João Anatalino

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A TINTA ASSASSINA
 
 
 
A notícia da morte do Papa Clemente V pegou de surpresa toda a cristandade. Principalmente em Paris, onde o rei, ainda digerindo as conseqüências da supressão da Ordem do Templo, procurava administrar as vozes que se ergueram contra a execução dos seus comandantes, especialmente o grão-mestre Tiago de Molay, que, mais não fosse o primeiro mandatário de uma respeitávável Ordem de cavalaria, era um fidalgo, um nobre, um respeitável soldado, que havia prestado importantes serviços á causa da cristandade. E ainda por cima, era padrinho de sua filha Isabel, a rainha da Inglaterra.
Essas vozes vinham principalmente da Borgonha, onde Jean de Longwy, primo de Tiago de Molay, era o mestre da compagnnonage,a poderosa confraria dos pedreiros-livres de França. Dizia-se ele estava organizando uma liga de barões, que segundo as informações que lhe haviam chegado, tinha por objetivo recuperar as prerrogativas dos senhores feudais, que Filipe, o Belo, havia suprimido. Mas por trás disso tudo, comentava-se á boca pequena, estava o demônio templário a instigar uma conspiração.[1]
Filipe sabia que muita dor de cabeça poderia advir dali. Se Longwy conseguisse a adesão do baronato á sua causa, esse poder, mais o que ele já detinha como líder dos maçons, tudo começaria novamente. A supressão da Ordem do Templo, pela qual ele lutara durante sete anos, de nada adiantaria, pois uma nova organização, até mais forte que ela, pois que circunscrita apenas á França, e lutando especificamente para a realização de objetivos políticos, seria, talvez, até mais perigoas que os Templários.
A par disso, o papa lhe escrevera dando conta da sua desaprovação á sentença de morte, prolatada contra os altos dignatários do Templo. Não era esse o desfecho que o chefe da Igreja esperava, dizia a carta. Sua Santidade contava com o fato de que tendo concordado que os bens do Templo fossem adjudicados ao Hospital de São João, e que este se comprometesse a ressarcir o tesouro francês de todas as despesas com o processo e a manutenção dos acusados durante o tempo em que ele durou, despesas essas que, segundo o ministro Enguerrand, superavam o valor dos bens confiscados á Ordem. Em conseqüência, o Hospital ainda tivera que devolver á coroa francesa uma grande soma, ao invés de receber alguma coisa.[2]
Clemente acreditara que o móvel de Filipe, ao investir contra o Templo, era apenas o desejo de apropriar-se de suas riquezas. Mas o objetivo do rei ia bem mais longe. Tratava-se, principalmente, de uma questão política. Ele havia mitigado o poder dos nobres, sufocado o poder do clero, reduzido a quase nada a capacidade de articulação dos prebostes e das organizações da sociedade civil e abafado, com violência, toda e qualquer oposição ao seu projeto de um estado nacional, submetido á tutela de um único poder, o do rei. A última fortaleza a ser conquistada nessa verdadeira guerra de unificação era exatamente o Templo. Realizado o seu intento, ele não poderia deixar vivos os grandes dignatários da Ordem. Mesmo preso, definhando numa masmorra, a figura de Tiago de Molay ainda era suficientemente poderosa para suscitar idéias que precisavam ser definitivamente sepultadas.
Idéias como aquelas que sustentavam os ideais da cavalaria, por exemplo. Ideais que faziam dos nobres, dos cavaleiros, verdadeiros potentados, que só formalmente, deviam obediência ao rei. Ideais que levavam qualquer baronete a promover verdadeiras guerras civis por simples questões de divisas, ou suposta honra ofendida, ou por mera cobiça, como era aquela questão que se arrastava, já há mais de dez anos, entre membros de sua própria família, a sua prima, condessa Mafalda, de Borgonha e seu sobrinho Roberto, pela posse do condado de Artois[3]   
Filipe sabia que sua decisão em mandar queimar os altos dignatários do Templo não tinha sido aceita com unaminidade nem no seu próprio conselho. Seu irmão Carlos, o poderoso conde de Valois, tinha sido contra todo o processo e criticara veementemente a decisão que levara de Molay e o preceptor da Normandia, Godofredo de Charney á fogueira. No seu próprio Conselho, formado pelos pares de França, havia severas fraturas, especialmente entre Carlos de Valois e seu ministro Enguerrand de Marigny, que não se suportavam, e não fosse o fato de o rei estar entre eles, com certeza acabariam se matando num ordálio.
   
