João Anatalino

A Procura da Melhor Resposta

Textos


COLHEIRA MALDITA
 
 
 
Filipe, o Belo, estava morto. Atingido por um acidente de caça, ou pela fatalidade, que cedo ou tarde, alcança todos os nascidos de ventre de mulher, ele estava, agora sendo velado em seu castelo de Fontainebleau. Imediatamente, como era o costume, os vinte e quatro cavaleiros encarregados de anunciar a morte do rei e saudar o novo, saíram a galope, pela grande porta do castelo de Fontainebleau. Ali, do lado de fora das muralhas, eles se separaram em quatro direções. Seis para o norte, seis para o sul, seis para leste e seis para oeste. Em seguida, sumiram em meio á floresta nevada que circundava o imponente edifício.
Em cada cidade e cada aldeia que entravam a galope, eles buscavam os edifícios públicos, as prefeituras e as gendarmerias, para gritar, a plenos pulmões: “o rei está morto, salve o novo rei.” E depois caberia aos senescais, bailios e prebostes a comunicação de que o rei estava morto e a França tinha um novo rei.
Então, começava o repicar intermitente dos sinos. Essas peças de bronze eram âncoras sonoras que serviam para chamar o povo para a oração e anunciar as boas novas, como o nascimento de um herdeiro real, ou a vitória em uma batalha. O bronze das igrejas servia também para anunciar as grandes tragédias que se abatiam sobre o reino e essa, sem dúvida, era um infausto acontecimento que a França demoraria muito para esquecer.
Pois assim era considerada a morte de um rei. Especialmente um rei que reinara durante vinte e nove anos, deixando para o país um legado de grandeza e poder jamais vistos naquele reino.
Porque Filipe, o Belo, tinha sido, desde Carlos Magno, o mais poderoso dos reis que ocupara o trono dos francos. Tinha sido um rei altivo, ativo, sagaz, corajoso e determinado. Sob seu governo, os nobres haviam sido dominados e a unidade nacional, sob uma única lei, alcançada. O povo, a burguesia, participava agora do conceito de estado, como cidadãos livres, tanto quanto os nobres. As amarras e as obediências feudais, o poder do clero, as intermináveis, inúteis e destrutivas guerras entre os feudos, que ensaguentavam e empobreciam o país, foram contidas. O povo, em paz, podia empregar-se em atividades produtivas, tanto nos campos quanto nas cidades. A atividade econômica, garantida por um exército nacional, que obedecia a uma única autoridade, a do rei, trazia para o reino uma prosperidade nunca antes alcançada. A França se tornara, no reinado de Filipe, o Belo, a maior e mais poderosa nação da Europa.
No entanto, para realizar essa proeza ímpar, Filipe, o Belo, tivera que se impor a ferro e a fogo. Fora impiedoso com inimigos e adversários. Entrara em conflito com a Igreja e a vencera, tornando-se, ele mesmo, o eleitor mais influente na escolha do papa. Obrigara a corte papal a deixar Roma e se instalar em Avignon, onde não poderia escapar da sua influência. Taxara as rendas da Igreja e reduzira o poder do clero, transformando-o numa mera competência burocrática de um funcionário incumbido de prestar serviços ao povo. 
Reduzira o poder dos nobres a uma simples participação consultiva. Seu governo tinha um Conselho Executivo, formado pelos pares do reino, os membros da sua família e seus ministros. E um Conselho Consultivo formado pelos Estados Gerais, composto por membros da burguesia, pelos nobres e pelo clero. A França, enfim, quando os sinos de todas as igrejas anunciavam a morte de Filipe, o Belo, e a assunção de Luis, o Turbulento, seu filho mais velho, era, praticamente, um estado nacional.
Mas uma única vida, ainda que seja a de um rei, não é suficiente para modificar o espírito de um povo. Ainda mais quando essa vida, para realizar os seus intentos, eliminou tantas outras, fazendo poderosos inimigos. As pessoas são como plantas. Cortadas no tronco morrem, mas se já produziram sementes que são deixadas na terra, elas renascem em suas próprias raízes ou florescem em outras partes. Pois carregam o germe do futuro e também conservam o viço do passado, que são as suas tradições. E estas, só o tempo pode extinguir.
 
