como se estivesse procurando uma tábua na qual se agarrar ─ a Ordem do Templo tem as suas próprias ordenanças e não estão sujeitas a tais injunções.
– Quem pode o mais pode o menos – interviu Nogaret, que até aquele momento se mantiverta calado.
O Papa olhou para ele como se não tivesse entendido.
– Os Templários, com o fim das cruzadas, perderam sua função como instituição militar e monástica – continuou o inflexível conselheiro. – Podem subsistir como Ordem monástica, mas nesse caso, somente se consentirem em ser fundida aos Cavaleiros do Hospital de São João, mas como Vossa Santidade bem sabe, eles recusaram essa proposta.
─ Sim. Eu mesmo conversei com o Grão-Mestre a esse respeito ─ concordou o Papa.
─ Mas de Molay nem quer ouvir falar nisso. Sabemos bem o que pensa aquele velho teimoso ─ disse Filipe.
– Assim, a solução é extinguir a Ordem. Parte de seus bens e rendas poderão ser preservadas e aplicadas em favor do povo, como sempre deveriam ser e outra parte poderá ser adjudicada ao Hospital para ser usada nas finalidades para as quais foram doadas – continuou Nogaret.
– Isso já foi tratado e proposto, inclusive pelo meu antecessor Bonifácio VIII – retrucou Clemente. – Mas nada foi decidido por que o Grão-Mestre Tiago de Molay, e o próprio Grão-Mestre do Hospital, Fouques de Villaret se pronunciaram de maneira decisiva contra essa fusão.
– Vossa Santidade é o Papa – disse Nogaret, com uma ponta de sarcasmo. – Porque não aplicar a autoridade que tem nesse assunto?
– Tudo isso merece profunda reflexão – tornou o Papa. ─ Não estou ainda convencido se essa fusão será benéfica para a Igreja. A Ordem do Templo e o Hospital de São João têm funções diversas. Não sei se, unificando-as, eles continuarão a mostrar a eficiência que sempre tiveram.
– Permita-me dizer que essas dúvidas são irrazoáveis, Santidade ─ retrucou Filipe. ─ Os Templários perderam sua finalidade. Foi-se o tempo em que necessitávamos deles para combater os inimigos de Cristo. Agora – sublinhou o rei, com um olhar de desafio para o Papa – os inimigos de Cristo são eles próprios.
O Papa estava se sentido cada vez mais acuado.
– Sei do que estais falando – respondeu o Papa. – Mas ainda assim...
– Já é tempo para tomarmos uma decisão – insistiu Filipe.– Não há mais nenhuma razão para a existência de uma organização tão infame quanto o Templo.
–Além disso – insistiu Nogaret, já com crta irritação na voz – toda a cristandade já sabe das suspeitas que contra eles são levantadas.
– Fui informado disso, mas não há nenhuma certeza da veracidade dessas acusações, apenas comentários que podem, no fim, serem falsos – objetou o Papa.
– Temos a convicção de que são verdadeiras, e como depositários da verdadeira fé, Vossa Santidade como chefe da Igreja, e eu, na qualidade de autoridade secular, temos que tomar providências para extirpar, de vez, esse mal.
– Entretanto – insistiu ainda o Papa – gostaria de falar com o Grão-Mestre do Templo antes de tomarmos uma decisão tão radical,
– Vossa Santidade tem a nossa concordância – disse Filipe. – Mas que isso seja feito o mais rápido possível, pois o tempo urge.
 
Filipe não estava blefando. Esse encontro foi realizado em meados de Agosto de 1307. Nesse dia já estava delineado, na cabeça de Filipe e Nogaret, os planos para a ação de 13 de outubro. Eles só precisavam de um álibi para essa ação, e foi o próprio Tiago de Molay que o proveu.
De volta a Avignon o Papa escreveu imediatamente ao Grão-Mestre do Templo denunciando as suas preocupações quanto ás intenções de Filipe. Expôs, mais uma vez, a proposta para fundir Templários e Hospitalários em uma única ordem. A resposta do Grão-Mestre deixou Clemente V desiludido e desesperançoso quanto ao futuro da organização.
“Se as duas ordens fossem reunidas”, respondeu Tiago de Molay, “elas teriam que se submeter á restrições e ordenanças estranhas á ambas. Daí poderia resultar perigos para as almas envolvidas, porque são raros, segundo creio, aqueles que queiram mudar sua vida e seus costumes...”
– O idiota não entendeu o perigo que está correndo – murmurou o Papa.
Entrementes, não deixou de dar ciência ao rei do seu fracasso em convencer o Grão-Mestre da Ordem em realizar a fusão com os Hospitalários.
– Eu tinha certeza de que o Papa não teria sucesso – disse Nogaret ao rei. – Aquele velho é um maldito analfabeto ignorante e turrão– completou.
─ Se ele não quer largar os anéis que perca os dedos também ─ disse Filipe.
 
