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A consciência do “Ser”
A vida se apresenta aos nossos olhos como um processo que alimenta a si próprio, exigindo atitudes práticas dos sujeitos que a desfrutam, como condição para que ela possa existir. Dessa forma, ela é potência e ato, ação e reação, estímulo e resposta ao mesmo tempo, encadeados numa sequência que faz com ela se torne uma eterna procura por um Porvir que parece estar sempre em um grau mais alto daquele onde nós mesmos nos colocamos. Por isso tudo que fazemos têm um sentido e uma necessidade. Assim é em toda parte. Se os pássaros, as abelhas, os insetos, os animais, de uma forma geral, não carregassem o pólen de uma planta para outra, não transportassem sementes e outras partículas vegetais de um lado para outro, as plantas não se reproduziriam e os próprios pássaros, as borboletas, os insetos e todas as espécies animais também não o fariam porque simplesmente não teriam ambiente propício para fazê-lo.O mesmo vale para todas as demais relações do universo, inclusive aquelas que o homem mantém com a natureza viva ou inanimada. Se o universo fosse apenas uma máquina que opera através de comandos fornecidos por leis exclusivamente naturais, como pensam os adeptos do cartesianismo puro, as interações, tanto as que ocorrem entre os elementos químicos e formatam o mundo da matéria bruta, quanto as que ocorrem entre as espécies vivas, resultando no universo dos organismos e sua consequente evolução psíquica, seriam movimentos sem sentido nem finalidade. Num mundo onde o puro mecanismo das leis naturais fosse a sua única causa de existir, a própria consciência do “ser” seria resultado da tendência natural que a matéria orgânica tem para criar domínios para si mesma, levada pela necessidade de preencher o vácuo que existe em volta dela. Sua interação com o restante do universo, seu encontro com outras consciências e as consequentes produções que disso resultam seriam também meros acontecimentos fortuitos num universo sem sentido, sem propósito e sem finalidade. A humanidade, como um todo, também seria um resultado dessa necessidade mecânica de aglutinação, e quando desaparecesse a sua utilidade para o sistema, ela também seria engolida pela voracidade da entropia cósmica, como se fosse uma estrela cujo combustível se esgotou e morreu, sem deixar rastro da sua existência.
Por que, como e para que viver? É o que filósofos espiritualistas, como Teilhard de Chardin, por exemplo, perguntam em suas especulações.[1] O que somos neste universo? Um grão de poeira perdido no infinito, um “caniço pensante”, como o definiu Pascal, uma “tábula rasa”, como dizia Locke, uma falha nas precauções anticonceptivas do universo, como já foi concluído por outros pensadores de nomeada, ou seremos alguma coisa mais, em um sistema de Poder, que constrói e dirige o edifício cósmico com e para um fim determinado?[2]O universo é tão imenso e nós somos tão ínfimos em relação a toda essa grandeza. A ingênua concepção idealista que coloca o homem como sendo a coroa da criação, centro da família de Deus, fica extremamente abalada pela visão de um indivíduo perdido num espaço tão imenso. E a ciência, quanto mais denuncia a certeza da nossa pequenez, vai alargando a amplidão do universo e acentuando essa sensação de esmagamento cósmico que sentimos quando nos colocamos diante dessa imensidão, cujos limites os nossos olhos não conseguem alcançar, mas pela qual os nossos espíritos não se cansam de aventurar, na busca por respostas que atenuem essa sensibilidade.
Sartre e Schopenhauer
Diante de tal perspectiva, não é estranho que sensibilidades como Schopenhauer e Sartre, só para citar apenas dois dos maiores pensadores da humanidade, tenham desenvolvido sensibilidades tão desconfortáveis em face de um fenômeno que lhes parecia despregado de algum propósito, como lhes parecia ser a vida humana.
Sartre dizia que a vida era uma jornada entre o ser e o nada. Assim, as ações humanas, como amar, produzir, construir, procriar, enfim, todas as atitudes que formatam o núcleo ontológico do “ser”, provocavam a “náusea”, sentimento desconfortável que nos invade quando descobrimos que tudo que fazemos na vida pode não ter nenhum propósito, a não ser “preencher“ um vazio que não tem qualquer significado, a não ser aquele que nós mesmos lhe damos. E sendo assim, toda a nossa ética, toda a nossa piedade, toda a nossa compaixão, todo o nosso sofrimento, nosso amor e nosso ódio, enfim, tudo que ansiamos por “ser”, podem nada significar para um mundo mecânico e indiferente, que só obedece às leis físicas e químicas.