Vivia-se em uma época de superstições e crendices, onde o medo do inferno era a principal arma dos clérigos para manter na linha o povo ignorante. E o temor das bruxarias e dos sortilégios um terror constante a assombrar o espírito daquela pobre gente. A morte do papa Clemente V, dada a forma que ocorrera, logo excitou a imaginação popular. Se ele fora envenenado, como muita gente logo se pôs a dizer, por que seu escudeiro, que provara a comida e a bebida que lhe fora servida em Roquemaure, não morrera também? Poucos atentaram para o fato de que o escudeiro somente provara o vinho e o papa efetivamente bebera uma jarra inteira. Nem a imediata prisão do condestável de Roquemaure, e a dolorosa tortura a que foram submetidos todos os empregados do castelo, que cuidaram da preparação da ceia papal, trouxe qualquer esclarecimento para o caso. Messier João du Pré, o misterioso vinhateiro havia desaparecido. Ninguém conseguiu encontrá-lo ou dar qualquer notícia de seu paradeiro. Era como se nunca tivesse existido. Além disso, todo o vinho que ele trouxera foi exaustivamente examinado. Nada de estranho foi encontrado nele. Era, efetivamente, uma partida dos melhores vinhos fabricados nas Côtes du Rhone.  
Então não foram poucos os que acreditaram, desde logo, que a maldição lançada por Tiago de Molay sobre o papa, o rei, sua famíla e seu ministro Nogaret, começara a ser cumprida imediatamente. Assim começam as lendas.
 
Não era só a morte do papa, em circunstâncias misteriosas, que preocupava a mente de Filipe, o Belo, naquele começo do mês de maio de 1314. Nem bem as cinzas do grão-mestre e do preceptor da Normandia, Godofredo de Charney, tinham sido dispersas pelo vento que soprava do Sena sobre a Ilha dos Judeus, onde eles haviam sido queimados, o rei já estava a braços com um grande problema de família, que viria não só trazer-lhe uma profunda infelicidade como pessoa, mas principalmente acarretaria uma grande dificuldade para a sucessão da sua linhagem, como soberanos do reino de França.
Essas dificuldades provinham do escândalo provocado pelas suas duas noras, Branca de Borgonha, esposa do seu filho caçu-la, Carlos de França, que mais tarde se tornaria o rei Carlos IV, e Jeanne de Borgonha, esposa de seu filho Filipe de Poitiers, que se tornaria rei com o título de Filipe V. Essas duas princesas, ambas filhas da condessa Mafalda de Borgonha, tinham sido acusadas de adultério. Julgadas por um tribunal composto pelo rei e seus ministros, elas foram aprisionadas e jogadas em uma masmorra. Assim começaram as desditas do rei Filipe, o Belo. [4]
 