Filipe, o Belo, tinha deixado muitos inimigos. A oposição tinha sido silenciada, mas não extinta. Nem bem o seu corpo esfriara na tumba e eles já se movimentavam para devolver a França o seu antigo formato feudal. Dois partidos se engalfinhavam para tomar o poder, que seu fraco e incompetente filho, Luis X, o Turbulento, não conseguira absorver.
De um lado, estava o poderoso irmão de Filipe, o Belo, Carlos de Valois, tio de Luís. Este sonhava com a restituição da França á sua antiga conformação. Era um cavaleiro, um nobre, que amava as instituições feudais e odiava a estrutura que seu irmão, Filipe, o Belo, montara. Queria a volta dos poderes feudais, a reinstituição da cavalaria, com todas as suas prerrogativas, a abolição dos poderes dos Estados Gerais, a volta da burguesia á sua antiga posição social subalterna, enfim, era o retorno puro e simples do sistema feudal.
De outro lado, os membros da estrutura montada por Filipe, o Belo. Nesse grupo estavam os ministros do rei, os servidores plebeus dos Estados Gerais, o povo enfim, que sob o reinado de Filipe havia alcançado uma liberdade e uma prosperidade que jamais lhes viria no antigo regime. Esse grupo tinha como principal líder o ministro Enguerrand de Marigny.
A conseqüência dessa luta de morte seria sentida já no ano seguinte.  Um inverno, mais rigoroso que todos os outros que os franceses daquela época conseguiam recordar arrasou os campos deixando uma população faminta e desesperançada, a perambular pelas cidades e vilas á procura de empregos que não existiam e de comida que ficava cada vez mais cara. Assim se passou o primeiro ano de governo de Luis X, o Turbulento, que se mostrava cada vez mais incompetente para governar e cada dia mais dominado por seu poderoso tio, Carlos de Valois.
Pois este havia imposto o seu domínio sobre o fraco e indeciso rei e com muita astúcia e determinação assumira o papel de principal ministro de estado. Ele era o verdadeiro poder por trás do trono. Suas energias, durante o reinado de Luis X, tinham sido canalizadas para destruir o seu principal rival, Enguerrand de Marigny, o qual, depois de uma longa e sórdida campanha de difamação e desonra pública, havia sido julgado e condenado á forca pelo Conselho de Ministros.
Assim, a maldição dos Templários, segundo o imaginário popular, estava alcançando não somente o papa, o rei Filipe, o Belo e sua família, mas também seus ministros e por tabela, todo o país. Primeiro fora Nogaret, envenenado pela tinta com que assinava os decretos e as ordens que haviam mandado para a fogueira centenas de Templários. Depois fora o próprio rei, que sucumbira depois de um acidente estranho, caçando um ainda mais estranho cervo.
Agora era a vez de Enguerrand de Marigny, que experimentava o próprio remédio que receitara a tantos inimigos.
                                                          
 
– Eis a maldição de Jacques de Molay, que recai sobre vós também – dissera Carlos de Valois, ao acompanhar a carroça que levava Marigny ao patíbulo de Montfalcon, onde o seu pescoço seria pendurado numa corda.
– A única maldição de França sois vós – respondera Marigny.
Carlos de Valois soltara uma sonora gargalhada em resposta a essa acusação.
– Nós somos todos amaldiçoados, Messier de Marigny – disse Carlos Valois – todos nós que adquirimos poder e temos que exercê-lo a qualquer custo. A única maldição do homem é a sua sede sua poder. Por ele morreram os Templários. Por ele morrem os papas, por ele morreu Messier Nogaret e meu irmão, o rei. E por ele morrerão, mais cedo ou mais tarde, todos aqueles que sentirem essa sede e precisarem estancá-la com sangue alheio.
– E vós também, Messier Valois – o vosso dia chegará – dissera Marigny, antegozando a visão do corpo do inimigo sem vida.
– Sem dúvida chegará – Messier Marigny – mas enquanto ele não vem, deixai-me gozar o vosso momento de desgraça.
 
Enguerrand de Marigny foi enforcado no dia trinta de abril de 1315 e o jovem rei Luis X, o Turbulento, também conhecido como Cabeçudo, ou Teimoso, morreu no ano seguinte, no dia cinco de junho de 1316. Reinou apenas dezoito meses e seu reinado fez jus ao apelido que adquirira: o Turbulento. Ele foi supostamente assassinado, por envenenamento causado por sua tia de segundo grau, a condessa Mafalda de Artois. Esse crime, ela o teria cometido para colocar no trono o seu próprio genro,  Filipe, conde de Poitiers, que era casado com uma de suas filhas, Joana de Navarra.  Filipe de Poitiers era o segundo filho de Filipe, o Belo, e o segundo na linha de sucessão, caso o jovem rei Luis X não tivesse filhos para sucedê-los. Ele teve um filho, mas segundo as crônicas da época, esse príncipe também foi envenenado, ainda recém-nascido, pela mesma condessa Mafalda, que ao que parece, não se importava de colecionar assassinatos para realizar os seus intentos.
Mas do ponto de vista de muita gente, ela talvez não fosse mais do que a mão que Deus, ou do Diabo, suscitou para realizar a maldição que Tiago de Molay tinha lançado sobre Filipe, o Belo, e sua família. “Sereis maldito até a décima-sexta geração” havia gritado o velho grão-mestre, enquanto as chamas o consumiam.
 