Essa concepção, que não deixa de hospedar um certo ranço de cartesianismo, coloca o homem como centro de si mesmo, e o faz figura central de um humanismo que o isola do meio em que vive. Pois se só há existência entre o “nada” de antes e o “nada” de depois, que motivação haveria para defender e preservar um mundo que não existe fora de nós mesmos?
Que espécie de mundo seria este em que vivemos, se essa desesperante visão do universo fosse verdadeira? Que seríamos nós além de pobres sombras errantes, a perambular pela terra, sem qualquer noção de responsabilidade, sem amores, sem ligações com nada e com ninguém, sem justificativas para a própria existência?
Que triste perspectiva seria essa do filósofo alemão Scopenhauer, que nos apresenta um mundo formatado apenas como representação e vontade do pensador![3]
E que figura grotesca se nos apresenta aquele Roquentin, personagem do romance de Sartre, que via a vida apenas como um acontecimento fortuito num universo que se regia unicamente por leis naturais! [4]
Os positivistas
Descartes, ao aplicar o método racionalista no estudo dos fenômenos universais, isolou o homem das demais realidades do universo, fazendo-o crer que ele possuía um status enganoso de “universo em si mesmo”. Com isso, alimentou a ilusão de que ele poderia, enquanto “ente” que pensa, constituir uma unidade autônoma que contém todas as propriedades do universo e em razão disso, ser um todo em si mesmo. Dessa forma, seria inútil buscar qualquer verdade além dos limites da própria razão humana, pois o que não estivesse no universo “homem”, não estaria no mundo. A sua frase, Cogito, ergo sum, (Penso, logo existo), repetida á saciedade pelos apóstolos da razão, resume a crença de que toda existência está no próprio fenômeno que representa a vida, que é o ato de ter consciência está vivo, e não que a própria vida é um fenômeno decorrente de um processo.[5]
Essas concepções influenciaram também os pensadores do chamado Círculo de Viena, grupo de filósofos liderado por Ludwig Wittgeinstein (1889 — 1951). Esse filósofo austríaco foi considerado um dos grandes pensadores do século XX. Sua maior contribuição aconteceu nos campos da lógica e da filosofia da linguagem. Um dos mais conhecidos postulados de Wittgeisten diz que “os limites do mundo de uma pessoa são os limites da sua linguagem”, com isso querendo dizer que aquilo que o homem não for capaz de representar em sua mente e comunicar através do seu sistema de linguagem está fora do seu mundo e por isso mesmo não existe para ela.[6]
Essa concepção de “ser” em si mesmo foi responsável por um método de conhecimento que procura isolar os objetos, separando-os do todo onde está inserido, para poder entendê-los em suas particularidades. O método se mostra eficaz para o estudo das unidades isoladamente, mas quando tenta unir novamente as partes que separou, não consegue encontrar o vínculo que os une à totalidade.
O método cartesiano proporcionou um grande avanço no estudo das ciências físicas e naturais, mas, ao mesmo tempo, colocou sensíveis barreiras ao avanço da espiritualidade. O homem de Descartes, nesse universo seccionado, é um menino perdido de sua mãe. Emancipou-se, perdeu o elo que o ligava às suas origens e hoje não sabe mais como voltar para casa.
Os positivistas reforçaram esse ponto de vista. Para eles, só é real o que pode ser provado empiricamente ou por meio de raciocínios lógicos. Com isso, baniram do universo aquilo que a razão não pode organizar, esquecidos de que a razão é somente um atributo do ser humano e não ”o ser” humano em si. O desenvolvimento da ciência a partir do método racionalista e da visão positivista de Conte e Spencer só contribuíram para aumentar a dor que o isolamento produz, pois o racionalismo foi levado para as ciências humanas e sociais e o resultado dessa composição foi uma sociedade sem consciência, da qual se baniu o espírito, encarcerado a partir daí nos porões da obscura e pouco respeitada disciplina denominada metafísica e conformado pelos estranhos dogmas das chamadas religiões oficiais.[7]
Felizmente temos motivos para acreditar que não é assim. Temos certeza que existe uma Consciência Superior que dirige as tendências naturais de cada partícula que constitui o universo, para uma união que se processa em cada ponto do eixo espaço-tempo, onde cada grão do universo é, em si mesmo, um holom, um microcosmo dentro de um macrocosmo que repete, em cada realidade nele formatada, todas as propriedades desse universo. E isso, mesmo que não se possa ver na lente de um microscópico, nem se consiga captar nos aparelhos de um laboratório, é uma verdade que não pode ser ocultada, ainda que dela só possamos apreciar a sua consequência. Sabemos que a eletricidade existe, por exemplo, porque podemos ver o resultado de sua atuação na energia que movimenta nossas máquinas e ilumina as nossas cidades. Mas não sabemos qual é a causa da sua existência, o que a gera. Quer dizer, a eletricidade é uma realidade originada a partir da atividade atômica da matéria, uma força cósmica, da qual só conhecemos a manifestação, mas não a origem. O homem não pode “criar” eletricidade, só pode “extrai-la” de onde ela já existe, da mesma forma que não pode “criar” vida, por mais que desenvolva e aperfeiçoe o seu conhecimento da engenharia genética. A vida só pode ser “gerada” a partir de fontes onde ela já existe.