Mas as agruras do rei estavam apenas começando. Em fins de maio de 1314, ele recebeu a notícia da morte de seu fiel ministro Guilherme de Nogaret. Esse homem tinha sido o seu braço direito na disputa contra o Papa Bonifácio VIII e no processo de destruição da Ordem do Templo. Desde os seus primeiros anos de reinado, em 1286, Nogaret fora seu principal aliado na luta que ele contra os nobres e a Igreja, e o grande articulador de sua política de estado. Com sua natural competência para manipular leis e gerar fatos políticos que colocavam os adversários do rei em situações incontornáveis, Nogaret havia ajudado Filipe a eliminar, um a um, os inimigos do estado que ele havia se proposto a construir.
Nogaret tinha sido aluno de Pierre Flote, o grande jurista. Antes de ser chamado por Filipe para a chancelaria real, fora juiz e professor de direito. Era, antes de tudo, anticlericalista por natureza. Tinha exatamente o que Filipe precisava para ajudá-lo na sua luta para reduzir os poderes dos barões do reino e colocar a Igreja sob a sua tutela.  
A política praticada por Nogaret levara o rei Filipe a um conflito com o Papa Bonifácio VIII, em 1302, quando este resistiu aos decretos reais que impunham taxações sobre as rendas da Igreja. O conflito evoluiu de tal maneira que o próprio Nogaret acabou chefiando uma expedição contra aquele papa, acabando por fazê-lo prisioneiro em sua residência, em Agnani, no incidente que recebeu o nome dessa cidade. O papa seria libertado mais tarde pelos próprios habitantes de Agnani, mas desse incidente resultara a excomunhão de Nogaret e dos aliados italianos de Filipe, problema que só seria contornado depois, em 1312, quando da dissolução da Ordem do Templo, em virtude do acordo feito por Filipe, o Belo, com o Papa Clemente V.
Assim, durante a maior parte do reinado de Filipe, Guilherme de Nogaret tinha sido o seu maior apoio. Seus conhecimentos de jurista e suas habilidades de estadista tinham sido muito bem aproveitados pelo rei. E muito bem recompensadas também, pois Filipe fizera dele o Chanceler real em 1307, o cargo de maior poder na França.
Odiado por muitos, temido por todos, Nogaret era a verda-deira personalidade por trás do trono. Fora ele que, juntamente com Enguerrand de Marigny, organizara as finanças do reino. Para isso, além de taxar as rendas da Igreja e atraír a ira do papa Bonifácio VIII, atiçara ainda mais o rei contra os Templários, visando, principalmente, o confisco dos bens da Ordem. Com tudo isso, adquiriu muito poder, mas também uma grande dose de inimigos. 

Nogaret era um homem forte, beirando os cinqüenta anos, e ninguém, em sã consciência, acreditaria que fosse morrer cedo, de causas naturais. Nem era dado á superstições. Anticlericalista por natureza, odiava a Igreja de Roma e tudo fizera para que o seu poder, em França, fosse reduzido ao mero serviço burocrático que o clero prestava, em razão da sua própria estrutura, mais eficiente e organizada que o aparelho do estado.
Nogaret trabalhara a vida inteira, enquanto jurista, senescal, e depois ministro plenipotenciário do rei, para anular o poder da Igreja e substitui-la pelo poder do Estado. Por isso não poupara esforços para transformar o chefe da Igreja em um refém do rei, e lutara para que em todas as dioceses do reino, os bispos fossem aliados do rei ao invés de obedecerem ao papa. Conseguira isso com a eleição de Clemente V, o papa francês, que se encastelara em Avignon, tirando a corte papal de Roma, se colocando, praticamente, sob a influência de Filipe, O Belo.
Seu ódio pela Igreja e pelo clero era uma coisa entranhada. Diziam que ele tinha raízes históricas. Pois segundo seus inimi-gos, Nogaret, oriundo da região do Languedoc, era descendente de uma família de cátaros, e seus antepassados, na pessoa do seu avô e provavelmente seus pais, haviam sido queimados como hereges. Nunca se comprovou se isso era um fato verdadeiro, ou se eram coisas inventadas pelos seus inimigos, mas o caso é que Nogaret tinha tão pouco respeito pela Igreja quanto por suas instituições. Por isso, o mesmo ódio que votava ao papa e seus bispos, ele também o dedicava ás Ordens monásticas, especialmente a Ordem do Templo. Justificava-se, dessa forma, o empenho com que ele havia trabalhado para extingui-la e mandar seus membros para a fogueira.
Tiago de Molay, em sua pira de morte, não havia se referido expressamente a ele, Guilherme de Nogaret. A maldição que o moribundo ancião, em meios ás chamas que o consumia, havia lançado, foram explicitamente contra o rei, sua família e o papa. Mas Nogaret, homem que se acreditava livre de superstições, não obstante, não conseguia evitar o mal estar que o atingia quando passava em frente à catedral de Notre Dame e olhava para aquelas estranhas figuras de gárgulas, vampiros e carrancas que ornavam o frontispício do majestoso templo. E sempre que o fazia não conseguia evitar que lhe viessem á cabeça as palavras pronunciadas por de Molay na fogueira: Nekan, Adonai ! Que diabo significava essas palavras cabalísticas, pronunciadas por um ancião no momento em que o demônio se apressava em tomar conta da sua alma?  
Nogaret, um jurista respeitado, tinha uma mente científica, que só se ocupava de assuntos pragmáticos. Embora em suas diatribes contra os Templários ele tenha se valido dos próprios venenos que a Igreja aplicava contra seus inimigos, ou seja, acusações relacionadas com bruxaria, feitiçaria, heresia e outras superstições, como as colocava, ele mesmo não acreditava em nada disso. Ah! como ele sonhava libertar a França de tudo isso, dessa Igreja corrupta, desse clero ignorante, dessa estrutura de medo, intolerância, superstição e miséria, que a Igreja de Roma espalhara pelo mundo cristão. Nem que tivesse que usar contra ela os mesmos métodos que a Igreja usava para manter o seu poder sobre o povo. O poder do medo, o terror do inferno, as tenases da Inquisição.
No entanto, aquelas carrancas no fronstispício da Igreja de Notre Dame o incomodavam. Por que será que os mestres maçons, os chamados “pedreiros do Bom Deus” teriam colocado num templo dedicado a fé cristã, aquelas figuras de aparência demoníaca, que tinham muito mais a ver com a fauna do inferno do que com a visão do paraíso? Onde estaria a lógica daquela estranha perversão, que parecia estar mais de acordo com uma mente alinhada com o mundo das trevas, do que com o território da luz, para onde a Igreja deveria conduzir seus fiéis?
 