Mas não só de mortes e traições se consumava a maldição. Pois nem bem os arautos da morte, como eram chamados os vinte e quatro cavaleiros encarrregados de anunciar, a todos os quadrantes da França, a morte de Luís X e a assunção ao trono de seu irmão Filipe V, novas tragédias se abatiam sobre a familia real. Três semanas depois de sua coroação, em Reims, morria o seu herdeiro, o recém nascido filho que Joana de Borgonha lhe dera. Ela se tornaria estéril a partir do parto e não lhe daria mais filhos. Em conseqüência, morria com o jovem rei Filipe V a sua esperança de uma linhagem real a partir da sua descendência .
 
A par isso, os invernos continuavam inclementes em França. No outono de 1317, a fome tinha atingido a maior parte da população francesa. De repente, e sem nenhum aviso, uma imensa massa de camponeses deixou o campo e começou a invadir e  assaltar vilas e aldeias, destruindo, matando, queimando e roubando tudo que encontravam. O caos tomou conta do país.
Eram centenas de bandos errantes, que tomaram de assalto as estradas, invadindo cidades, pilhando e matando quem resistia. Levavam á frente de suas hordas uma cruz, gritando palavras de ordem e divisas utilizadas pelos antigos cruzados, como o conhecido refrão “Deus o quer.”
Eram de início, centenas, que depois se tornaram milhares e por fim se contaram por milhões. As milícias do rei se tornaram impotentes para detê-los. Toda a França fora tomada de assalto por essas hordas, que como bandos de gafanhotos, pareciam obedecer a um comando mágico.
 Nem o próprio papa, em sua utópica Avignon, se sentia seguro.
De onde vinham aquelas hordas famintas, miseráveis e rancorosas, que afrontavam os poderes constituídos e não respeitavam sequer os lugares sagrados? Não demorou muito para alguém levantar a hipótese de que tudo aquilo fazia parte da maldição dos Templários. Pois que aquela balbúrdia, aquela loucura coletiva, aquele furor, brotara das ruínas do Templo. Á frente das turbas exaltadas foram vistos antigos cavaleiros Templários, talvez enlouquecidos pela tortura e pelo aviltamento de caráter que tudo aquilo lhes provocou. E pela opressão e pelo anátema que sobre eles pesavam, como sodomitas, hereges, idólatras e conspiradores, eles haviam se tornado pregadores da desgraça, arautos da vingança, anunciadores do apocalipse. Junto a eles vinham os monges sem dioceses, os pedreiros sem emprego, os comerciantes falidos, os soldados desmobilizados, os camponeses sem terra. Em cada cidade, ou aldeia por onde passavam, a eles se juntavam os mendigos, as prostitutas, os sem-teto, os desempregados e os simples bandidos e malfeitores, em nova cruzada, diziam eles, em direção á Terra Santa para libertá-la, mas na verdade, o que eles queriam mesmo era derrubar o rei e arruinar o papado.
Em todas as grandes cidades do país, as hordas furiosas causavam grande devastação. Foi a chamada “ cruzada dos pastores”, uma enorme onda de distúrbios que durou mais de um ano. Uma multidão de cem mil pessoas tomou de assalto Paris, saqueou as lojas, os mosteiros, as casas, os castelos. Chacinaram o preboste e sua guarnição. Cercaram o palácio real e exigiram que o rei aparecesse na sacada para falar com eles. Depois que o rei lhes dirigiu algumas palavras de apasiguamento, misteriosamente, aquela massa furiosa, que no momento anterior estava pronta para invadir o palácio e chacinar toda a família real, se acalmou, como se um remédio tranqüilizante lhe tivesse sido aplicado. E a uma voz de comando, deixaram a praça do palácio real e tomaram, de novo, a estrada, em direção a Orleans, Bourges, Limoges, Perigord. Logo estavam em Auchi, Albi, Toulose, Carcassonne. Todo o Languedoc foi tomado de assalto.
Por todo o caminho as chacinas eram comuns e diárias. Na sua fúria homicida, os “cruzados pastores” invadiram igrejas, mosteiros e mataram centenas de monges. Os judeus também sofreram a conseqüência daquela que parecia ser uma vingança do céu. Contavam-se aos milhares os cadáveres nas cidades e aldeias.
Então o estado e a igreja começaram a reagir. Os próprios monges e seus agregados pegaram em armas para se defender. Batalhas campais se travaram em todas as cidades de França. A carnificina foi geral. Os cruzados endoidecidos, repelidos para os campos e para os pantanais, morreram aos milhares. Em conseqüência, as propriedades rurais de França ficariam abandonadas e inexploradas por muito tempo, prolongando a miséria e a fome por muitos anos.