Desesperado, e temeroso das conseqüências, o Papa tentou uma última cartada.
– E se Vossa Majestade se tornasse Cavaleiro Templário?– sugeriu ao rei. – Tiago de Molay está velho e não durará muito tempo. Vossa Majestade bem poderá assumir o cargo ou indicar um dos jovens príncipes.
A idéia agradou ao rei. Naquela mesma noite, ele escreveu uma carta ao Grão-Mestre, solicitando seu ingresso na Ordem. Ele sabia qual seria a resposta. Não obstante, poderia usá-la como mais uma justificativa.
Recebeu, logo no dia seguinte, a recusa, por escrito, do seu pedido.
“Não nos parece conveniente, e afigura-se ao mesmo tempo perigoso para os propósitos da Ordem o conúbio entre o poder espiritual e o poder temporal”, justificou o Grão- Mestre a sua recusa em apoiar a proposta de iniciação do rei como cavaleiro Templário.
– Maldito arrogante sodomita –  vociferou o rei. – Como esse velho ousa recusar o mantô do Templo ao próprio rei da França? Ele vai me pagar muito caro por mais essa afronta.
 Nogaret, que pressentia estar próximo o desenlace pelo qual lutava a vários anos, jogou mais lenha na fogueira.
─ Eles não consideram Vossa Majestade digna de fazer parte da Ordem ─ disse ele.
─ Pois vamos ver a dignidade desses malditos quando estiverem gemendo nos borzeguins, com seus membros esticados até o rompimento e seus pés assados com gordura de porco ─ respondeu Filipe.
─ Preparai a acusação e a carta aos nossos senescais ─ disse o rei. ─ Está na hora de acabar com isso.
─ Já estão prontas, Majestade, ─ disse Nogaret.
─ Mãos á obra, então ─ ordenou Filipe, sem deixar de notar a eficiência do seu ministro.
“ Esse homem odeia essa gente muito mais do que eu”, pensou.
E com essa ordem selou a sentença de morte contra a mais poderosa Ordem de Cavalaria de todos os tempos, garantindo para ela uma aura de romantismo e mistério que já dura nove  séculos.
 
 
[1] Avignon pertencia ao reino da Sicília na época em que Clemente V tranferiu a sede do papado para lá. em 1309. Em 1348 o Papa Clemente VI  adquiriu a cidade, que se tornou propriedade da Igreja até 1791, quando foi incorporada ao estado francês. A corte papal permaneceu em Avignon entre 1309 e 1377, período que ficou conhecido como o Papado de Avignon. Em 1377, o papa eleito, Gregório XI, decidiu restabelecer a sede da Igreja em Roma, porém a facção que defendia sua permanência em Avignon elegeu outro Papa (Clemente VII), que permaneceu naquela cidade, provocando o Grande Cisma do Ocidente, com dois Papas disputando a liderança da Igreja. Esse cisma só viria a ser superado em 1417. O período em que a corte papal ficou sediada em Avignon é visto como um dos mais complicados vividos pela Igreja Católica. As ingerências políticas e a corrupção dos costumes eclesiásticos foi apontado como causa da decadência do poder papal e justifica a derrocada que cuminaria com a Reforma protestante no século XVI. O clima de corrupção e devassidão que imperava em Avignon, na época em que os Papas estabeleceram sua corte nessa cidade, foi denunciado pelo poeta Petrarca, que lá viveu nessa época. Em uma carta escrita a um amigo, ele diz que Avignou se tornara a Babilônia do Ocidente.... “Estou pasmo, pois se bem me lembro, os seus antecessores nada tem a ver com estes homens carregados com ouro e revestidos de púrpura, ostentando os despojos de príncipes e nações; nem com palácios luxuosos, com suas alturas coroadas com fortificações, ao invés de um mero barco que eles viravam para baixo para fazer de abrigo”.
“.Aqui não se encontram as redes simples que foram usadas ​​uma vez para ganhar um sustento frugal do lago da Galiléia, e com a qual, depois de ter trabalhado toda a noite sem ter apanhado nada, eles pescaram, de madrugada, uma multidão de peixes, em nome de Jesus. Fica-se estupefato, hoje em dia, por ouvir as línguas de mentira, e ver pergaminhos inúteis transformados, por um selo de chumbo, em redes que são utilizadas em nome de Cristo, mas pelas artes de Belial, para pegar hordas de cristãos incautos. “(...).Em suma, parece que estamos entre os reis dos persas ou partos, diante do qual devemos cair em adoração, e que não pode ser abordado (como homens) exceto para oferecer-lhe presentes.  Ó, homens velhos, despenteados e magros, é para isso que vocês trabalharam? É para isso que vocês semearam no campo do Senhor, e regaram com o seu sangue sagrado? But let us leave the subject.”
Publicado por  J. H. Robinson, Readings in European History (Boston: 1904), p. 502. Tradução do autor.
 [2] Os dois filhos de Filipe, o Belo, Carlos de França, e Filipe de Poitiers, que foram reis da França com os títulos de Carlos IV e Filipe V, respectivamente, casaram-se com suas primas Branca de Borgonha e Jeanne de Borgonha, ambas filhas de Matilda d’Artois e Othon IV, conde de Borgonha. As duas jovens princesas foram acusadas de adultério durante o reinado de Filipe, o Belo. Jeanne, com a subida ao trono de Filipe V, seu marido, acabou sendo inocentada, mas Branca morreu na prisão. 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 19/12/2013
Alterado em 24/12/2013


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