Ah! Os Templários. Seriam mesmo adoradores do demônio, como ele fez tanta força para fazer a opinião pública acreditar que fossem? Aliás, existiria mesmo o Diabo, ou essas criaturas das trevas, que tanto assustavam os infelizes que frequentavam esses templos, ou eles seriam apenas os maus pensamentos, os vícios, a própria maldade da criatura humana, que tomavam essa forma no espírito supersticioso dessa gente?
Teriam os Templários aprendido a ciência de fabricar ouro, como se dizia á boca pequena? Essa ciência, que se chamava alquimia, cujos praticantes afirmavam serem capazes também de produzir filtros e elixires milagrosos que podiam causar a morte de uma forma imperceptível ao melhor dos médicos? E que também podiam prolongar a vida de uma pessoa indefinidamente? Poderiam ter envenenado o papa Clemente V de uma forma imperceptível, misteriosa, subreptícia, que nem mesmo os médicos do Sumo Pontífice, sabidamente, os mais competentes do reino, não conseguiam detectar?
  Ah! Fabricar ouro até que seria bom, pensava Nogaret, enquanto sua carruagem se afastava da praça de Notre Dame e se aproximava do palácio real. Poderia, com isso, encher as burras do tesouro real sem ser obrigado a recorrer a medidas impopulares, como aumentar as taxas sobre as licenças de comércio, as rendas dos cidadãos, a moagem de trigo, a venda de produtos horti-fruti-granjeiros, como tinha sido feito recentemente e provocara a revolta do povo. Aumentar as imposições tributárias sobre as servidões feudais e sobre as rendas da Igreja sim, isso lhe dava até prazer em procurar cada vez mais motivos para fazê-lo; mas o povo, se pudesse, ele o aliviaria, pois este não tinha culpa de viver nesse tempo de ignorância,, maldade e violência. Nogaret era homem do povo e nascera do povo. Tornara-se grande por seus próprios méritos. Não corria em suas veias uma única gota de sangue nobre. Tinha nascido burguês e continuava burguês, apesar dos títulos de nobreza conquistados. Se não existisse o direito feudal. Se não existisse o direito canônico. Fabricar ouro. Se tudo isso fosse possível...
 