O bom e simplório povo francês agora tinha certeza. A maldição dos Templários não era uma lenda. Pois á frente das hordas destruidoras, como cavaleiros do apocalipse, sempre se encontrava uma voz de comando. E atrás dela todos acreditavam ver um mantô branco com uma cruz vermelha no peito. Se os Templários não haviam evitado a dissolução da sua Ordem e o sacrifício de seus principais mandatários, eles agora estavam  se vingando da forma mais cruel que alguém podia imaginar. Com uma carnificina sem precedentes, que mesmo reprimida, estava longe de terminar.Era a colheita maldirta que os franceses iriam herdade dessa época de ignarância e maldições.
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  1. A Condessa Mafalda de Artois foi uma das mais interessantes personagens da França Medieval. Mãe de duas princesas reais, ela foi considerada uma das mais perigosas cortesãs de todos os tempos. A tradição atribui a ela o assassinato de Luis X, o filho mais velho de Filipe, o Belo, para que seu genro, Filipe de Poitiers, o segundo filho de Filipe, o Belo, fosse coroado rei. Para garantir a coroação, ele teria também envenenado o filho recém-nascido de Luís X. Seu conflito com o sobrinho, Robert, pela posse do condado de Artois, gerou muita instabilidade politica na França durante o reinado de Filipe, o Belo, e acabou refletindo, de certa maneira nas causas que deram início á Guerra dos Cem Anos.
  2. A Cruzada dos Pastores foi um dos mais estranhos acontecimentos da história da França. Justifica-se pelo ambiente de superstição e misticismo que existia na época. Começou na Normandia, em maio de 1320, quando um jovem pastor se dizia visitado pelo Espírito Santo, e este o instruíra a pregar uma nova cruzada contra os mouros para expulsá-los da Península Ibérica. As visões e a pregação do jovem pastor contaminou a população sofrida do meio rural francês, que os longos invernos de péssimas colheitas havia lançado no desespero. Milhares de mulheres e crianças do campo se dirigiram a Paris para pedir ao rei Filipe V que os ajudasse nessa pretensa luta contra os mouros, mas o rei recusou-se a participar daquilo que ele definiu como rematada loucura.  Mas boa parte da população de Paris, também sofrendo os rigores da prolongada recessão, juntou-se a pretensa cruzada. Depois de um acordo com Filipe V, a hordadirigiu-se para o sul da França, invadindo castelos, saqueando aldeias, ocupando cidades e chacinando, onde encontravam, padres, leprosos e judeus, principalmente. O papa João XXII mandou contra eles uma tropa de mercenários, para evitar que eles invadissem e saqueassem Avignon. Quando eles chegaram á Península Ibérica, as autoridades dos reinos espanhóis já tinham conhecimento das atrocidades praticadas pelos “pastores cruzados”, e estavam preparados para os reprimir. Ainda assim, muitos judeus foram mortos na fortaleza de Montclus. Mas com o ataque que lhes moveu o exército de Aragão, comandado pelo principe Afonso, uma boa parte dos cruzados foi morta, e a cruzada dos pastores se dispersou.
  3. A maioria dos historiadores vêem essa cruzada como consequência da miséria em que vivia o povo francês na época. Foi uma espécie de revolta popular contra uma política de opressão praticada pelo governo francês, agravada pela situação economica caótica que os rigorosos invernos provocaram. Por isso o principal alvo da fúria popular foram os judeus, pois estes vistos como os principais responsáveis pela miséria da França, já que eram os únicos que podiam exercer livremente as atividades econômicas sem os anátemas que a Igreja católica lançava sobre aqueles que trabalhavam visando lucro. Assim, judeu era sinônimo de usurário, agiota, apóstata, adorador do demônio, assassinos de Cristo e outros apóstrofos. Nessa categoria também o imaginário popular incluia os Templários, que para muita gente, especialmente a mídia que Filipe, o Belo, havia desenvolvido, tinham se “judaicisado”, já que haviam abjurado a fé cristã e se tornado hereges. Todavia, isso não impediu que muitos antigos Templários participassem dessa revolta popular, e segundo a tradição que se formou depois, até fossem vistos no comando dos pelotões. Tudo se integrou á mistica da época e acabou fazendo parte da maldição dos Templários
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 25/01/2014


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