O universo é animal único que só existe em função das suas relações. O próprio Sartre, na sua visão existencialista do universo, não pode deixar de reconhecer que o ser humano não é independente de suas relações. Em um de seus trabalhos ele afirma, enfaticamente: "somos produtos de relações e de relações entre relações.” Isso quer dizer: se eliminarmos um único elo da corrente que nos liga ao todo universal, estaremos incompletos.
E isso nos leva de novo ás perguntas: o que somos no universo? Qual é o nosso lugar nele? Qual a nossa função nesse sistema? 8[8]
[1] Pierre Teilhard de Chardin, O Fenômeno Humano, Cultrix. São Paulo, 1968
[2] Blaise Pascal, (1623-1662), físico, matemático e teólogo francês, disse que o homem se assemelha a um caniço pensante. Já o filósofo inglês John Locke (1632-1704), fundador da corrente filosófica denominada empirismo, sustentava que todas as pessoas nascem sem saber de absolutamente nada, sem impressões nenhumas, sem conhecimento algum, ou seja, o homem, ao nascer, é como se fosse uma "folha em branco", onde tudo está por escrever. (tábula rasa).
[3] Arthur Schopenhauer (1788- 1860) O Mundo Como Vontade e Representação, Ed. Globo, São Paulo, 2006. Embora Schopenhauer, em seus trabalhos, tenha fornecido a base para o nihilismo, ele parecia acreditar que uma atitude humana, consciente e ativa, em busca de uma ética e uma moral que fizesse do homem uma criatura justa, boa e santa, poderia “redimir” o mundo do sofrimento que esse fatalismo existencialista naturalmente traz para a humanidade. Schopenhauer é um filosofo de muita importância dentro de certos círculos de pensamento maçônico, pois as bases de sua ética e moral tem bastante relação com as ideias maçônicas que pregam um aperfeiçoamento do caráter humano num sentido vertical ( A Escada de Jacó), eliminando seus vícios e substituindo-os por virtudes.
[4] Antoine Roquentin é o personagem de Jean Paul Sartre no Romance “A Náusea”, publicado no Brasil pela Ed. Circulo do Livro, São Paulo, 1986. É uma pessoa que não tem vínculos de ódio nem de amor com nada nem com ninguém, vivendo só para a satisfação dos sentidos. Em razão disso ele experimenta “a náusea” que uma vida vazia e sem sentido produz.
[5] René Descartes- Discurso do Método, Ed. \Pensamento, 1984
[6] Tractatus Lógico-Philosophicus, publicado no Brasil pela Edusp, São Paulo 1954
[7] Augusto Comte (1798- 1843) e Herbert Spencer (1820-1903) são os principais baluartes do chamado Positivismo. O Positivismo é o sistema filosófico que só aceita como verdade aquilo que pode ser comprovado cientificamente. Repudia todo conhecimento intuitivo e todo postulado deduzido a partir de crenças, intuições, tradições, etc. que considera pura metafísica, ou seja, teorias sem fundamento.
[8 Essa questão metafísica é enfrentada nos ensinamentos maçônicos, particularmente nos graus filosóficos onde se discutem questões como essa que põe perguntas sobrea finalidade da vida. Um exemplo disso são as questões levantadas no grau nove do REAA, onde se indaga: De onde viemos? Que somos? O que a morte fará de nós? Que é o homem? É apenas um átomo, aparecido no seio da mulher e que progressivamente se organiza, se harmoniza em suas inúmeras partes? Que cresce, pensa, cai, transforma-se e volta á causa primária, deixando apenas reminiscência de sua última forma ou conservando uma partícula essencial, mutável e mortal? As respostas a essas perguntas constituem o ensinamento do grau.
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 12/05/2014
Alterado em 16/05/2014
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