A alquimia, precisamente, tinha sido, até então, a ocupação do mestre Everardo de Evreux. Alquimista praticante, sua fama de bruxo já o acompanhava desde que saira do condado que lhe emprestava o nome, para evitar ser envolvido em um processo por bruxaria, que lhe havia sido movido pelo bispo local. Ingressara na Ordem do Templo, onde a sua condição de letrado logo lhe granjeara facilidades numa organização onde a maioria de seus líderes era analfabeta. Na sua condição de “praticante da obra” trabalhava para a Ordem do Templo, decifrando pergaminhos, fabricando elixires e remédios que os monges guerreiros geralmente precisavam, ao mesmo tempo em que perseguia o sonho de todo adepto, que era a sinterização da pedra filosofal.
Amigo pessoal de Tiago de Molay e dos principais digna-tários da Ordem do Templo, para mestre Everardo, a prisão e condenação dos seus protetores, juntamente com a extinção da Ordem trouxera, novamente, o problema da clandestinidade. Até então, sob a proteção do Templo, pudera praticar a sua arte sem empecilhos. Sob uma capa de mistério, a Ordem mantinha laboratórios de prática alquímica, onde os iniciados nessa estranha ciência, organizados sob um rígido sistema iniciático, trabalhavam religiosamente na procura da pedra filosofal. Esse tinha sido mais um dos segredos que os Templários tinham trazido do Oriente, adquirido na sua interação com árabes. Com a prática da alquimia, os Templários haviam evoluído na arte de fabricar armamentos, pois o aço obtido em seus laboratórios era mais duro do que o comumente fabricado nas forjas européias. Tinham obtido também consideráveis avanços na arte da tanoaria, com a descoberta de novos ácidos, o que permitia a curtição de couros com mais qualidade e produtividade. Além disso, o estudo da geometria, da matemática e das artes antigas, especialmente dos caldeus e dos egípcios, que lhes foram transmitidas através dos mestres sarracenos, fizera avançar de tal maneira a ciência da metalurgia, a arquitetura e as indústrias em geral. Os chamados “homens dos templários” estavam entre os mais hábeis artesãos e profissionais da Europa. Fora essa habilidade, aplicada á indústria, paralelamente á extraordinária capacidade que seus monges desenvolveram para administrar bens e dinheiro, que fizeram da Ordem do Templo a potência econômica, política e militar que tanto incomodava Filipe, em sua luta para assumir o poder absoluto em França. 
Mestre Everardo tivera a sorte de não ser implicado, de maneira fatal, nas acusações de heresia e outros crimes que foram imputados aos Templários. Não obstante, fora brutalmente torturado e tivera uma perna irremediavelmente mutilada no cavalete de tortura. Por isso coxeava de uma forma estranha, provocando comentários maldosos por onde passava. Todo coxo era bruxo, diziam. Isso o irritava de tal forma, que seu ódio pelas pessoas que fizeram aquilo com ele era o único sentimento de que ainda era capaz. Mas conseguira convencer aos inquisidores que não tinha nada a ver com as acusações que estavam sendo feitas aos irmãos do Templo, pois ele era um dos “homens dos Templários”, ou seja, um profissional a serviço da Ordem e não um cavaleiro Templário, que participava dos “segredos” atribuídos aos iniciados. Era exatamente o contrário, mas os ignorantes prelados que faziam a inquisição não tinham a menor idéia das coisas com as quais estavam lidando. Se soubessem, não seriam aos cavaleiros do Templo que eles teriam que mandar para a fogueira. Ah! Se soubessem dos segredos que existiam naquelas estranhas garatujas dos livros que ele lia. Se soubessem dos poderes que continham aqueles pós que eles manipulavam...
A quem mestre Everardo de Evrex odiava mais? Certamente que o rei Filipe e o papa Clemente V, os principais responsáveis por tudo aquilo. Mas ele sabia que seu ódio, dirigido áquelas figuras, era ambicioso demais. Nunca conseguiria chegar próximo o bastante do rei para “temperar” o seu vinho com um pouco de “ Serpente de Faraó”, como mestre João du Pré fizera com o papa. Sabia, no entanto, que Messier Nogaret se abastecia de tintas com um fornecedor da rua Boudornnais, que por sinal comprava do seu laboratório a matéria prima com a qual fabricava as tintas. Tinha conhecimento de que certas matérias primas, como o orpimento, o sulfato de chumbo e o de prata, o cinábrio, o fel do fígado do boi, a cola de peixe, etc. eram ingredientes usados naquelas tintas que Nogaret, em seu ofício de Ministro e principal redator dos decretos e comunicados do rei, usava. Esses materiais eram extremamente tóxicos e um pouquinho mais disso do que daquilo, uma dose a mais de sulfato de chumbo, uma pitada a mais de cinábrio, e eis um veneno que, posto diariamente sob o nariz de alguém, levaria a sua miserável alma em poucos dias.
 
Guilherme de Nogaret morreu em fins do mês de maio de 1314, exatamente trinta e três dias depois da morte do papa Clemente V, que por sua vez morrera também exatamente trinta e três dias depois da morte de Tiago de Molay.
Sua morte não tinha sido muito diferente da que atingira Clemente V, disseram as pessoas que o assistiram em seu leito de morte. Primeiro ele sentiu uma vertigem enquanto participava de uma reunião dos pares de França, que tratava de aspectos relativos à sucessão do de Clemente V. Suas pernas travaram, como se ele tivesse sido acometido de uma crise de câim
 
bras. Levado imediatamente para um aposento no castelo real, começou a vomitar as tripas. Logo o vômito começou a trazer um sangue pisado e nauseabundo, que não deixava dúvidas que de que algum veneno muito poderoso estava agindo nas entranhas do ministro. Os médicos tentaram de tudo. Sangraram-no o quanto puderam, para tirar aquilo que pensavam ser o sangue contaminado, e tentaram todos os elixires possíveis e conhecidos. Fizeram-no até engulir pó de esmeraldas moídas. Mas nada adiantou. Nogaret morreu ao cabo de dois dias, depois de escarrar todo o sangue que tinha no corpo. Enquanto se transformava numa múmia em vida, delirava e gritava como um possesso: – A fogueira não! Por favor, Majestade! Eu fiz o que fiz para servir-vos! Tiago de Molay, eu vos amaldiçôo...
Essas foram as últimas palavras de Guilherme de Nogaret, o homem que tornara possível a Filipe a extinção da Ordem do Templo. Todos, naquele quarto, que assistiram a agonia do poderoso Chanceler real e seu último suspiro tinham suas testas franzidas e uma pergunta nos olhos: o que queria dizer Nekan, Adonai, Chol, Begoal?
  
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NOTAS HISTÓRICAS
 
[1]A Liga Feudal da Borgonha foi instituída em 1314, com o objetivo de tentar recuperar os priivilégios da nobreza, mitigados por Filipe, o Belo, e conservar as tradições da cavalaria, enquanto instituição.
[2] Ver capítulo XIV.
[3] Essa luta interna entre dois barões da mesma família, rivais, foi elemento de instabilidade política no reino da França durante mais de vinte anos. Só terminou com a morte de Robert, Conde de Artois, e Mafalda (Mahaut), sua tia, a condessa de Borgonha. Mafalda foi sogra dos dois filhos de Filipe, o Belo, Filipe de Poitiers e Carlos de França, que se casaram com suas filhas Jeanne e Branca. Segundo a tradição, Mafalda foi uma das maiores conspiradoras que a corte francesa conheceu. A esse respeito ver Maurice Dion, Os Reis Malditos, citado.
[4] Ver nota 23, capítulo VI
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/01/2014
Alterado em 21/01/2014


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